‘Falar de sexualidade e deficiência é um duplo tabu’
Mariana Vick
23 de setembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h24)Ao ‘Nexo’, a psicóloga Ana Cláudia Bortolozzi desfaz mitos sobre o tema e explica por que direitos sexuais e reprodutivos devem fazer parte do processo de inclusão
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Casal anda de mãos dadas
Se falar de sexualidade é um tabu, para pessoas com deficiência esse tabu é duplo, segundo Ana Cláudia Bortolozzi, professora de psicologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e autora de “Sexualidade e deficiências” (Unesp, 2007), que será relançado pela Editora Gradus.
Mitos que difundem a ideia errada de que pessoas com deficiência são incapazes de manter relações conjugais ou de sentir desejo sexual impedem esse grupo de usufruir de seus direitos sexuais e reprodutivos , que ainda são invisibilizados no debate sobre inclusão, segundo ela.
Nesta entrevista ao Nexo , Bortolozzi desfaz ideias equivocadas sobre a sexualidade de pessoas com deficiência e avalia o estado de seus direitos sexuais e reprodutivos. Fala também sobre os pontos fracos das políticas públicas no país e propõe caminhos possíveis para haver mais inclusão.
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI Se qualquer pessoa olhar para o lado, ela vai saber identificar o que é uma deficiência. Mas é difícil definir esse conceito. Reconhecemos a deficiência como uma diferença em relação ao padrão de normalidade imposto — esse que incorporamos desde que nascemos. O que é normal? É normal enxergar, andar, ouvir… Existem padrões em relação a essas funcionalidades, embora eles tenham mais a ver com imposição social do que com o fato de serem “normais” ou não.
Em resumo, o conceito de “normal” é muito complexo. Mas ele tem tudo a ver com o conceito de deficiência. Estabelecemos o que é deficiência e diferença quando temos essa normalidade como contraponto. Se tivéssemos uma sociedade inclusiva, talvez a deficiência não existisse, não fosse razão de estudo ou de comentários. Seria uma diferença como qualquer outra.
Mas, na medida em que não temos acessibilidade, equidade e justiça social, diferenciamos as pessoas que têm desvantagens sociais em relação às outras. Me refiro aqui ao modelo social de deficiência, que não a define a partir de um conceito médico. Segundo esse modelo, é a sociedade quem julga quem são as pessoas mais ou menos deficientes, e o faz a partir do contexto social, histórico, econômico e político.
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI O quadro sexual e reprodutivo das pessoas com deficiência é muito mal estabelecido na prática. Os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte dos direitos humanos, portanto, toda pessoa tem esses direitos, inclusive as que têm deficiência. Mas, quando nos referimos a elas, vemos que ainda precisamos lutar por esses direitos. É como discutir os direitos das mulheres, das minorias. Esses direitos não estão sendo garantidos.
Se olharmos a Lei Brasileira de Inclusão, ou o Estatuto da Deficiência, vamos ver que os direitos sexuais e reprodutivos estão garantidos na legislação. Mas isso não sai do papel. Na prática, o tema é muito invisibilizado. Os profissionais não têm formação para atender às pessoas com deficiência, as clínicas ginecológicas não têm tradutores em libras para dialogar com mulheres surdas, não há rampas de acesso nos estabelecimentos de saúde… Não há acessibilidade, de modo geral. É possível citar vários outros problemas. Se as pessoas com deficiência querem ou não ter filhos, temos condição de acolher essas necessidades? Estamos preocupados com isso?
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI É porque temos muitos preconceitos. Primeiro, por exemplo, existe o mito da assexualidade: parece que as pessoas com deficiência não têm vida sexual ou, quando têm, ela é aberrante, atípica, diferente. Pensamos que as pessoas com deficiência são sempre infelizes e incapazes. Voltando ao parâmetro do que é normal, pensamos que quem se encaixa nesses padrões têm mais direito de ter namoros, casamento e filhos, enquanto as pessoas com deficiência, “coitadas, nunca vão ter vida sexual, prazer”, etc.
