‘Escola e empresa têm de monitorar saúde mental pós-retomada’
Redator
01 de setembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h19)No Setembro Amarelo, a psicóloga Karen Scavacini fala ao ‘Nexo’ sobre a estabilidade nos números de suicídio na pandemia e os desafios diante do retorno a atividades presenciais
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Passeata no Rio de Janeiro do Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio, em 2019
Num momento em que a vacinação avança e as atividades são retomadas no Brasil, escolas e empresas precisam estar preparadas para acolher pessoas traumatizadas emocionalmente pela pandemia, afirma a psicóloga Karen Scavacini, diretora científica da Abeps (Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio) e fundadora do Insituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio.
Scavacini faz parte de um grupo internacional de pesquisadores que tem monitorado o impacto da crise sanitária sobre as taxas de suicídio pelo mundo, o International Covid Suicide Prevention Research Consortium. Contrariando previsões, os dados disponíveis até agora indicam que não houve aumento significativo no número de suicídios em 2020, apesar do mal-estar gerado pelo isolamento social e do luto coletivo pelas mortes por covid-19.
O Nexo entrevistou a psicóloga por ocasião do Setembro Amarelo , campanha nacional de prevenção ao suicídio que tem início nesta quarta-feira (1). Ela explica a importância de sustentar a atenção e os cuidados com a saúde mental, mesmo com o afrouxamento de restrições sociais.
KAREN SCAVACINI Na história das grandes pandemias, não costuma mesmo haver aumento no número de suicídios. O aumento costuma acontecer depois da crise. Pode ser que isso aconteça novamente, mas ainda é difícil de afirmar. Por ora, dá para observar que as pessoas estão muito impactadas e cansadas. É uma mistura de cansaço, indignação, luto, com aumento nos casos de ansiedade e depressão. A saúde mental ficou abalada. Isso é natural. Com tudo que nós passamos, é até estranho que alguém não tenha tido algum abalo na saúde mental.
Mas há alguns motivos que podem ter levado à estabilização ou diminuição das taxas de suicídio. Primeiramente, nunca se falou tanto de saúde mental como agora. Então, talvez agora o prognóstico seja diferente, porque as pessoas estão procurando ajuda e tentando se informar. O suicídio também não acontece de forma tão causal. Não é por causa de um único acontecimento que em seguida se comete suicídio. Nós olhamos para muitos fatores: sociais, culturais, econômicos, psicológicos, psiquiátricos. E situacionais, como no caso da pandemia.
O fato de estarmos em casa, com mais cuidado e acompanhamento da família, pode ter inibido o comportamento suicida nos jovens. A sensação de pertencimento também foi levantada em alguns países como um fator importante: o fato de as pessoas se ajudarem, de agirem em prol de um bem comum. Faz parte disso uma observação maior [da saúde mental], uma pausa na rotina usual, a possibilidade de viver de uma maneira diferente. Esses são fatores que contribuem com a proteção contra o suicídio.
Por outro lado, a tripla jornada de trabalho das mulheres na pandemia, o estresse do trabalho remoto, o aumento do uso de álcool e drogas e da violência doméstica são fatores preocupantes. No Brasil, os dados de 2020 e 2021 ainda são preliminares, então ainda vai demorar um pouco mais para que possamos ter uma visão exata do que está acontecendo.
Depois da pandemia, a população vai continuar muito traumatizada. Pessoas mais vulneráveis já antes desse trauma tendem a ter um risco de piora, que pode ou não desencadear comportamento suicida. As pessoas estão voltando de forma diferente ao trabalho e ao ensino presencial. Precisa haver uma preparação das escolas, dos professores — que também tiveram a saúde mental muito abalada —, e das empresas, para esse acolhimento emocional. Para a promoção de saúde mental, a identificação de pessoas com transtornos e encaminhamento aos serviços de saúde.
