Entrevista

Como avança a nova Constituição do Chile, segundo esta deputada

João Paulo Charleaux

10 de junho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h35)

Amaya Alvez, membro da Assembleia Constitucional do Chile, fala ao ‘Nexo’ sobre a reforma da lei máxima do país, e dos riscos que o processo enfrenta

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FOTO: INSTAGRAM AMAYA ALVEZ

Constituintes chilenos e chilenas se abraçam e erguem os braços ao final de uma das sessões plenárias

Constituintes celebram conclusão de uma das etapas de trabalho da Assembleia Constitucional

Os 154 membros da Assembleia Constitucional do Chile têm até 4 de julho para entregar uma nova Constituição para o país. O prazo curto – de nove meses, prorrogados por mais três – tem feito o grupo trabalhar madrugadas adentro para fazer a reforma completa a tempo.

O Nexo conversou nesta quinta-feira (9) com Amaya Alvez, que faz parte da Comissão de Harmonização da Assembleia Constitucional, responsável por dar forma final ao texto. Ela havia encerrado os trabalhos às 6h da manhã e, no momento da entrevista telefônica, se deslocava ao aeroporto, às 8h, para tomar um voo, em viagem de trabalho. O ritmo frenético e o tempo curto ilustram as condições desfavoráveis.

FOTO: INSTAGRAM AMAYA ALVEZ

Amaya Alvez, de máscara, numa das salas de trabalho da Comissão de Harmonização

Amaya Alvez, em primeiro plano, durante trabalhos da Comissão de Harmonização da Assembleia Constitucional do Chile

A reforma constitucional é fruto de uma enorme pressão popular. Em 2019 e 2020, milhares de chilenos foram às ruas pedir mudanças estruturais no país. A convocatória foi considerada uma marco para reformar uma Constituição cujas bases foram redigidas ainda durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), embora muito de seu conteúdo tenha sido reformado desde então.

A nova Constituição terá de ser aprovada pelos 154 constituintes (eram 155, mas uma renunciou no meio do processo), antes de 5 de julho, quando a Assembleia se dissolve, ao chegar o prazo máximo de 12 meses, irrevogável. Em seguida, em 4 de setembro, os chilenos vão às urnas dizer se rechaçam ou aceitam essa nova Carta.

Um dos empecilhos para a aprovação é o discurso de uma parte grande da sociedade chilena, à direita, que não apoiou o processo e não se sente representada por seus resultados. Apenas 50% dos chilenos participaram do plebiscito que, em outubro de 2020, decidiu pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Em seguida, em maio de 2021, só 40% participaram da eleição em que foram escolhidos os 155 membros desta Assembleia. No fim, dos 155 eleitos, 65 são figuras independentes, desvinculadas dos partidos tradicionais. A direita só emplacou 38 constituintes, o que corresponde a 24% do total.

FOTO: RODRIGO GARRIDO/REUTERS – 12.11.2019

Homem caminha no meio de objetos em chamas numa barricada

Manifestante caminha entre barricadas em chamas em Valparaiso

Esse setor lançou informalmente um “ plano B ”, que consiste em promover mudanças pontuais na Constituição atual, feita nos anos 1980, por meio de emendas aprovadas por maioria de 4/7 do Congresso, caso o texto da nova Constituição, a ser proposto pela Assembleia Constitucional, acabe sendo rechaçado pela população no referendo de 4 de setembro.

Esse “plano B” significaria voltar atrás num quesito que já foi rechaçado pelos eleitores, mais de um ano antes. Quando foram às urnas, em outubro de 2020, os chilenos responderam a duas perguntas: quer uma nova Constituição? E quem deveria redigi-la? No fim, 78% disseram querer uma nova Constituição e 79% disseram que essa nova Constituição deveria ser escrita por uma assembleia eleita especificamente para esse fim. O “plano B”, de devolver a questão ao Congresso Nacional, seria ignorar o resultado dessa segunda pergunta.

