‘Precisamos de um projeto de futuro que encante as pessoas’
Letícia Arcoverde
01 de novembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h47)Para a professora da UFRJ Tatiana Roque, combate à crise climática precisa ser prioridade do novo governo, e só terá sucesso se for visto como oportunidade para enfrentar outros problemas sociais do Brasil
Protesto do movimento Fridays For Future contra a crise climática em São Paulo
O Brasil precisa não apenas preservar e recompor florestas como também investir fortemente no conhecimento científico que já tem para enfrentar a crise climática. Essa missão, que a partir de 2023 caberá ao novo governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva, precisa ser apresentada não como um fardo, mas como uma oportunidade para aplacar, além de desafios ambientais, outros problemas sociais que afligem o Brasil.
A opinião é de Tatiana Roque, professora titular do Instituto de Matemática e da Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Para ela, o novo governo e o campo político democrático deverão não apenas reconstruir o papel do Estado em áreas como a ciência e o meio ambiente, mas também “construir um projeto político a partir da crise climática que volte a encantar as pessoas, que volte a oferecer uma perspectiva de futuro”.
Roque é autora do livro “O dia em que voltamos de Marte” (Editora Crítica), no qual reflete sobre a relação da ciência com a política ao longo da história. O título se refere à ideia às vezes propagada por bilionários de que o futuro da humanidade pode estar na colonização de outros planetas e não no cuidado com a Terra. “Voltar de Marte é encarar a realidade com os pés no chão”, disse ao Nexo . “A urgência do enfrentamento das mudanças climáticas pode ser vista em si mesma como abertura de novas possibilidades para o enfrentamento dos nossos problemas sociais e econômicos.”
Para isso, segundo a pesquisadora, o diálogo entre ciência, tecnologia e política é fundamental. Roque tentou uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PSB do Rio de Janeiro com propostas ligadas à ciência e às universidades, junto com outros cientistas e pesquisadores que tentaram formar uma “bancada da ciência” . Ela obteve 30.764 votos, o suficiente para ser suplente do partido, que compõe a chapa petista eleita em 30 de outubro.
Nesta entrevista ao Nexo , realizada na terça-feira (1º) por videoconferência, a professora fala sobre a necessidade de criar um projeto político capaz de “encantar” a metade dos eleitores brasileiros que votaram pela reeleição de Jair Bolsonaro, a necessidade de desvincular o futuro da ideia de progresso que nos trouxe à crise climática e quais prioridades ela vislumbra para o Brasil nas áreas da ciência e meio ambiente.
TATIANA ROQUE Primeiro de tudo, retomar o investimento em ciência e tecnologia, mas não apenas no sentido de apoiar a pesquisa básica – que é sempre fundamental – mas no sentido de realmente ter um modelo de desenvolvimento que seja mais apoiado em ciência e tecnologia, e voltado para os grandes desafios que a questão climática nos traz neste momento. Como a gente pode usar tudo que o Brasil tem desenvolvido em termos de pesquisa científica e tecnológica para investir em políticas que nos coloquem nesse cenário internacional de uma maneira altiva, que dialoguem realmente com os desafios e as transformações profundas pelas quais o mundo inteiro está passando?
Por exemplo, toda a tecnologia de engenharia offshore, um conhecimento que o Brasil possui muito por causa do petróleo, pode ser utilizado para a chamada energia azul, que é a energia extraída do mar, tanto das ondas do mar quanto com energia eólica offshore. Tem todo um campo no qual a gente tem capital científico acumulado, mas que precisa ser desenvolvido na direção de gerar realmente tecnologia para transição energética. Vai ser muito importante que os ministérios tenham pessoas políticas, mas também que tenham pessoas que possam fazer essa ponte entre nossas universidades, nossos centros de pesquisa e as políticas públicas visando a essa nova economia verde e o desafio da transição climática.
Isso combinado com políticas públicas de combate ao desmatamento e de restauração florestal. Acho que estamos numa boa direção, o Lula fala muito disso. A Marina [Silva] deve ter um papel importante, ela é a mãe do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal [implementado quando ela era ministra do Meio Ambiente no primeiro governo Lula], que teve enorme sucesso no desmatamento da Amazônia. Mas nós temos também nossos outros biomas. A Mata Atlântica, por exemplo, é um dos lugares com maior capacidade de captura de carbono, pela natureza da sua vegetação.
O Brasil tem uma história de devastação, que o historiador José Augusto Pádua chama de “sina do berço esplêndido”. Como a gente acha que tem exuberância de recursos naturais, a gente foi devastando um a um nossos biomas: a Mata Atlântica, depois veio o Cerrado e agora seria a vez da Amazônia.A gente devastou a Mata Atlântica para fazer carvão, uma energia suja, então reflorestar a Mata Atlântica agora simbolizaria um recomeço.
