Nas últimas semanas, o Congresso se uniu em peso para aprovar a PEC (proposta de emenda à Constituição) que anistia os partidos políticos por descumprir a aplicação mínima de recursos em candidaturas de pessoas pretas e pardas. O texto não exige prestação de contas sobre o destino desse dinheiro. Com exceção do PSOL/Rede e do Novo, que orientaram voto contrário, os parlamentares aprovaram a proposta que também refinancia as dívidas dos partidos, seus institutos e fundações, além de assegurar a imunidade tributária a essas organizações. A nova emenda constitucional terá dois efeitos: a supressão de um direito conquistado da população negra e o fortalecimento do racismo cordial na arena legislativa – inclusive por parte da esquerda.
Em 2020, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu que a distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (o Fundo Eleitoral) deveria ser proporcional ao total de candidatos negros que os partidos apresentassem para a disputa eleitoral. O TSE estabeleceu que o mesmo valeria para o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. No mesmo ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que a mudança deveria valer já a partir da eleição de 2020 (e não de 2022, como havia decidido o TSE). Um ano depois, a Emenda Constitucional 111 ditou que os votos dados a candidatos negros para as eleições realizadas entre 2022 e 2030 seriam contados em dobro para a distribuição desses recursos.
Durante a tramitação relâmpago, nenhum parlamentar falou sobre a necessidade de responsabilizar os partidos pelo descumprimento já ocorrido
As duas mudanças foram conquistas do movimento social negro, que há décadas luta para convencer a elite política sobre a urgência de reparações históricas a essa população. Por exemplo, a lei de cotas raciais, sociais e econômicas só foi aprovada em 2012, mais de 100 anos depois da abolição da escravatura. À época da promulgação da Emenda Constitucional 111, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado e do Congresso Nacional, disse que a reforma possibilitaria “uma representação política mais justa e equilibrada”.
A PEC 9/2023 faz o oposto: vai na contramão da pequena lista de políticas reparatórias adotadas no país, já que perdoa os débitos dos partidos que descumpriam a aplicação mínima de recursos em candidaturas de negros nas eleições passadas. Para que a dívida seja cancelada, os partidos devem investir esses valores em candidaturas negras nas quatro eleições a serem realizadas a partir de 2026. Na Câmara, a primeira versão do texto também anistiava os partidos pelo descumprimento da aplicação de recursos em candidaturas de mulheres. Ao longo da tramitação, houve um acordo entre as lideranças partidárias para retirar a questão do gênero do texto.
A proposta foi aprovada com o apoio do PT nas duas casas (apesar da bancada ter sido liberada no Senado, a maior parte dos parlamentares votou favoravelmente). A postura do partido sobre a PEC parece estar ancorada no tamanho da sua dívida. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o PT deve R$ 22 milhões de INSS e FGTS de trabalhadores, o que faria dele o maior beneficiado do refinanciamento da dívida previsto pela PEC. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, disse que as multas às quais os partidos estariam sujeitos “inviabilizam” o seu funcionamento.
Na Câmara, houve divergência quanto à orientação favorável por parte da própria bancada negra do PT, que negociou uma versão da proposta com redução de danos. Foi nesse contexto que a PEC introduziu outro dispositivo: a aplicação de 30% dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral às candidaturas negras a partir das eleições de 2024. No Senado, não há bancada negra organizada. A principal resistência apareceu na voz do senador Paulo Paim (PT-RS), segundo o qual a votação representa “um retrocesso em relação a todas as conquistas normativas aprovadas no Congresso”.
A PEC teve como autor principal Paulo Magalhães (PSD-BA) e como relatores Diego Coronel (PSD-BA, na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania), Cabo Gilberto Silva (PL-PB, em comissão especial) e Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP, em comissão especial) na Câmara. No Senado, o relator na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) foi Marcelo Castro (MDB-PI). Os cinco parlamentares são homens brancos. Não houve um parlamentar negro em posição de destaque na tramitação da proposta. Além disso, a tramitação ocorreu a toque de caixa. Entre a aprovação nas duas casas, passou-se pouco mais de um mês. Contrariando o Regimento do Senado, que exige um intervalo de, no mínimo, três dias úteis entre a votação na CCJ e no plenário (o “interstício”), a PEC foi aprovada na CCJ no dia 14 e no plenário já no dia 15 de agosto. Ou seja: o processo legislativo foi enviesado a favor da proposta, que tem efeitos deletérios para a representatividade da população negra no próprio Congresso.
Em sua fala na CCJ e no plenário, o relator Marcelo Castro argumentou que a mídia induziu a opinião pública a batizar o texto de “PEC da Anistia”, quando, na verdade, ela deveria ser chamada de “PEC da cota racial”. Ele não foi o único – o Congresso foi tomado por narrativas que tentaram redefinir a proposta como se ela beneficiasse os pretos e pardos. Fica difícil concordar com o senador quando se olha o montante de recursos que as candidaturas negras deveriam ter recebido em 2022: 50% da verba eleitoral de R$ 5 bilhões, segundo a Folha de S.Paulo.
Durante a tramitação relâmpago, nenhum parlamentar falou sobre a necessidade de responsabilizar os partidos pelo descumprimento já ocorrido. No mínimo, eles deveriam ser obrigados a disponibilizar informações sobre onde colocaram os recursos que não foram aplicados nessas candidaturas. Simplesmente anistiá-los sem sequer exigir prestação de contas é negar – mais uma vez – direitos constitucionais aos negros (que são 55,5% da população brasileira, segundo o Censo 2022). É também abrir precedente para que os partidos voltem a se anistiar por descumprimentos futuros. Se não há qualquer tipo de punição ou responsabilização, por que eles haveriam de cumprir o regramento determinado por lei em relação a essas candidaturas?
A aprovação da proposta sinaliza que a ampla participação dessa comunidade nas disputas eleitorais continua a não ser prioridade. Mais: fortalece o racismo cordial, ou seja, o racismo camuflado que faz vista grossa para as consequências de tal manobra. O protagonismo político dos negros está sob risco, da mesma forma que esteve recentemente a democracia brasileira.
Beatriz Rey é doutora em ciência política, pós-doutoranda na EACH/USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) e pesquisadora da Fundação POPVOX (EUA).
Tadeu Kaçula é doutorando e mestre em Mudança Social e Participação Política pelo CELACC/USP (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) e diretor da Universidade Afro-Brasileira.