Setores à direita da sociedade chilena não apenas começaram a tratar dessa possibilidade nos meios de comunicação como também lançaram sites na internet no qual propõem um “novo caminho”, que não seja a Constituição anterior nem a nova Constituição, proposta pela Assembleia. Um desses sites se chama justamente “ novo caminho ”. O outro, “ amarelos pelo Chile ”.

Nesta entrevista, Alvez rechaça veementemente essa possibilidade e explica os andamentos dos trabalhos na reta final.

Quais as principais mudanças que a nova Constituição propõe em relação à Constituição anterior?

Amaya Alvez Nós temos neste momento uma proposta de Constituição com 11 capítulos entre os quais há temas bastante inovadores. Temos, por exemplo, um capítulo que trata de participação democrática, que prevê mecanismos para o exercício da democracia direta no país.

Há um outro capítulo, que trata da função pública, que estabelece novos padrões de transparência e de obrigações para pessoas que desempenhem funções de Estado no Chile. Também há um capítulo que trata da organização e distribuição territorial de poder dentro do país [o Chile tem uma organização política extremamente centralizada e vertical, na qual, até 2021, o presidente nomeava cada um dos governadores das 16 regiões que conformam o país, equivalentes aos governadores dos estados brasileiros].

Por fim, há um capítulo sobre natureza e meio ambiente. Esse capítulo trata do equilíbrio necessário entre a proteção da natureza e a regulação [do uso] do meio ambiente, instituindo conceitos como o de bens naturais comuns e um estatuto da mineração [setor que responde por 10% do PIB chileno].

FOTO: RODRIGO GARRIDO/REUTERS – 02.07.2021

Mulher com máscara com o logo do Partido Comunista agita bandeira do Chile

Militante do Partido Comunista do Chile participa de manifestação em Vaparaiso

Que mecanismos de maior participação popular são esses?

Amaya Alvez Em primeiro lugar, institui uma maior participação em distintos níveis territoriais, como as regiões [estados] e as comunas [que são como as subprefeituras que existem em alguns municípios brasileiros, como São Paulo]. Institui ainda a figura da lei de iniciativa popular, mas não só isso. Está prevista também a figura da derrogação popular de lei, pela qual a união de um determinado número de assinaturas populares pode derrubar uma lei existente. Esses são mecanismos que ampliam a possibilidade de participação direta em democracia.

Dois temas tiveram muito apelo entre os que defenderam a convocação dessa Assembleia Constitucional: a reforma no sistema de previdência e a reforma no sistema de educação. O que vocês estão propondo em relação a isso?

Amaya Alvez O sistema de seguridade social não é matéria constitucional. O que se define na Constituição é a ideia de tratar de direitos sociais, de ter um sistema que aborde a velhice e a proteção da vida não ativa [profissionalmente] de uma forma distinta: solidária e que entregue apoio adequado. Usamos, portanto, termos indeterminados. Não definimos se seguirá havendo um modelo de capitalização individual. Isso é algo a ser definido por leis. Na sequência, deve vir um debate importante acerca de qual deve ser, então, esse modelo.

A direita fez muita campanha, dizendo que as contas de capitalização individual seriam expropriadas [o Chile tem um modelo de aposentadoria privada, no qual o contribuinte alimenta uma conta individual semelhante a uma poupança]. Disseram que as pessoas nunca mais poderiam acessar esse dinheiro, e, na verdade, isso nunca foi discutido.

Em relação à educação, está a proposta de um potente sistema nacional de educação, um sistema público. Mas esse sistema público pode ser integrado por órgãos estatais e não estatais. É importante esclarecer isso, pois às vezes as pessoas confundem o público com o estatal. O sistema nacional de educação pública que está sendo pensado pode ser integrado por instituições públicas e também privadas, desde que cumpram os padrões.

Em relação à organização política do Chile, há uma ideia de mudança na direção de um Estado plurinacional. O que é isso? O que muda, na prática?

