Entrevista

‘É difícil operar políticas públicas sem planejamento’

Marcelo Roubicek

23 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h46)

O ‘Nexo’ conversa com a professora Ursula Peres para entender como o orçamento secreto e outras distorções afetam o trabalho dos gestores e servidores que tiram as políticas públicas do papel

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FOTO: LUCAS LANDAU/REUTERS – 12.01.2022

Foto tirada de cima, mostra várias pessoas sentadas em cadeiras afastadas, esperando

Fila para receber atendimento em unidade voltada para pessoas com sintomas gripais no Rio de Janeiro

As distorções orçamentárias criadas ou ampliadas durante o governo de Jair Bolsonaro – como o orçamento secreto – prejudicam o planejamento e a execução de políticas públicas em diferentes áreas, como educação e assistência social. Muitas vezes o dinheiro público acaba sendo usado com base somente em negociações políticas, sem respeitar critérios que garantiriam um acesso mais justo, igual e eficiente aos recursos.

É esse o argumento de Ursula Peres, professora de finanças públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. Peres afirmou ao Nexo que, para quem atua na gestão pública com a execução de políticas, o quadro gera uma série de indefinições sobre a disponibilidade de recursos e a possibilidade de tirar programas do papel – sejam eles novos ou não. A regra que impera em muitos momentos é a de “quem grita mais alto”.

O Orçamento Federal é a mais importante peça da política brasileira e ajuda a definir os rumos do país. É nela que o governo determina a prioridade de seus gastos. É via Orçamento, portanto, que se define quais áreas vão receber mais ou menos dinheiro, e quais projetos receberão recursos.

Durante o governo Bolsonaro, o Orçamento passou por modificações que alteraram sua lógica de operação, segundo Peres. A principal delas foi o esquema do orçamento secreto. Resumidamente, deputados e senadores passaram a ter acesso a quantias bilionárias do Orçamento, cujo destino pode ser determinado sem que a população saiba quem alocou o dinheiro e qual foi o critério usado. E tudo isso com a chancela do presidente , que se utilizou da liberação dessas emendas para negociar apoio político.

Esse esquema é operacionalizado via emendas do relator, uma modalidade pouco transparente de emenda parlamentar. Além do uso para a sustentação do governo no Congresso, sobram indícios de corrupção na alocação dessas verbas .

R$ 53,5 bilhões

é o valor alocado para as emendas do relator no conjunto dos anos entre 2020 e 2022. É mais do que a soma de emendas individuais, de bancada e de comissão nesse mesmo período

O orçamento secreto não foi o único ponto problemático com relação ao Orçamento durante a gestão de Bolsonaro. Houve também:

O Nexo conversou com Ursula Peres na quinta-feira (20) para entender como o orçamento secreto e as outras distorções na alocação do dinheiro público afetam o trabalho de quem está dentro da gestão pública.

De uma forma resumida, qual o caminho do dinheiro do orçamento secreto, do cofre do governo federal até chegar na ponta?

Ursula Peres O problema começa no PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual, primeira versão do Orçamento], quando você faz uma proposta que vai ter um espaço de emendas da relatoria na tramitação Legislativa. E essa dotação de emendas da relatoria [quanto dinheiro vai ser deixado para emendas do relator] vai ser definida na negociação com o governo.

Isso vai estar previsto na proposta de lei. Depois que o orçamento é aprovado, você tem aquela dotação [valor] que o relator vai negociar. Quando isso é negociado, não está firmado para que política vai – é uma dotação ampla, genérica. A definição de para qual política vai o dinheiro vai depender de acordos que passam por negociação bilateral com a base governista – que podem ser diferentes deputados, de diferentes partidos.

Essa emenda vai ter que estar associada a um determinado ministério para fazer esse negócio funcionar. O ministério vai ter que autorizar a execução do Orçamento para um determinado município de uma determinada região, para empenhar isso a favor daquele município. E aí ou esse ministério vai fazer a obra diretamente, ou ele vai passar para uma empresa fazer a obra, ou vai passar o recurso para o município contratar a obra… Tem algumas possibilidades. Quem é o deputado [que indicou a alocação] e qual é o município que vai receber? Isso só vai aparecer depois do processo de execução. Você não tem essa clareza.

Por que há tantos casos com indício de corrupção com o orçamento secreto na ponta?

Ursula Peres Porque há baixo controle sobre isso. Não tem um regramento tão fino. Uma coisa é fazer um programa dentro do ministério, em que todos os municípios que forem acessar as transferências têm que estar conveniados, têm que prestar contas – em que há um padrão de liberação, um padrão de controle, tudo direitinho.

