A busca por África e os processos de reafricanização

Ensaio

A busca por África e os processos de reafricanização
Foto: André Mellagi/Flickr

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Babalawo Vitor Friary


01 de março de 2025

O processo de reafricanização não é um mero retorno ao passado; é, acima de tudo, um reencontro ancestral, que conecta tradições locais e globais

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As religiões afro no Brasil, como o candomblé e a umbanda, têm demonstrado vitalidade e uma enorme capacidade de adaptação ao longo dos séculos, enfrentando preconceitos, perseguições e transformações sociais. No coração dessas práticas está a busca pela ancestralidade africana, um movimento que transcende fronteiras e que muitos chamam de reafricanização.

A reafricanização reflete um desejo profundo de conexão com raízes ancestrais, e, ao mesmo tempo, revela tensões entre tradições locais e transnacionais. Por meio do diálogo entre práticas rituais, adaptações culturais e a expansão do axé, isto é, força vital e energia primordial, as religiões afro se mostram não apenas resilientes, mas em constante evolução.

O termo reafricanização descreve um processo de reaproximação com as práticas tradicionais africanas, especialmente daquelas perdidas ou fragmentadas durante a diáspora. Stefania Capone, antropóloga, doutora pela Université de Paris e diretora de pesquisa no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica da França), conta que: “reafricanizar não é simplesmente retornar ao passado, mas renovar práticas já existentes, reforçando o axé e a conexão dos cultos afro com fundamentos africanos”.

Essa busca é também subjetiva, refletindo as experiências pessoais e comunitárias dos adeptos. Muitos viajam a países como Nigéria e Benin em busca de autenticidade ritual. No entanto, como Capone observa, essa busca muitas vezes resulta em descobertas inesperadas: “os rituais africanos não são puros no sentido moderno; são híbridos, formados por séculos de interação entre culturas”.

A reafricanização reflete um desejo profundo de conexão com raízes ancestrais, e, ao mesmo tempo, revela tensões entre tradições locais e transnacionais

Nas minhas viagens ao continente africano, tendo vivenciado de perto cerimônias familiares dos voduns, encontrei ritos que misturavam línguas e práticas africanas diversas, tanto de origem Fon quanto Yorubá, como o uso de cânticos em idioma Fon e Yorubá simultaneamente.

Para o professor Ayodeji Ogunnaike, pesquisador nigeriano e doutor pela Harvard University em estudos africanos e afro-americanos, essa flexibilidade é parte essencial das cosmologias africanas: “a autenticidade histórica dos ritos importa menos do que a eficácia espiritual. Se agrada ao orixá ou vodun e funciona, então é válido”.

Na África diaspórica, a busca por pureza ritual por parte dos adeptos — ou seja, a vontade de separar as identidades religiosas, em especial as origens nagô yorubá dos povos fon vodun, por exemplo — têm gerado tensões significativas há décadas. Quando, na verdade, historicamente, a formação dos cultos afro no Brasil foi sempre um encontro nagô-vodun, ou seja, fruto das trocas culturais e afrorreligiosas de africanos provenientes de diferentes etnias e comunidades africanas, que se encontraram aqui e resistiram na preservação dessa herança cultural e religiosa, mesmo sob o risco de serem criminalizados e perseguidos.

Portanto, muitos novos adeptos da religião dos orixás enxergam nos rituais africanos realizados na Nigéria e no Benin uma “autenticidade” que sentem que falta nas práticas locais. Contudo, essa ideia de pureza é amplamente questionada por estudiosos. Ayodeji destaca que na África: “os praticantes se preocupam com o que funciona, não com a origem. Incorporar novos elementos, divindades de outros povos, e elementos como moedas estrangeiras e até perfumes contemporâneos, é parte da tradição”.

Capone complementa essa visão ao afirmar que o conceito de pureza ritual é muitas vezes mais uma construção moderna do que uma realidade cultural. No Brasil, a busca por rituais “mais puros” tem levado alguns adeptos a abandonar práticas anteriores, como a Umbanda ou o Candomblé, em favor do Ifá tradicional, por exemplo. Porém, essa ruptura nem sempre é produtiva. Como Capone explica: “o candomblé sempre foi uma religião de acumulação de axé. Jogar fora o que foi vivenciado vai contra sua essência integradora”.

