‘Quebra de promessas neoliberais alavancou extrema direita’
Malu Delgado
01 de dezembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h50)Leia entrevista do professor de filosofia Rodrigo Nunes para o podcast Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que ele fala da relação entre o colapso financeiro de 2008 e a onda autoritária global
Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro durante protesto em apoio ao governo, no Rio de Janeiro
Rodrigo Nunes, professor de filosofia da PUC do Rio de Janeiro, foi entrevistado pelo podcast Politiquês em junho de 2022 para a minissérie “Uma crise chamada Brasil”, que traça um panorama dos anos que marcaram a quebra do pacto social da Nova República. Ele aparece no primeiro episódio, “Fora da Ordem” , sobre o colapso financeiro de 2008 e a recessão democrática global, e no décimo e último episódio, “País do Futuro” , sobre as perspectivas brasileiras a partir de 2023.
O Nexo traz agora a transcrição da conversa que teve com Nunes sobre a relação entre a crise do modelo neoliberal e a ascensão da extrema direita em diversas partes do mundo. Ao longo de dezembro de 2022 e janeiro de 2023, as entrevistas realizadas para a minissérie serão publicadas por escrito, a fim de que possam ser fonte de consulta dos leitores do jornal.
RODRIGO NUNES Há genealogias distintas, duas histórias de origem que a gente poderia contar. A primeira seria o grande pano de fundo dessas transformações todas da última década e pouco, que é a crise de legitimidade do neoliberalismo. Essa crise advém da frustração daquelas promessas que foram apresentadas no início da ascensão do projeto neoliberal em diferentes partes do mundo e que são promessas não cumpridas, que não foram entregues até hoje.
A ascensão do neoliberalismo, no final dos anos 1970, na Inglaterra, nos Estados Unidos, mas também mais tarde em lugares como a América Latina, nos anos 1990, ou no Leste Europeu, se dá sempre em meio a promessas de abundância, de meritocracia, de reconhecimento do mérito e do esforço. Ideias de dinamismo econômico contínuo, por oposição ao que teria sido a inviabilidade de longo prazo do projeto do Estado de bem-estar social.
A gente pode lembrar, por exemplo, que Gordon Brown, que foi o equivalente a um ministro das Finanças de Tony Blair [ex-primeiro ministro, no Reino Unido], assume o cargo dizendo: “nós chegamos ao fim da era do boom and bust, ao fim da era de períodos de expansão seguidos por colapsos e períodos de contração. No fim das contas, Brown assumiu como o primeiro-ministro [sucedendo Tony Blair] justamente no momento de bust, que veio depois do momento de boom, sobre o qual ele atuou como ministro das Finanças.
Todas as promessas acabaram não se confirmando. O boom, o período de expansão, que houve nos anos 1990 e início dos anos 2000, foi à base de endividamento. Endividamento das empresas e endividamento dos indivíduos, que saíram desse processo com uma carga de dívida gigantesca. Mesmo no período de expansão, aquela ideia de que a expansão, para usar a frase famosa de John Kennedy [presidente dos EUA nos anos 1960], “funcionaria como uma maré que levanta todos os barcos”, nunca se confirmou. Mesmo nos períodos de expansão, o que a gente viu em paralelo foi um aumento da desigualdade econômica, um aumento da exploração do trabalho, um aumento do desemprego — senão sempre, certamente um aumento progressivo no mundo inteiro do subemprego. E, na verdade, aquela grande promessa de fundo do neoliberalismo, que seria a promessa de resolver aquela crise do capitalismo que se verificou na metade dos anos 1970, no fim das contas também não foi realizada.
A taxa de crescimento do PIB global e a taxa do crescimento de produtividade segue em queda desde aquela crise que matou o Estado de bem-estar social. E isso tudo vai se acumulando ao longo do tempo. Muita gente vai se sentindo frustrada por não ter as suas promessas, as promessas nas quais acreditou, nas quais investiu, cumpridas ao longo do tempo.
