Qual a atualidade da ideia de ‘Guerra Fria’ entre potências
Juliana Sayuri
25 de setembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h28)Para Sidnei Munhoz, mundo enfrenta um novo tipo de conflito, não mais protagonizado por ogivas nucleares, mas ciberataques, algoritmos e armas culturais
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Donald Trump e Xi Jinping se cumprimentam em encontro do G20 de 2019
Na 75ª sessão anual da Assembleia-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), os presidentes das maiores economias do mundo, Estados Unidos e China, defenderam diferentes projetos de mundo : o americano Donald Trump citou o nacionalismo; o chinês Xi Jinping, o multilateralismo (ações coordenadas entre diferentes países).
Os dois países rivalizam no campo comercial, mas também tecnológico, militar, político e ideológico – Trump já atribuiu diversas vezes a responsabilidade pela pandemia de covid-19 à China, cujo regime comunista é citado pelo governo americano como uma “ameaça ”.
Diante da escalada de tensões, ameaças e acusações, a imprensa internacional e especialistas de relações internacionais têm se referido a uma“ nova Guerra Fria ” ou “ Guerra Fria 2.0 ”, um conflito indireto como o que ocorreu entre o final da década de 1940 e o início da década de 1990 entre Estados Unidos (capitalista) e União Soviética (comunista).
“[A China] não tem a intenção de travar uma guerra fria ou quente com nenhum país”, declarou Xi Jinping, no discurso gravado para a Assembleia-Geral da ONU, na terça-feira (22).
“Temos um novo tipo de guerra em andamento, e, diferentemente da anterior, as principais celebridades não são as ogivas nucleares. Estamos a experimentar conflitos híbridos em que redes desestabilizam regimes democraticamente eleitos e ciberataques violam soberanias nacionais”, diz o historiador Sidnei Munhoz, professor visitante sênior da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e coordenador do projeto internacional Opening the Archives (Abrindo os Arquivos) , na UEM (Universidade Estadual de Maringá).
Munhoz está lançando o livro “Guerra Fria: História e Historiografia” (Appris, 2020), fruto de duas décadas de investigação acadêmica. Nesta entrevista ao Nexo , o autor discute a atualidade da ideia de Guerra Fria, expressão cada vez mais corrente.
Sidnei Munhoz A Guerra Fria (1947 a 1991) deixou de existir. O processo histórico assim denominado possuía dinâmicas distintas das do tempo presente. Na verdade, o termo “guerra fria” foi utilizado em ocasiões, anteriores e posteriores àquela quadra histórica, para designar conflitos não declarados. [O escritor irlandês] Fred Halliday diz que o primeiro emprego de “guerra fria” data do século 14, em referência ao conflito entre cristãos e muçulmanos, em um cenário em que não havia combates diretos, mas também não cessavam as hostilidades. [O teórico alemão] Eduard Bernstein o empregou para explicar a corrida armamentista do final do século 19.
Em 1945, [o escritor britânico] George Orwell o empregou para caracterizar uma “guerra não declarada” entre os antigos aliados da Segunda Guerra Mundial. Foi a partir de 1947, influenciados pelos escritos de Walter Lippmann [jornalista estadunidense], que o conflito entre o bloco capitalista e o bloco soviético, até então referido como “nova guerra mundial” ou de “Terceira Guerra Mundial”, passou a ser nomeado como Guerra Fria. Na URSS ( União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), no entanto, falava-se em “guerra imperialista”. Apenas tardiamente o Kremlin passou a empregar o termo “Guerra Fria” também.
Na academia, a expressão adquiriu status de conceito. Paradoxalmente, porém, em outros espaços, expressou um senso comum, que incorporava a percepção de mundo da época. A dimensão desses acontecimentos, por vezes, era extraordinária, como em 1962, quando a crise dos mísseis cubanos ameaçou a humanidade com uma possível guerra nuclear.