Para Olóye Felipe, que carrega em si várias tradições africanas, por ser Babalorixá de candomblé, Juremeiro e também Babalawo, o convívio dessas inúmeras forças ancestrais de diferentes tradições dentro do seu templo é sinônimo de expansão de axé e aprofundamento de conhecimento. Ele me esclarece que uma das coisas a serem respeitadas é não confundir um culto com o outro. Respeitar a particularidade e o fundamento de cada divindade é importante para que a reunião de axé dê bons frutos.

Dofono Hunxi, iniciado no Candomblé Jeje Savalu e no culto a Orunmilá, acredita que alguns adeptos vão receber esse chamado para esse processo de expansão e que o estudo é muito importante dentro das práticas afrorreligiosas. Ele explica que o processo de reafricanização, a partir da iniciação em Ifá, trouxe para ele mais ferramentas que lhe permitiram alinhar-se com seu destino e viver em maior harmonia consigo mesmo.

Um dos aspectos mais marcantes das religiões afro é sua capacidade de sincretizar. Historicamente, tradições africanas sempre absorveram elementos externos com o objetivo de fortalecer suas práticas. Capone descreve esse processo como um “sincretismo positivo”, o interafricano, que permite a reconstrução de conhecimentos perdidos durante a diáspora. Esse sincretismo positivo se contrapõe, segundo Capone, àquilo que é muitas vezes definido como um “sincretismo negativo”, o sincretismo afrocatólico, que tende a afanar a potência da africanidade.

Essa dinâmica é igualmente evidente na África contemporânea, onde práticas rituais continuam a se expandir. Ayodeji relata exemplos de Babalawos que incorporam elementos modernos de outras culturas, como a pólvora ou as moedas estrangeiras, em seus rituais. Para ele, essa adaptabilidade é fundamental para a expansão do axé: “As religiões afro são vivas e em constante evolução. A migração e a mistura de cultos não é um obstáculo, mas uma força que conecta culturas e fortalece o axé”.

No Brasil, esse sincretismo se manifesta em movimentos como o Esin Ibilé, que promove um diálogo entre práticas yorubás tradicionais e o Candomblé, e por vezes a própria Umbanda, reforçando o caráter transnacional dessas religiões. Esin Ibilé é o nome que se dá às práticas e ritualísticas como praticadas hoje em territórios yorubá, incluindo o culto à divindade Orunmilá, divindade do povo yorubá da sabedoria e do conhecimento.

O culto a Orunmilá, também conhecido como culto de Ifá, tem crescido exponencialmente no Brasil, trazendo novas possibilidades e também tensões entre os segmentos afrorreligiosos. Ayodeji observa que Ifá se destaca entre os cultos dos orixás por sua abrangência e estrutura: “Ifá oferece uma visão unificada do cosmos, conectando todas as divindades africanas em um único sistema”.

Essa característica tem atraído adeptos em busca de rituais mais estruturados e de uma conexão direta com os fundamentos africanos. Contudo, a expansão de Ifá também desafia hierarquias estabelecidas no Candomblé e na Umbanda, gerando conflitos sobre autoridade e legitimidade. Capone aponta que: “as tensões entre os diferentes segmentos refletem disputas por poder e interpretações sobre o que é ‘mais correto'”.

Assim como o professor Ayodeji, eu concordo que essas tensões não devem ofuscar o propósito da filosofia central do culto à ancestralidade africana: o fortalecimento do axé pessoal e coletivo, e a busca por ferramentas filosóficas e metodológicas que ajudem a trazer melhores soluções para os problemas cotidianos da vida das pessoas.

Portanto, deixo aqui a reflexão de que o processo de reafricanização não é um mero retorno ao passado; é, acima de tudo, um reencontro ancestral, que conecta tradições locais e globais. As religiões afro, com sua capacidade de incorporar novos elementos e expandir axé, demonstram uma vitalidade única em um mundo em constante transformação. No Brasil, a busca pela ancestralidade africana e a renovação espiritual não apenas fortalecem a identidade cultural, mas reafirmam o poder das tradições negras como forças de resistência, adaptação e crescimento.

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Vitor Friary é doutorando em estudos africanos pelo Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, Babalawo e Babalorixá, mestre em psicologia e autor de livros no Brasil e nos EUA.

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