TATIANA ROQUE A gente vai ter dois trabalhos durante o governo Lula. Um é um trabalho de reconstrução de tudo que o bolsonarismo destruiu, que vai ser difícil. O bolsonarismo é uma espécie de cupim que foi destruindo as instituições por dentro, aparelhou-as com seus próprios quadros, deturpou esses órgãos. No caso do meio ambiente é muito evidente pelo que ele fez com o Ibama, com o ICMBio, com a Funai.
Isso a gente vai precisar reconstruir. E não vai ser fácil, porque em muitos casos a gente vai precisar não só de verba, mas também de apoio político no Congresso Nacional, onde a correlação de forças não é fácil. O nosso Congresso é muito marcado pelos interesses econômicos que o bolsonarismo representa, não é só uma aderência ideológica. É por que ao destravar leis ambientais, o bolsonarismo facilita o acesso ao garimpo ilegal, à mineração, etc.
Por outro lado, a gente vai precisar construir um projeto político a partir da crise climática que volte a encantar as pessoas, que volte a oferecer uma perspectiva de futuro, de saída dos impasses nos quais a gente se encontra. É isso que vai ser capaz de vencer o bolsonarismo na sociedade.
O bolsonarismo tem uma força eleitoral que demonstrou na eleição e ele tem uma força social também. Então a gente vai precisar fazer com que as políticas públicas que a gente vai implementar façam parte de um projeto capaz de “reencantar” uma parcela da sociedade que vive hoje no desencanto. Eu não acho que todos os bolsonaristas sejam “destruidores-raiz”, sejam pessoas que têm na destruição um projeto de fato.
Uma parte dessa adesão é de pessoas que estão desencantadas, que estão desorientadas, que não sabem para onde ir, e o bolsonarismo oferece uma saída fácil. A gente precisa disputar essas pessoas, e para disputar essas pessoas precisa oferecer uma perspectiva que não é só de transferência de renda, emprego, direitos, mas também é uma perspectiva de futuro, uma vida na qual elas possam acreditar, a partir dos desafios principais do nosso tempo – e eu acho que a emergência climática é o mais importante deles.
TATIANA ROQUE Um dos instrumentos principais do bolsonarismo é o negacionismo, mas o negacionismo tem duas dimensões: não é só um movimento anticiência, é um movimento no sentido de negar problemas que exigem transformações muito profundas. As mudanças climáticas estão acontecendo por causa da ação humana, e para enfrentar esse problema, a gente vai ter que fazer mudanças profundas. Diante disso, uma solução fácil é negar que esteja acontecendo ou negar que a gente possa fazer alguma coisa.
O negacionismo da extrema direita mundial é um escapismo também. É o que eu aponto no meu livro: voltar de Marte é justamente encarar a realidade com os pés no chão na Terra. Isso significa encarar realmente a necessidade de ter um projeto para enfrentar as mudanças climáticas e mostrar que esse projeto não é um fardo, um peso, um sacrifício, mas sim a saída para outros problemas sociais que a gente vive.
Então, por exemplo, o problema do mundo do trabalho, de não ter emprego suficiente, das pessoas não terem direitos associados ao trabalho. Isso é um campo social que gera muita insatisfação e que é absorvido em parte pela extrema direita. Que resposta a gente vai dar para isso? A resposta tem que ser no sentido de dizer que o projeto de transição verde é capaz de em si mesmo criar empregos. Para reflorestar a Mata Atlântica, a gente vai precisar empregar muita gente.
Se a gente considerar que precisa abrir mão do desenvolvimento econômico em prol da preservação do meio ambiente, a preservação do meio ambiente vai ser um fardo, e a gente vai continuar sendo atropelado pelas necessidades da economia, do crescimento econômico, sempre vistas como muito urgentes. Precisamos sair da mentalidade que produz essa falsa dicotomia. A urgência do enfrentamento das mudanças climáticas pode ser vista em si mesma como abertura de novas possibilidades para o enfrentamento dos nossos problemas sociais e econômicos.
TATIANA ROQUE Nesse ponto eu sou um pouco radical, eu acho que a gente deve abrir mão da ideia de progresso. A ideia de progresso surgiu na virada do século 18 para o século 19 associada à ideia de que a gente estaria sempre indo em direção a um futuro melhor, engendrada com base na ciência e na tecnologia, e isso apresentou limites graves.
O modelo econômico que foi a base do fortalecimento da ideia de progresso é um modelo econômico que, como a gente viu no pós-guerra, também foi responsável pelo aquecimento global, pelo esgotamento dos recursos naturais, pela diminuição da biodiversidade, pelo desmatamento. Então como a gente vai continuar acreditando nesse mesmo ideal?