No presente, o termo já foi empregado para fazer referência às tensões entre Estados Unidos e Rússia ou China e também para designara corrida pela vacina para a covid-19 . A expressão até pode ser empregada no contexto atual, mas é preciso sublinhar sempre que são processos distintos e que não é possível usar o antigo modelo para interpretar as novas dinâmicas globais, que têm em seu bojo traços de um passado conhecido, mas, ao mesmo tempo, são portadoras de significantes ainda não plenamente compreendidos. A velha receita não dá conta de explicar a complexidade do tempo presente.
Sidnei Munhoz Essa é uma questão complexa e, por vezes, emergem respostas apaixonadas. Stálin foi um ditador cruel que modernizou a URSS a um custo de algo entre 10 e 20 milhões de vidas. O país se tornou a segunda potência global. Mais que isso, como afirmou [o historiador britânico] Eric Hobsbawm, seu regime salvou as democracias capitalistas da destruição pelas forças do Reich [Alemanha nazista], pois quem de fato ganhou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi o Exército Vermelho.
Contudo, há de se reconhecer que a URSS somente pôde alcançar aquele patamar de combate em decorrência do vigoroso suporte dos EUA, por meio do Lend-Lease [programa através do qual os Estados Unidos emprestaram armas e outros suprimentos a Reino Unido, França, URSS, China e outras nações aliadas, entre 1941 e 1945].
Segundo o historiador militar e coronel do Exército dos Estados Unidos David M. Glantz, no entanto, 8 em cada 10 soldados das forças do Eixo foram mortos em combate na Europa pela ação do Exército Vermelho. Como resultado, ao final daquele conflito global havia uma supremacia de forças terrestres soviéticas na Europa Central e Oriental na proporção de 3 para 1, se comparadas com a soma das forcas estadunidenses, britânicas e de outros aliados.
Sidnei Munhoz É plausível empregar o termo para se referir aos conflitos atuais, mas não se pode pensar essas novas contendas como repetição ou reverberação tardia dos eventos pregressos.
Ao final da Guerra Fria, intelectuais comprometidos com o novo projeto global estadunidense, tendo como expoente [o filósofo nipo-americano] Francis Fukuyama, propalaram a ideia do “fim da História” [que dizia que a democracia liberal e o livre mercado capitalista correspondiam ao fim da evolução sociocultural]. Outros fizeram referência a um mundo unipolar – a afirmação também não me parece correta, em que pese a supremacia militar dos Estados Unidos.
Os Estados Unidos ainda são uma potência econômica colossal, mas seu peso na economia global se reduziu marcadamente. Destaque-se a contínua migração do centro dinâmico do capitalismo dos Estados Unidos para a Ásia. O país enfrenta um processo de erosão da sua hegemonia, mas não sabemos aonde isso vai desembocar.
Em paralelo, o processo de globalização atual é mais intenso e o fluxo de capitais é muito rápido. A cultura se tornou uma arma ainda mais poderosa do que durante a Guerra Fria.
Temos, portanto, um novo tipo de guerra em andamento, e, diferentemente da anterior, as principais celebridades não são as ogivas nucleares, embora elas mantenham sua importância. Estamos a experimentar conflitos híbridos em que redes desestabilizam regimes democraticamente eleitos e ciberataques violam soberanias nacionais e derrubam economias.
A manipulação da opinião pública por intermédio de algoritmos nessas redes molda escolhas individuais, sejam elas de consumo, de valores ou relacionadas a processos eleitorais. O breve processo de expansão do modelo liberal democrático está ameaçado, uma vez que poucas corporações da área da informação atassalham a já limitada democracia formal em defesa de seus lucros. No entanto, o processo de desmantelamento dos Estados-nação os tornou quase impotentes e capturados.
No momento, precisamos de mais Estado, mais regulação e controle dos mercados ou certamente caminharemos rumo a conflitos civis em diferentes áreas do planeta e esse cenário caótico abrirá a portas para a nova distopia.
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