Não consideramos a sexualidade como parte da vida das pessoas com deficiência. Falamos muito sobre a inclusão dessa população nas escolas e no trabalho — mas onde está a inclusão sexual? Quem está lutando por esses direitos? É uma luta invisível. Poucas pessoas falam sobre o assunto, incluindo familiares, ou as próprias pessoas com deficiência, que incorporam a ideia de que não precisam ou não podem falar sobre sexualidade.
Falar de sexualidade já é um grande tabu: as pessoas têm vergonha, não aprenderam a falar sobre isso, não gostam. Nesse caso, estamos tratando de um duplo tabu. Falar de sexualidade de pessoas com deficiência é um duplo tabu.
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI Em primeiro lugar, a sexualidade é diferente de pessoa para pessoa — seja uma pessoa com deficiência ou não. Ninguém tem uma sexualidade igual à outra. São sexualidades. Além disso, as pessoas são diferentes: não existe uma pessoa com deficiência. São pessoas com deficiências diversas. Existe a deficiência sensorial, a física, a intelectual, assim como existem mulheres, homens, heterossexuais, homossexuais, obesos, magros… Cada pessoa é única. Todo mundo é diferente.
O erotismo e o desejo sexual são humanos. Todo mundo tem. O que muda é a forma como esse desejo se expressa. Essa expressão pode mudar por fatores como a cultura, a educação ou a condição econômica. Existe uma série de condições que favorecem a expressão do desejo sexual ou não. Não tem a ver com a deficiência ou não de determinada pessoa, mas com o contexto em que ela vive. De novo, a deficiência é um fenômeno socialmente construído.
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI Falar de sexualidade é fundamental para a inclusão, porque o ser humano é íntegro. A sexualidade faz parte de toda pessoa. Afeto, amizade, namoro, vida sexual e reprodutiva estão nas vidas de qualquer pessoa. Todo mundo deseja expressar essas formas de amor e de afeto. Como podemos excluir esse direito de outra pessoa, a despeito de qualquer dificuldade que ela tenha? Não dá pra tirar a inclusão sexual do processo de inclusão. Essa é uma questão importantíssima em termos de direitos humanos.
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI As políticas públicas são bonitas no papel, mas pouco aplicadas na prática. Não vemos as pessoas preocupadas com a população com deficiência. Os médicos são despreparados. Quando uma mulher cadeirante pensa em ter filhos, por exemplo, muitos médicos não sabem se pode, se não pode, se esse é um parto de risco… Vi pessoas com deficiência irem ao médico para dizer que querem ter filhos e serem desencorajadas, seja medo ou preconceito.
É preciso haver educação [para a sexualidade de pessoas com deficiência]. Nesse ponto, as políticas públicas falham. Elas dão instrumentos legais para a inclusão de pessoas com deficiência, mas, sem formação de quem lida diretamente com esse grupo, os direitos ficam só no papel. Além disso, muitas pessoas com deficiência mal sabem que há leis que as protegem. Em outros tempos, as leis tiravam os direitos civis das pessoas com deficiência, proibindo que se casassem ou tivessem filhos, mas hoje isso mudou.
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI É preciso educação. Ler sobre o tema, se instruir, além de mostrar as pessoas com deficiência que namoram, casam, têm filhos…
A inclusão favoreceu muito a visibilidade desse grupo e de seus direitos. Se escondemos essas pessoas e as deixamos privadas do convívio, alimentamos preconceitos — como o mito de que elas são assexuadas. Esse é um mito, uma bobagem. [Eventual ausência de vida sexual] não tem nada a ver com a deficiência, mas com a falta de oportunidades, de habilidades sociais, de educação sexual, de aprender a exteriorizar o erotismo, como todo mundo aprende. Fatores como a superproteção da família, o próprio preconceito e a falta de convivência contribuem para isso.
Para superar esses problemas, precisamos de informação e preparo. Muito preparo, primeiro, das próprias pessoas com deficiência e de suas famílias, mas não só delas. Essa é uma questão que envolve todos nós.
Este conteúdo é parte do projeto de cobertura especial “Direitos reprodutivos sem deixar ninguém para trás”, que tem o apoio do Fundo de População das Nações Unidas no Brasil, órgão da ONU criado em 1969 com o objetivo de apoiar os países na utilização de dados sociodemográficos para a formulação de políticas e programas de redução da pobreza.
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