A ideia de futuro acabou capturada pela ideia de progresso e hoje, como a ideia de progresso foi maculada pela crise climática, parece que ela levou junto a possibilidade de pensar no futuro. Então a solução é desvincular o futuro do progresso. Isso foi uma produção histórica, a partir de 1800, então é perfeitamente possível desvincular essas duas noções para a gente voltar a ter uma ideia de futuro que nos aponte uma direção e que traga esse reencantamento dos nossos projetos políticos, econômicos e sociais. Isso não significa que essa ideia de futuro vai ser regressiva. A gente não vai abrir mão da ciência e da tecnologia, de modo algum. A gente vai precisar de muita ciência e tecnologia.
Esse é o grande impasse da esquerda. Hoje a esquerda não apresenta uma visão de futuro, e a extrema direita, sim. Ela apresenta uma visão de futuro terrível, excludente, de devastação e negacionista, mas ela apresenta uma ideia de futuro. A esquerda não vai ter força para enfrentar isso se ela sempre apresentar projetos vinculados ao passado, que são do pós-guerra – que é uma época que nos trouxe a crise que a gente vive hoje.
TATIANA ROQUE A experiência foi muito boa, porque eu realmente acho que a minha candidatura, assim como outras pessoas que foram candidatos dessa “bancada da ciência”, como Ricardo Galvão [ex-presidente do Inpe], representaram a pauta da pesquisa, das universidades como vetor de transformação social, da ciência como um instrumento para ação política.
Mas nós não somos pessoas da política, e o sistema político é muito fechado à renovação. O sistema político tem uma série de mecanismos para evitar a entrada de novas pessoas, como o fundo eleitoral [que acaba sendo distribuído em maior parte para quem já tem mandato]. Mas vou continuar sendo uma voz – não sei se eleitoral ou não, isso ainda não tenho certeza – de defesa da ciência e da universidade, e tentando fazer essa aproximação entre ciência e política.
TATIANA ROQUE São duas coisas diferentes. A produção do saber científico tem que ter o mínimo possível de interferência política, ainda que a gente saiba que isso é difícil. Outra coisa é o uso do conhecimento científico no desenvolvimento de políticas públicas.
Por exemplo, a pesquisa sobre a efetividade das vacinas vai seguir os critérios da ciência. Mas uma vez a eficácia de uma vacina comprovada, a gente tem um debate político a ser feito sobre a obrigatoriedade das vacinas.
O negacionismo é também uma tentativa de instrumentalizar a ciência para o uso em políticas públicas que estejam de acordo com os ideais da extrema direita. O negacionismo não ataca a ciência como um todo, ele ataca algumas ciências que têm impacto direto em políticas públicas, como na saúde, nas políticas ambientais, na alimentação no caso de agrotóxicos, até na questão de gênero. Uma arma do projeto político da extrema direita é deturpar o debate científico em todas essas áreas para embasar as suas propostas políticas, para que as políticas públicas estejam mais alinhadas com a ideologia política deles.
Ou seja, o debate científico, principalmente quando ele diz respeito ao embasamento de políticas públicas, é um debate politizado, sim. Então a gente tem que fazer essa relação entre ciência e política. Só que primeiro usando as afirmações científicas legitimadas pelas instituições reconhecidas de produção de ciência, e segundo mostrando todos os benefícios que essas políticas públicas baseadas na ciência têm e já tiveram, como no caso da vacinação.
TATIANA ROQUE Mostrar como a ciência funciona, fazer divulgação científica, é sempre bom. Mas o nosso desafio está além, tem a ver com os benefícios que a ciência traz. Em pesquisas de opinião pública, em geral as pessoas valorizam os cientistas e a ciência. Mas quando a gente pergunta sobre os benefícios que a ciência traz, as respostas são hesitantes. Eu acho que tem a ver com o fato da ciência e da tecnologia terem feito promessas grandes que não foram cumpridas, muito associadas a essa visão de futuro sempre melhor, essa visão de progresso.
Ninguém quer abrir mão do seu celular, do seu computador, mas por outro lado todo mundo sabe que isso também traz problemas, a gente vive o aumento do ódio, a difusão de fake news, um esgarçamento da organização social que a gente ainda não conseguiu resolver. Eu acho normal que haja uma avaliação, uma hesitação. A gente precisa apresentar saídas para isso.
Por exemplo, a questão do genoma: pode trazer muitos benefícios, mas por outro lado tem dilemas éticos importantes quando se trata da edição de genoma. Isso traz desafios para a relação entre ciência e política. Como a gente pode, em alguns temas em que a ciência e a tecnologia têm muito impacto político e ético, talvez criar instâncias de participação, para que essa decisão não fique restrita ao meio científico? No caso da questão climática, é onde talvez a gente mais precise desfazer a crença de que a ciência e a tecnologia vão conseguir resolver o problema sozinhas. Não vão. Para isso a gente precisa juntar ciência, tecnologia e política.
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