É sintomático que você tenha citado a Polônia e a Hungria. Talvez o primeiro lugar onde essa desilusão com o neoliberalismo começou a se fazer sentir com toda força tenha sido no Leste Europeu, porque justamente o Leste Europeu, no início dos anos 1990, abraça essas promessas com mais sofreguidão do que qualquer outro lugar no mundo. Era meio que uma tábua de salvação: [o neoliberalismo] agora vai resolver o problema do crescimento econômico [após o colapso da Cortina de Ferro]. E, resolvendo o problema do crescimento econômico e das liberdades econômicas, ele resolverá também o problema das liberdades políticas. No final, o que aconteceu foi que você criou sociedades extremamente oligarquizadas, extremamente desiguais, com um aumento da pobreza considerável em relação à situação em que essas sociedades viviam antes sob os regimes socialistas. E o problema da liberdade política não foi resolvido. Essas sociedades permaneceram sociedades altamente autocráticas. E caíram sob o controle de líderes antidemocráticos, como o Vladimir Putin na Rússia, o Viktor Orbán na Hungria e os irmãos Kaczyński na Polônia.
Mas essa frustração, essa desilusão, que vai se acumulando ao longo do tempo, ela meio que se confirma e explode a partir da crise de 2008. O que a gente tem com a ascensão desses líderes de extrema direita é o uso desse fracasso do neoliberalismo para alavancar reações que não são necessariamente reações de superação do neoliberalismo, que não estão necessariamente prometendo uma superação do neoliberalismo, e que, na verdade, são perfeitamente compatíveis com o neoliberalismo, perfeitamente compatíveis com os interesses daquelas forças sociais e econômicas que mais se beneficiaram desse período de hegemonia neoliberal, que veem nessas reações uma coisa interessante. Porque não foi dito: “olha, nos fizeram uma série de promessas que não foram entregues até hoje e esses anos todos de hegemonia liberal acabaram levando a um aumento de desigualdade econômica e, por extensão, um aumento da concentração de poder político”. Ao invés de dizer isso, ao invés de nomear o problema — o problema do aquecimento global, por exemplo —, o que ocorre é uma reação de extrema direita que desloca essa raiva acumulada, essa frustração, essa desilusão acumulada da população, para outras causas: a questão dos imigrantes, os avanços dos direitos de minorias, das mulheres, dos gays, dos negros, etc. É como se esses avanços, que ocorreram de maneira tímida, mas ocorreram dos anos 1990 para cá, tivessem sido responsáveis pelo não cumprimento das promessas [do neoliberalismo].
E aí a gente tem a segunda história de origem, o que explica essa tática que essas reações de extrema direita — que no final das contas não são incompatíveis com neoliberalismo. Se a gente quiser encontrar a origem da extrema direita que a gente tem hoje no mundo, a gente deve procurar não no fascismo dos anos 1920, 1930, do século passado, mas naquilo que ficou conhecido como “A Estratégia Sulista do Partido Republicano nos Estados Unidos”, nos anos 1960.
Muita gente que acompanha a política norte-americana de maneira meio superficial deve achar que essa divisão, em que o sul dos EUA pertence politicamente ao Partido Republicano, sempre foi assim. Mas, na verdade, essa divisão se consolidou a partir dos anos 1960 por conta de uma estratégia muito diretamente pensada do Partido Republicano. Isso ocorre justamente no momento em que o Partido Democrata abraça o Movimento dos Direitos Civis e, portanto, conquista o apoio das parcelas mais progressistas, consolida o apoio das parcelas maisprogressistas da população americana e o voto da população negra nos EUA. O Partido Republicano então pensa: “bom, tem várias pessoas brancas no sul, que é uma área historicamente mais pobre economicamente comparado ao norte dos EUA, que se sentem abandonadas porque elas moram numa região mais pobre e agora se sentem abandonadas porque aquele sistema de segregação racial no qual elas cresceram e que elas achavam que era o sistema natural de organização das suas sociedades deixou existir. E a gente pode explorar a frustração dessas pessoas, com o fim da segregação racial, em favor de políticas que não necessariamente serão políticas para beneficiar economicamente essas pessoas”.