KAREN SCAVACINI Tanto as escolas quanto as empresas podem ter locais onde os funcionários ou estudantes saibam que podem buscar ajuda. Na empresa, às vezes esse local é a área médica; na escola, um psicólogo escolar, psicopedagogo ou orientador educacional.
É preciso ficar atento a sinais de sofrimento emocional. No caso dos alunos, grandes quedas no rendimento escolar, mudanças bruscas de atitude, maior isolamento, agressividade, dificuldade de concentração. Muitos alunos que sofriam bullying na escola estão até em situação melhor tendo aulas em casa, e eles vão voltar a um ambiente onde sofriam violência escolar. Isso precisa ser observado pelas escolas.
Nas empresas, também: funcionários que tenham faltas sem justificativa ou quedas no ritmo de produção, que estejam mais agressivos, irritados, tristes. É preciso acompanhar isso, entendendo que as pessoas vão enfrentar desafios para se adaptar à vida depois da pandemia e vão precisar de um tempo para poder lidar com as mortes e as perdas.
KAREN SCAVACINI No geral, houve um aumento no uso de medicação psiquiátrica durante a pandemia, e isso mostra como as pessoas ficaram abaladas. Mas muitas pessoas com fobia social se deram bem com o fato de estarem em casa e voltam agora para uma situação de desafio.
Essa pessoa precisa primeiro entender quais são os seus gatilhos, e o que ela consegue mudar no seu comportamento. Talvez ela precise continuar praticando mais proteção, o que não é de todo ruim — desde que isso não tenha um impacto tão significativo no seu dia a dia, que ela não pare de sair de casa completamente, ou que o sofrimento da saída não seja muito grande. Aí é hora de procurar ajuda e falar com um profissional.
Mas o que mais vemos são pessoas indo para o outro extremo e ignorando que a gente ainda está numa pandemia. Essas pessoas existem em um número muito maior do que aquelas que continuam tendo os mesmos cuidados desde o início. O que eu tenho percebido é que as pessoas estão ávidas por contato.
KAREN SCAVACINI Sem dúvidas, relacionamentos bons devem ser restabelecidos. Mas é um bom momento para reavaliar os nossos contatos. Talvez seja uma oportunidade para diminuir ou não retomar o contato com pessoas que não nos faziam bem, pessoas tóxicas.
É fundamental também perceber quando alguém não está bem e oferecer ajuda, seja essa pessoa próxima ou não. Isso pode ser feito tanto de maneira presencial como online, porque as pessoas dão alguns sinais nas redes sociais: publicando fotos, ou escrevendo que não estão bem, que estão muito cansadas, que querem desistir de tudo. É importante conversar com essas pessoas, dizer que está preocupado, sem julgamentos, e ouvir mais do que falar. Se a pessoa preferir não conversar, o ideal é indicar algum serviço de saúde.
KAREN SCAVACINI Vai deixar sequelas, com certeza, toda ferida deixa uma cicatriz. A nossa geração vai ter essa memória do que a gente passou. É claro que o impacto em cada um vai ser muito diferente. Depende do que aconteceu com a pessoa, se ela perdeu pessoas próximas ou não, se ela perdeu emprego ou renda. Vai depender das oportunidades que ela vai ter depois da pandemia, se ela vai conseguir ter acesso a tratamento, se ela consegue ter comida no prato. A gente vai passar ainda uns bons anos tentando lidar com esse trauma, para entender direito quais ações precisam ser feitas para mitigar esses danos.
Na pandemia, muitos grupos se uniram para oferecer acolhimento e escuta, e isso é um ponto muito bonito do que aconteceu. Espero que essa solidariedade possa continuar. Quando as pessoas se mobilizam — cada um de nós, os especialistas, a mídia, o poder público — a possibilidade de haver danos grandes diminui bastante.
Se você precisa de ajuda, é possível contatar o CVV (Centro de Valorização da Vida), que realiza apoio emocional e prevenção de suicídio, 24 horas por dia, por meio do número de telefone 188, chat ou email .
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