Amaya Alvez Significa reconhecer que no Chile convivem diferentes nações num só território, num só Estado. É um só povo, com múltiplas nações. Isso é algo que pressupõe um simples reconhecimento do que é a realidade, e a realidade é que, desde o início, temos sido múltiplos, somos múltiplas nações, que só não tinham ainda sido reconhecidas.

Aceitar nossa diversidade, buscar maneiras de conviver com elas, com os povos originários, sabendo que somos um país plurilinguístico, que fala mais de uma língua, é algo que fará com que nos reencontremos. Tenho a esperança de que, uma vez que reconheçamos a realidade, será mais fácil nos reencontrarmos. Temos alguns conflitos grandes no Chile, especialmente com o povo mapuche . Essa aceitação do que somos pode ser o primeiro passo para que tenhamos uma vida melhor em conjunto.

FOTO: IVAN ALVARADO/REUTERS – 04.07.2021
Elisa Loncon ergue o punho cerrado ao tomar posse como presidente da Convenção Nacional do Chile

Elisa Loncon, presidente da Convenção Constitucional do Chile, no dia da posse


Quando os 155 constituintes tomaram posse, em julho de 2021, muitos analistas chilenos disseram que o fato de haver 65 membros independentes, sem experiência político-partidária ou parlamentar prévia, seria um problema. Passado um ano, como isso funcionou?

Amaya Alvez Hoje [9 de junho, manhã em que foi feita a entrevista telefônica], nós terminamos os trabalhos entre 5h e 6h da manhã porque venceu há alguns minutos o prazo para apresentar indicações sobre todo o texto revisado, para que sejam votadas a partir de sábado [votação interna, dos membros da Assembleia].

Nesse processo, fui me dando conta do quanto fomos aprendendo: a dialogar mais, a negociar mais. O fato de essas pessoas não pertencerem a grupos políticos é algo que pode ser visto como uma desvantagem, mas eu acho que, ao contrário, tem sido uma coisa boa. Eu mesma não tinha experiência prévia [Amaya Alvez é advogada, acadêmica e militante dos direitos humanos] e sinto que tem sido importante para cada um de nós reconhecermo-nos a partir do espaço que cada um ocupa e isso tem funcionado bem. Nós temos chegado a acordos que são muito fortes, muito potentes, entre pessoas que não tinham nenhuma experiência.

Em que medida a eleição de Boric para presidente influencia os rumos da constituinte?

Amaya Alvez Há muito em comum entre a proposta da Nova Constituição [aliança que desde 2013 promove o debate sobre a adoção de uma nova Carta no país] e a proposta de Gabriel Boric [que foi eleito presidente em dezembro de 2021, pela Frente Ampla, uma coalizão da nova esquerda chilena]. Há muitíssimos elementos em comum: os direitos sociais, a adoção de um sistema nacional de cuidados, a distribuição do poder territorial, todo um alinhamento em relação a temas de fundo que nos permite ter um horizonte em comum.

A direita tem apenas 38 dos 155 assentos da Constituinte. Qual o risco de que esse setor político não se sinta representado pela nova Constituição? E que consequências isso pode ter no futuro?

Amaya Alvez Esse risco sempre existiu. Era difícil que eles conseguissem eleger muitos representantes, pois estavam muito apegados à Constituição dos anos 1980.

Algumas pessoas desse setor falam da adoção de um ‘plano B’, para contornar o resultado dos trabalhos da Assembleia da qual a sra. faz parte. Como vê isso?

Amaya Alvez Eu não sei realmente qual seria esse ‘plano B’. Eu acredito que isso não existe. Isso é só uma forma de tentar fazer com que saia mais barato rechaçar [a nova Constituição], mas isso é uma coisa que não existe. Só existem duas opções: aprovar ou rechaçar. Rechaçar significa voltar à Constituição dos anos 1980, não há mais alternativas à disposição agora.

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