O governo [do presidente Richard] Nixon é o primeiro a empregar essa estratégia, apesar de ainda ser um representante forte daquilo que foi o Estado de bem-estar social americano. Mas a partir dos anos 1980, essa estratégia se alia à direita cristã católica e, sobretudo, evangélica. Isso em cima da mesma base: “a gente vai pegar a preocupação dessas pessoas com a revolução sexual, com a contracultura, etc., e a gente vai dizer que a gente vai dar resposta a esses problemas, embora a gente não necessariamente vá dar resposta aos problemas materiais econômicos, que essa população cristã enfrenta”. Tudo isso acaba funcionando para criar a base social do governo [do presidente Ronald] Reagan, que é o governo que implementa as reformas neoliberais nos EUA. E aí gera um um bloco que tem servido ao Partido Republicano desde então. E isso me parece que a gente deve entender como tendo sido, muito mais que o fascismo dos anos 1920 e 1930, a origem e até hoje a referência para esses movimentos de extrema direita que a gente encontra hoje mundo afora.
Essa carta dos valores morais, da cultura, das chamadas guerras culturais, é usada como promessa à base social sem prometer atacar as questões materiais, que também preocupam essa parcela da população. As questões culturais-morais são usadas como uma espécie de cobertura para medidas econômicas, por exemplo, de transformação do mundo do trabalho, de aumento da precarização, de aumento do subemprego, que na verdade vão piorar ainda mais a vida dessas pessoas.
Então, contra uma certa tendência de ler as guerras culturais como se fossem uma coisa que acontecesse por mágica — “ah, um dia, a política deixou de ser sobre política e passou a ser sobre cultura e moral” —, a gente deve enxergar essa história como a origem da estratégia que a extrema direita usa hoje. As guerras culturais são a continuação e sempre foram a continuação da guerra política por outros meios.
RODRIGO NUNES Sim, totalmente. A gente tem várias narrativas hoje em dia, de autores como o Steven Pinker que tentam manter essa crença moderna no progresso, de que a história caminha numa única direção, que é uma coisa que está completamente entranhada na história, tanto da modernidade quanto do capitalismo. Esses autores vão dizer: “se você olha os números da violência, se você olha as taxas de mortalidade e não sei o quê, a gente nunca viveu tão bem quanto antes”. O que é sempre um argumento muito questionável, porque, enfim, você está comparando um período sobre o qual a gente tem dados com, sei lá, a Idade Média. Você está comparando coisas muito diferentes entre si.
Contra isso, a gente pode oferecer dois argumentos. Primeiro, a gente tem hoje em dia trabalhos acadêmicos muito sérios e muito bem fundamentados, sobretudo, o trabalho dirigido pelo Thomas Piketty, nos últimos anos, de maneira bastante fundamentada, com muita evidência empírica, que apontam para um aumento constante da desigualdade econômica desde a metade da década de 1970. Ou seja, justamente no período de hegemonia a neoliberal.
Por outro lado, a gente pode apontar para uma evidência. Cada nova geração que chegou à maioridade depois do fim do Estado de bem-estar social sente isso e concordaria comigo. Falo de uma sensação constante, a cada geração depois da geração do baby boom: todo mundo — a chamada geração X, os chamados millennials e agora a chamada geração Z — tem perspectivas de vida piores do que as perspectivas de vida da geração dos seus pais. O que inverte, justamente, essa narrativa, essa autoimagem fantasiosa de que a modernidade e o capitalismo têm de si. Na verdade, o capitalismo é muito dependente de dois grandes surtos de crescimento, que aconteceram no século 19 e entre a Segunda Guerra e os anos 1970. Essa nossa ideia de que a vida está sempre melhorando é muito baseada em dois períodos apenas.
Depois de 2008, depois da crise financeira, esse processo [de queda de perspectivas] se acelera, porque você tem uma retomada da atividade econômica, mas é uma retomada sem ganhos de produtividade e sem um aumento considerável da oferta de empregos, ou pelo menos sem um aumento considerável da oferta de bons empregos. O que você tem depois de 2008 é um aumento da precarização, um aumento do subemprego.
