A vida das mulheres em tempos de pandemia

Debate

A vida das mulheres em tempos de pandemia
Foto: Murad Sezer/Reuters

Hildete Pereira de Melo


13 de abril de 2020

Um dos temas que a covid-19 trouxe à tona para a sociedade brasileira foi a dimensão da divisão sexual do trabalho em relação ao trabalho não-pago realizado para a reprodução da vida no interior das famílias

O ano de 2020 chegou diferente e, como escreveu o poeta “de repente, não mais que de repente … do riso fez-se o pranto” (“Soneto da Separação”, Vinicius de Morais), a pandemia de covid-19 irrompeu com um realismo cruel na vida da população mundial e, no Brasil, passado o carnaval, explodiu alarmando a população. E em uma sociedade já combalida pela crise econômica com milhões de desempregados e desalentados, a tragédia da pandemia expõe de forma dramática as desigualdades presentes no país.

Foi em um cenário de uma economia estagnada que explodiu a crise da saúde e o Brasil, aos trancos e barrancos, teve que parar para contragosto do presidente da República. No dia 24 de março de 2020, a ONU Mulheres lançou um apelo a todos os países da América Latina e do Caribe para que dessem uma atenção especial às mulheres. E, nesta crise da covid-19, é preciso assegurar que as vozes — necessidades e demandas — das mulheres estejam no centro da resposta dos governos (federal, estaduais e municipais), nas políticas públicas de atendimento à população como resposta à crise. Porque elas são essenciais na luta contra a covid-19, ao enfrentarem os desafios dos cuidados, na família e no trabalho, como profissionais da saúde, trabalhadoras domésticas, trabalhadoras informais. Na miudeza da vida cotidiana da família e do trabalho, elas serão as mais afetadas pela crise. Mas são ignoradas pelas políticas econômicas sociais do atual governo.

O trabalho está na base da produção do viver em sociedade e é um mediador das relações das pessoas, também é por meio dele que se organiza o exercício do poder e a dominação na sociedade. No Brasil, ao longo dos últimos 70 anos, a participação das mulheres na força de trabalho cresceu, de 13,6% da PEA (População Econômica Ativa) em 1950, para 44,1% em 2000 (IBGE, Censos, 1950 e 2000) e, desde então, essa participação continua nesse patamar até 2017. Portanto, continua proporcionalmente menor que a dos homens ao longo dessas décadas. A importância desses números é que eles atestam que, na vida cotidiana, há uma dependência econômica das mulheres e que nos segmentos mais pobres da população isso é ainda mais dramático, sobretudo quando se consideram as mulheres pretas e pardas.

As mulheres estão mais concentradas nos setores de educação, saúde, serviços sociais, serviços domésticos remunerados, alojamentos, alimentação, atividades que estão diretamente relacionadas à reprodução da vida. E os homens estão concentrados na agropecuária, indústria, construção civil, atividades relacionadas à produção dos bens materiais. Assim, as mulheres estão mais presentes nos setores produtivos que apresentam menor remuneração e piores coberturas sociais, e ganham em média cerca de 25% menos que os homens, mesmos com cargos e qualificação semelhantes. Portanto, a ida massiva ao mercado de trabalho no Brasil não significou a construção da igualdade entre homens e mulheres no mundo do trabalho . Essa realidade está presente na vida das mulheres em todos os países e, neste momento, o cruzamento das duas esferas (produtiva e doméstica) diante da pandemia desnuda a permanência da sobrecarga de trabalho das mulheres ao longo dos tempos.

Na realidade, a crise econômica brasileira tem possibilitado um deslocamento do trabalho formal (com carteira de trabalho) para o informal e, de forma perversa: 82% desses novos postos de trabalho foram ocupados por mulheres negras, grande parte delas no emprego doméstico, sendo 71,2% desses postos de trabalho informais, e as demais são trabalhadoras por conta própria (ambulantes e cuidadoras). Uma das consequências da crise econômica foi o crescimento do empreendedorismo e as mulheres são a maioria das microempreendedoras individuais e, provavelmente, são as “informais” que migraram diante do desemprego para essas novas formas de trabalho. Outro aspecto que devemos chamar atenção é que cerca de 45% dessas mulheres são responsáveis pela família, e a perda de rendimentos afeta seus filhos e dependentes, tornando toda sua família um batalhão de miseráveis.

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