A outra coisa é ter uma dotação genérica, que passo para alguns (e para outros não), que não tenho certeza quem pediu, e que só na hora de repassar o empenho vou conseguir ver para quem foi [o dinheiro]. É muito obscuro. Vai depender de órgãos de controle indo atrás de saber o que aconteceu ali. Como tem muito menos critério, fica muito mais sujeito a desvio.

Os parlamentares controlam uma parcela bem farta do Orçamento. Isso coloca em risco as políticas públicas que vão ser executadas pela gestão pública?

Ursula Peres O volume não é pequeno. As emendas do relator foram sendo aumentadas, então têm um volume que hoje é maior que a soma das emendas impositivas, de bancada e individuais. E ela [a emenda do relator] representa praticamente o mesmo volume (ou mais) do que o governo federal fez de investimentos. Normalmente, o espaço da discricionariedade do orçamento federal é o que você consegue ter para investimento. Mas se você pegar os investimentos nesses três anos somados, eles são inferiores ao volume de recursos das emendas do relator.

Há vários níveis de problemas. Primeiro, para você ter espaço para as emendas de relatoria dentro do regramento do Orçamento, você vai ter que tirar espaço de outras áreas. Para essas emendas existirem, o governo está comprimindo outras áreas.

Então, uma primeira modificação para a burocracia nas políticas públicas é que quem está nos ministérios pode sofrer cortes na proposta e na execução do Orçamento durante o ano, se o governo precisar durante o ano calibrar melhor essas emendas do relator. Vai ter que abrir espaço, e aí reduz [verba de outras áreas]. Ao reduzir, está colocando em risco planos que tinham sido pensados para aquela execução orçamentária.

A segunda questão é que essa negociação das emendas de relatoria segue os critérios da política. Fazer emendas não é ilegal, é parte da regra do jogo. Mas se o volume fica grande a ponto de reduzir a discricionariedade do Executivo, eu tenho que abrir mão dos meus planos. Isso vai fazendo com que a negociação com os estados e municípios passe apenas pela ordem da política e de quem consegue acessar essa política. E deixa de ter uma ordem republicana de pensar critérios nacionais.

Um dos argumentos que aparece no debate das emendas do relator é que justamente os deputados e senadores conheceriam melhor a realidade local e seriam mais capazes de levar o dinheiro a locais que precisam mais dele. Isso faz sentido?

Ursula Peres Fazer o dinheiro chegar no local porque de fato você consegue saber a quem atender e que obras fazer, isso faz sentido. Mas faz sentido desde que você não perca a visão do todo. Se você tem 200 municípios que precisam de creche, você precisa de algum critério comparativo para pensar qual deles mais precisa [do dinheiro]. É necessário focalizar, por algum tipo de indicador, quem você elege.

Se há escassez, é preciso ranquear e definir prioridades. Senão corre o risco de você atingir um município que precisava de uma creche, mas que tinha três ou quatro outras funcionando, e não conseguir resolver o problema de um município que não tem nenhuma. Quem gritou mais conseguiu o dinheiro.

É claro que o local é onde é preciso atuar, e você precisa ter essa noção. Mas se não houver comparação com o todo, você pode estar tomando decisões erradas. Não há recursos para atender todos, você vai ter que priorizar. Contar que o deputado consegue fazer essa lógica significaria dizer que ele tem noção de todos os municípios, num sistema de informação. Mas a gente sabe que não é bem assim. Quem tem mais acesso a essa informação é o Executivo, com apoio dos estados e municípios.

Ele [o Legislativo] acaba driblando uma análise técnica. Acaba rompendo critérios universalizantes, critérios de definição de prioridade a partir de uma matriz calculada e embasada. Se uso emendas de relator, não necessariamente estou cumprindo critérios republicanos. Estou atendendo aqueles que estão na minha base. Alguns municípios podem ser atendidos e outros não – não necessariamente porque precisam mais, mas porque têm mais acesso político àquela emenda de relator.

Nessas disputas por recursos, os servidores que executam as políticas nas pontas ficam dependentes dos parlamentares? Isso incentiva disputas internas na máquina pública via lobby, para ver ‘quem grita mais alto’?

Ursula Peres O que acontece na base dos municípios é que eles sabem que, se quiserem ter dinheiro no seu município, precisam fazer um lobby no Congresso e conseguir uma emenda de um deputado. Então a busca fica muito mais por esse caminho do que por um caminho de organizar a informação, acessar o sistema e saber que tem um sistema público que vai repassar o recurso da educação, da assistência, de tudo mais. Tem uma dependência da emenda. E pode ser que eu acesse a emenda ou não. Depende do lobby da política.

Dada a escassez de recursos, não há disputas internas, dentro dos ministérios?

Ursula Peres Certamente. Não só disputa entre departamentos ou órgãos de um mesmo ministério, mas também uma dificuldade de pensar novos programas ou mesmo de manter aquilo que já existe.