A gente tem o processo de resgate da crise financeira, o chamado quantitative easing [flexibilização quantitativa], a política que os principais bancos centrais do mundo adotaram, que consiste basicamente em imprimir dinheiro, imprimir dinheiro e injetar esse dinheiro diretamente no mercado financeiro. Essa opção por imprimir dinheiro, mas imprimir dinheiro para injetar no mercado financeiro, com a ideia de que o mercado financeiro vai emprestar esse dinheiro ou as pessoas vão tomar empréstimos no mercado financeiro e isso vai a reativar a economia real — 30 trilhões foram criados do nada por mágica entre 2008 e o início de 2020 —, na verdade serviu apenas para aquecer uma grande inflação de ativos financeiros, e a característica da inflação de ativos financeiros é que, ao contrário da inflação de preços, ela deixa as pessoas mais ricas, as pessoas que possuem ativos, que possuem ações, que possuem títulos, que possuem propriedades imobiliárias, etc. Portanto, levou a um aumento da desigualdade, porque a grande fronteira da desigualdade hoje é, justamente, quem possui ativos financeiros e quem depende exclusivamente da renda do trabalho, que é cada vez mais deprimida.
Para além disso, a crise de 2008 produziu uma sensação de falta de perspectiva de que essas dinâmicas pudessem se reverter. O saldo político da crise de 2008 foi um saldo de desconfiança muito grande. As pessoas viram ali que os os dados estavam completamente viciados, que as pessoas que causaram a crise foram resgatadas e se tornaram mais ricas, em consequência desse resgate, enquanto o custo da crise foi repassado para a população em geral, sob a forma de políticas de austeridade.
A sensação de que tem alguma coisa de muito errado na maneira como a gente está vivendo hoje, no estado atual de coisas, de que alguma coisa precisa ser feita, me parece que explica justamente esse movimento da política na última década em direção aos extremos. Por um lado você tem o apelo da ideia de uma mudança radical de sistema econômico e político, um apelo que se expressa, se expressou naqueles movimentos do início da década, a Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy, junho de 2013 no Brasil.
Mas todo mundo percebe que essa mudança de sistema econômico e político é muito difícil, muito improvável, porque as forças, a inércia do sistema que existe atualmente, é muito grande, parece muito difícil transformá-lo. E, no outro extremo, na extrema direita, a gente tem uma promessa que equivale basicamente a dizer que seria possível manter as coisas exatamente como elas estão, só que fazê-las funcionarem melhor, que é uma promessa falsa. Não tem como as coisas, do jeito que elas estão, funcionarem melhor que isso. Muito do que está subentendido nessa promessa é a ideia de que, “bom, para as coisas funcionarem melhor, você vai ter que excluir diversos grupos”. Então exclui os imigrantes, tira as mulheres do mercado de trabalho, manda elas de volta para o lar, exclui as minorias étnicas, exclui os negros, exclui os gays. Seria a única maneira de conseguir conquistar alguma coisa para aqueles que se sentem excluídos e abandonados por esse sistema. É uma promessa que é, no mínimo, falsa e, no máximo, aponta para uma espécie de guerra civil, onde você está trabalhando ativamente para excluir diversos grupos. Essa promessa tem mais apelo para as pessoas, porque parece que é mais fácil fazer isso do que mudar tudo.
Eu costumo descrever a promessa da extrema direita como uma política antissistêmica para pessoas que não acreditam que o sistema possa realmente mudar. É a promessa de que as coisas vão mudar radicalmente, mas na verdade sem mudar nada. Na verdade, o sistema em que a gente vive continuará o mesmo.
RODRIGO NUNES Não totalmente. A gente tem uma série de coisas que vão se acumulando lentamente ao longo do tempo e a gente tem um processo de aceleração e intensificação dessas tendências que ocorrem a partir da crise de 2008. Por um lado, uma aceleração e intensificação da base ou das causas materiais dessa frustração, porque você tem uma queda súbita da economia mundial, o que gera pobreza, gera desemprego, exclui muita gente, faz muitas pessoas perderem as suas casas, exclui muita gente do mercado de trabalho.
