Saí da sessão de “Ainda Estou Aqui” em lágrimas. Fazia anos que não assistia a filmes sobre esse período, por uma certa indisposição emocional. Minha tia-avó foi presa e torturada pela ditadura militar. Eu cresci ouvindo essa história. Ela é madrinha do meu pai. Ele também sofreu na ditadura. Foi perseguido por participar do movimento estudantil, a famosa Libelú. Também essa história ouvimos a vida toda, faz parte da nossa formação de mundo, minha e de meus três irmãos. Mas voltemos à minha tia-avó. Ela se chama Nair Benedicto. É uma renomada fotógrafa, e muito possivelmente você já viu o trabalho dela.
Tia Nair ficou presa por dez meses, desde o momento em que foi subitamente capturada na porta da escola de seus filhos. Ela foi torturada por mais de três horas no pau de arara. Lá, lhe deram choques elétricos. Sua família foi usada como tortura psicológica, e seu algoz ameaçou levar o filho de Nair, então com dois anos, também ao pau de arara. Tia Nair ficou presa entre 1969 e 1970. Anos depois, ao pesquisar os arquivos do Deops (Departamento de Ordem Política e Social), descobriu que foi seguida pela ditadura até 1985.
A Tia Nair teve coragem – e estômago – para, décadas depois, registrar essa experiência de absoluta violência num documentário-depoimento. Nunca tive dúvidas sobre a veracidade do horror da ditadura. Pessoas da minha família tiveram suas vidas marcadas pela violência institucional.
Como sabem, no entanto, os últimos anos vieram para colocar essa clareza em xeque, num extenso e persistente movimento de “não é bem assim”. Além de se apegar a uma injusta Lei de Anistia, que inocentou criminosos do Estado enquanto eles ainda estavam lá, os advogados da dúvida começaram a questionar a própria ideia da existência de uma ditadura. Apoiando-se na – já clássica e enfadonha – história do “combate patriótico ao comunismo”, colocavam em dúvida quem seriam os “verdadeiros vilões” da história.
Fato é que, nesse pêndulo, aquela visão de mundo com a qual eu cresci parece quase um delírio. Jovens de hoje, com seus 15, 16 anos, não parecem mais tão seguros em afirmar que em 1964 houve um golpe no Brasil, seguido de 21 anos de ditadura militar… É a tal geração chamada nativa digital, que já nasceu inundada pelo excesso de informações (e desinformações) circulando pelas redes. O compromisso com a verdade dos fatos substituído pela disputa por seguidores e likes. Vence quem tem maior alcance e faz mais barulho, independente do que esteja dizendo.
‘Ainda Estou Aqui’ nos lembra que a ditadura ainda nos assombra, ainda está sendo disputada e sua história ainda precisa ser contada
Bem, talvez a disputa de narrativas sempre tenha seguido essa dinâmica, mas as redes sociais dão novíssima dimensão a esse embate. Daí a importância de trazê-las à responsabilidade por aquilo que permitem que seja veiculado em seu meio. Daí o estarrecimento diante do recente pronunciamento de Mark Zuckerberg, CEO da Meta, que, num jogo perverso, chamou as checagens de fato de enviesadas e simplesmente retirou de sua responsabilidade a mediação de conteúdos falsos ou ofensivos. O dono do império Facebook-Instagram-WhatsApp selou seu compromisso com a economia da atenção, custe-o-que-custar.
E assim vamos mergulhando em revisionismos. São tantos… mas vou me ater àqueles voltados à ditadura militar no Brasil. No meu caso, tenho a “sorte” (péssimo termo, mas peço que entendam seu sentido) de ter experiências vivas na família que não deixam dúvidas sobre o horror que é o estado de exceção.
Para quem não pode contar com isso, obras como o filme “Ainda Estou Aqui” ajudam a materializar em nossa mente e em nossas vísceras o horror que é ser perseguido e torturado pelo Estado. O horror que é ser um cidadão sem direitos. O desespero que é lidar com a violência institucional. A solidão que é ficar décadas em estado de suspensão sem poder velar um corpo desaparecido.
Não podemos negar que, ainda hoje, tudo isso acontece sob recortes de classe e raça – sobre isso, sugiro este artigo interessante da Professora Ester Rizzi, da USP (Universidade de São Paulo). De toda forma, isso não nos permite relativizar a violência institucionalizada do passado. As prisões, mortes, torturas, desaparecimentos. “Ainda Estou Aqui” nos lembra que a ditadura ainda nos assombra, ainda está sendo disputada e sua história ainda precisa ser contada. Para aqueles que – aí sim – tiveram a sorte de não ter nenhum familiar vivendo sua violência na carne, não quer dizer que ela não aconteceu.
É preciso cultivar essa memória difícil. Aconteceu. A ditadura aconteceu. É preciso lembrá-la, para não repeti-la. Não é possível que haja meias palavras para novas tentativas de golpes de estado, nem para silenciamentos travestidos de anistias. Sem revisionismos. Porque, como disse Tia Nair, “(…) então o pau de arara, realmente, é um instrumento de tortura barra pesada… Quem passou por ele não vai esquecer nunca. E às vezes as pessoas: ‘Você perdoaria quem te torturou?’. Não tem perdão para tortura. Você pode apaziguar ela um pouco dentro de você. Mas não existe razão para um ser humano ser torturado e não existe razão alguma para ele ser perdoado. Nenhuma”.
Vivian Barbour é advogada, professora e urbanista. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela USP, é membro da Comissão de Direito Urbanístico da OABSP e co-coordenadora do Comitê Latino Americano e Caribenho da Association of Critical Heritage Studies (ACHS).