Se você pegar o exemplo das universidades federais : esse aperto todo vai fazer com que muitas universidades repensem se elas vão aumentar a oferta de vagas de algum tipo. Porque elas mal conseguem manter o que já existe. Elas foram sendo recortadas e o dinheiro foi sendo retirado ao longo desta execução [2022] e dos últimos anos. Você tem universidades federais sobrevivendo com muito menos orçamento do que tinham no auge em 2013.

Fica uma situação muito difícil. Os servidores no MEC vão pensar: o que a gente segue? E o que a gente para? Não dá para inventar muita coisa porque você não sabe se vai ter dinheiro.

Essa situação limita a execução das políticas públicas?

Ursula Peres Há uma conjunção de fatores. A emenda do teto [de gastos] já limita a discricionariedade do gasto do Executivo. Você acaba tendo dinheiro só para algumas coisas. Ainda que este governo [Bolsonaro] tenha furado o teto por causa de pandemia e um monte de coisa, você tem a regra do teto, que é usada quando você quer contingenciar.

Ao mesmo tempo, você passa a discricionariedade de mãos: sai mais do Executivo e vai mais para o Legislativo. E você tem que conviver com essas duas coisas existindo.

Como a despesa primária do Executivo está muito comprimida, ela [a emenda parlamentar] fica ainda mais importante. A compressão da despesa primária vai fazer com que eu faça menos repasses voluntários do Executivo para os estados e municípios. Então é o Legislativo que vai fazer a ponte com os estados e o município.

As emendas do relator não são impositivas – não há garantia de que o dinheiro será liberado. O quanto essa imprevisibilidade afeta o trabalho do gestor público?

Ursula Peres Ela não é impositiva, como são as emendas de bancada e as emendas individuais. É um valor autorizativo. Mas, ao fim e ao cabo, se a gente considerar a política e a necessidade de base, ela quase que funciona como impositiva. Porque se você não cumprir com o atual estado da arte, você não governa. É um outro tipo de impositividade. Se a gente pegar 2020, 2021 e 2022, boa parte do que estava previsto para orçamento secreto foi ou está sendo empenhado.

Você não tem [previsibilidade] com boa parte do Orçamento – a não ser aquilo que é obrigatório mesmo, como salário. Você sempre tem essa dúvida de quanto vai ser liberado e quanto vai ser contingenciado. Essa é uma questão sempre.

No caso do orçamento secreto, além de não ser impositivo, [o problema] é não haver clareza sobre o que vai ser [o gasto]. É durante o ano que vai ser definindo. Não é que você tem um plano desde o PLOA de quais são as emendas que vão vigorar que o relator vai negociar. Isso acontece no dia a dia da execução. Conforme tem negociações, vai liberando mais emenda ou menos emenda. Então é muito imprevisível mesmo o que vai ser liberado e de quem vai sair.

Para além do orçamento secreto, o mandato de Bolsonaro ficou marcado por outros problemas com o Orçamento, como baixa transparência e atrasos expressivos na aprovação da lei orçamentária. Como isso afeta os servidores públicos que gerem políticas públicas?

Ursula Peres Do começo dos anos 2000 até 2012, 2013, tivemos todo um esforço para construir um plano de ação que tivesse controle de indicador, que fosse regionalizado, que fosse por território e que fosse traduzido em ações no Orçamento. Houve uma aprendizagem institucional incremental para os ministérios terem que focar nessa construção. E sendo cobrados pela execução de forma sistêmica – mostrar como está avançando, demonstrando as entregas.

Quando quebro essa lógica e passo a ter uma lógica completamente da boca do caixa, ou de emendas do cotidiano – em que reduzo esse nível de planejamento e foco na discricionariedade que vai acontecer ao longo do ano –, deixo o servidor muito em dúvida do que é prioridade.

Já há uma quebra com a emenda do teto, que vai reduzir o espaço do planejamento. Se estou dizendo que você vai ter que gastar o mínimo, é gastar o mínimo com o que dá. Então você não vai ficar planejando muita coisa nova. Além disso, dentro do mínimo, você vai ter que ficar achando espaço para esses acordos de governabilidade com as emendas, que você não sabe exatamente para quem vão ser.

Você fica sempre em alerta de que tudo que você está pensando pode mudar. E o que você está construindo pode ser cortado. Está tudo em aberto. E é muito difícil operar políticas públicas sem respaldo, sem lastro de planejamento e orçamento.

Então, planejar para quê? Fica muito complicado. Você não tem uma visão de futuro de aumento, e nem a tranquilidade de saber se o orçamento que está sendo aprovado vai de fato ser executado. Ou se vai ter que ser contingenciado para abrir espaço de discricionariedade para o Legislativo.

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