Então, é um momento em que justamente essa promessa do fim do boom and bust, essa promessa de crescimento econômico contínuo, ela não apenas se prova falsa, como você tem um momento de compressão muito brusca das condições materiais das pessoas, que é agravada ainda por cima pelas políticas de austeridade que se seguiram mais ou menos imediatamente à crise na Europa, por exemplo, e de maneira mais lenta, numa dinâmica diferente, nos Estados Unidos. É uma crise que começa a acontecer aqui no Brasil a partir de 2014 e 2015. Você começa a ter uma retração do investimento público, etc. Você tem essa intensificação e aceleração da frustração em cima das causas materiais, da desilusão das pessoas com essas promessas frustradas de boa vida, mas você tem também uma transformação subjetiva.
Quando os Indignados espanhóis vão para as ruas dizendo “no nos representan”, eles estão falando tanto da direita e da centro-direita quanto da centro-esquerda. Eles estão falando daquilo que seria todo o espectro da política possível, num sistema praticamente bipartidário, como é ou como era até então o sistema espanhol. Quer dizer, eles estão dizendo: toda a classe política, seja ela nominalmente de direita, seja ela nominalmente de esquerda, serve aos mesmos interesses, que são no final das contas os interesses das grandes corporações e os interesses do capital financeiro. Hoje em dia todo mundo é capital financeiro. Porque ninguém é mais apenas dono de indústria. Toda grande indústria tem uma parte dos seus ganhos, uma parte da sua renda, que vem do mercado financeiro também.
Essa combinação de uma crise material e uma crise de legitimidade política, em que fica evidente que no frigir dos ovos, quando a coisa esquenta, nosso sistema representativo representa uma parcela muito pequena da população ou dos interesses existentes no seio da população, tudo isso gera justamente essa crise aguda de legitimidade, que vai se expressar no Brasil com junho de 2013. Porque a crise começa a bater aqui no Brasil um pouco mais tarde.
O governo do PT soube reagir bem à crise logo no início, adotando medidas contracíclicas, que tinham seus problemas, como uma aposta muito grande na indústria automotiva, que implica uma série de problemas justamente de mobilidade urbana, de poluição, de engarrafamento, de qualidade de vida na cidade. No início o governo soube minimizar e retardar os impactos dessa crise, mas essa crise começa a bater justamente a partir de 2013 no Brasil. E aí, junto, explodem essas questões de qualidade de vida, da mobilidade urbana, do direito à cidade, da qualidade dos serviços públicos, que tinham ficado meio maquiadas pelo período de prosperidade econômica que tinha vindo antes.
E o Brasil, ao mesmo tempo que é meio que um ponto fora da curva do histórico desses protestos, é um dos poucos países que participaram desse ciclo de protestos mundiais em que a imprensa, a partir de um momento, deixa de condenar os protestos e passa não só a apoiá-los como a tentar ressignificá-los. Depois de algumas semanas em que a imprensa era contra os protestos de junho de 2013, de repente a imprensa encampa os protestos. E passa a dizer “eles são sobre a corrupção”, porque vê ali uma oportunidade de atingir o governo do PT.
A gente pode, de maneira bastante esquemática, dividir a década passada em dois momentos de resposta a essa intensificação ou essa crise aguda de legitimidade do neoliberalismo, que são respostas que caminham para os extremos. No primeiro momento, parece caminhar para a esquerda, para um questionamento dos arranjos econômicos e políticos existentes, uma tentativa de reformulá-los. Esses movimentos, eles encontram uma resistência muito forte, e também acabam encontrando impasses internos que os impedem de realizar aquilo que eles se propunham.
Na segunda metade da década, a partir de 2014, 2015 e de maneira clara a partir de 2016, essa energia antissistêmica, que tinha ficado órfã depois desses movimentos encontrarem um limite, se junta a uma espécie de reação negativa que esses movimentos tinham despertado no início da década, um instinto reativo, um certo medo de parcelas da sociedade em relação àqueles movimentos no início da década [alinhados à esquerda]. E aí, esse sentimento antissistêmico vai ser apropriado, de maneira muito eficiente, pela extrema direita. Numa sequência muito rápida, temos o Brexit no Reino Unido, a vitória de Trump nos EUA, a gente vê o movimento pelo impeachment da Dilma e, em 2018, finalmente, a vitória de Bolsonaro.
Há uma coisa extremamente curiosa, que é o fato de Trump ter sido capaz de se apresentar em 2016 como o representante do homem comum contra a elite, quando na verdade ele nasceu milionário. Ele se alimenta de uma frustração que, de maneira muito inteligente, elege como inimigo não o capitalismo, não é o neoliberalismo em si, mas um certo estágio da hegemonia neoliberal, que corresponde àquilo que a filósofa norte-americana Nancy Fraser chamou de neoliberalismo progressista. Corresponderia justamente àquele momento da ascensão da terceira via nos EUA, na Inglaterra, na Alemanha e na França, que acaba sinalizando para outros países também uma outra maneira de realizar aquele conjunto de programas, aquele projeto neoliberal.
O que caracteriza esse momento é combinar as políticas econômicas que são produtoras de desigualdades, precariedades e vulnerabilidade econômica com políticas de reconhecimento, que servem de fato, em alguma medida, para incluir alguns setores de minorias historicamente marginalizadas, como as mulheres, os negros, a população LGBTQIA+, etc. Isso aumenta a base social de apoio a esse projeto neoliberal e, ao mesmo tempo, gera para a extrema direita um alvo muito fácil. Porque agora justamente a extrema direita americana pode chegar lá para a classe trabalhadora branca do norte e do nordeste desindustrializado dos EUA e dizer: “tá vendo, a vida de vocês piorou porque a vida dessas pessoas melhorou”. Então, a lógica é de que a vida não piorou porque a economia norte-americana agora é toda baseada no offshoring, em fechar as fábricas nos EUA e abri-las no México ou na Coréia ou em Taiwan. “Não, a vida de vocês piorou porque essas outras pessoas estão ganhando”.
A ideia do globalismo e a ideia de que Trump seria o candidato do homem comum contra uma certa elite tem a ver justamente com essas frustrações que vêm se acumulando desde a década de 1990. O globalismo seria, então, esse projeto de inclusão de minorias historicamente marginalizadas às custas do trabalhador branco, às custas do cristão, às custas da tradicional família brasileira e assim por diante. E Trump seria um candidato antielite, porque aquilo que os americanos chamam de liberals, que seria centro-esquerda nos nossos termos, seria uma elite intelectual que trabalha para “favorecer essas minorias às custas dos cristãos, dos brancos”, etc.
É a mesma coisa no Brasil. Os governos do PT acharam que seria possível se manter sem lidar com gargalos estruturais, porque a gente, de repente, se encontrou no meio de uma bonança causada pelo boom internacional das commodities. O PT soube explorar muito bem esse boom para patrocinar políticas de redistribuição de renda. A partir do momento que essa janela de oportunidade internacional começou a se fechar, que esse acordo de ganha-ganha que permitia aos ricos ficarem muito mais ricos e aos pobres ficarem um pouco menos pobres, a conta de não ter enfrentado os gargalos estruturais volta. E volta junto com a conta de problemas que, na verdade, são muito mais antigos.
São problemas que datam da fundação do Brasil. Por exemplo: a violência policial. Por exemplo: a falta de responsividade das nossas instituições, a falta de accountability, o fato de que a maior parte do tempo o nosso Judiciário, o nosso Legislativo e diversas outras instituições públicas agem de maneira completamente autônomas, sem prestar contas a ninguém, defendendo de maneira escandalosamente corporativa os seus próprios interesses e se comportando como se eles estivessem acima da lei, da mesma lei a qual nós cidadãos comuns estamos submetidos. O PT acabou optando por não tentar enfrentar esses problemas, porque tinha encontrado esse arranjo que funcionou muito bem por um tempo.
RODRIGO NUNES Você usou a palavra extremo ou extremista, eu acho que é importante dizer que ser extremo, nas atuais condições, não é necessariamente uma coisa ruim. Eu defendo justamente uma espécie de extremismo capaz de ser uma resposta adequada para o momento em que a gente se encontra, tanto no Brasil quanto globalmente.
Temos um sistema econômico que tem patrocinado sistematicamente um aumento da desigualdade. As taxas de crescimento vêm decaindo. É importante e interessante observar que o neoliberalismo falhou, inclusive nos seus próprios termos, inclusive como uma solução de longo prazo para o capitalismo.
Embora a produtividade e a taxa de crescimento da economia mundial venha decaindo continuamente desde da década de 70, justamente o que o neoliberalismo fez foi, nessa situação de estagnação econômica, assegurar ganhos elevados para cada vez menos pessoas. Tem cada vez menos pessoas ganhando muito nesse arranjo. Por consequência tem uma concentração de poder político também. Você tem cada vez menos atores com uma capacidade completamente desproporcional de influenciar as decisões das nossas instituições políticas. E, por último, o grande problema de fundo que está sempre aí em todas essas discussões, que é a questão do aquecimento global. A questão do colapso ambiental iminente.
Para enfrentar esses problemas em tempo hábil, particularmente a questão do aquecimento global, você vai precisar ser radical. Você vai precisar ser extremo, o que não significa necessariamente ser o contrário de realista. O que eu defendo no livro “Do transe à vertigem: Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição” [editora Ubu, 2022] é justamente que essa oposição entre radicalismo e realismo é falsa. Ela nos impede de colocar os problemas tal como eles devem ser colocados.
Porque, sim, é verdade que não é possível fazer qualquer coisa a qualquer momento, a gente deve ser realista em relação àquilo que pode ser feito. Mas enfrentar a questão do aquecimento global, enfrentar o problema de uma transição para um outro regime energético não baseado em combustíveis fósseis, é uma coisa que precisa ser feita até o final da década, se a gente quiser evitar um estrago ainda maior.
No final das contas, é a grande questão que está posta. A grande questão que estava posta para Biden quando ele foi eleito e a grande questão que estará posta para essa provável nova onda de governos de esquerda na América Latina é: até que ponto eles estão realmente dispostos a assumir a radicalidade da situação em que a gente se encontra e propor soluções realmente radicais, que parecerão radicais nesse momento, mas ao mesmo tempo são realistas do ponto de vista daquilo que tem que ser feito? Tanto do ponto de vista da sua habilidade política quanto do ponto de vista das forças contrárias, que certamente tentarão impedir esses governos de fazer aquilo que se propuserem a fazer. Até que ponto vão assumir os constrangimentos reais que a política real, que a economia real impõe a eles?
Há uma dependência desses países em relação ao mercado financeiro internacional, que certamente jogará bastante pesado para tentar limitar o campo de ação possível deles. Há uma relação de dependência ou de autonomização crescente e talvez até de confronto com as elites nacionais, principalmente a elite agrária, que foi no final das contas elites agrárias, e enfim as elites extrativas do setor da agricultura, da pecuária e da mineração, que foram as grandes beneficiadas pela primeira onda rosa, por esses governos de esquerda do início do século. Forças políticas certamente se mobilizarão contra esses governos, sobretudo agora numa situação em que em países como Brasil, em países como a Argentina e, certamente, sem dúvida, num país como os Estados Unidos, existe uma base social bastante forte, bastante ampla e altamente mobilizada de extrema direita.
É um período de fato bastante complicado que a gente vai ter pela frente, porque por um lado os desafios são muito grandes, por outro lado os obstáculos são ainda mais duros e mais pesados do que aqueles que a gente encontrou no início do século. Por outro lado, eu acredito também que justamente por a gente estar nesse momento de crise de legitimidade do sistema, dos nossos arranjos econômicos e políticos, existe um grande potencial. E me parece que é um potencial que pode ir para um lado e pode ir para o outro, é um potencial que pode ser explorado pela esquerda, como pode ser explorado pela extrema direita. E justamente por isso me parece que a esquerda não deve deixar, não deve se furtar a explorar esse potencial. Porque se ela não explorar, se ela não souber radicalizar dentro dos limites da possibilidade, a tendência é que ela não consiga dar as respostas adequadas para essa crise. E a crise portanto se manterá e, com isso, acabará fortalecendo a extrema direita.
RODRIGO NUNES A gente tem cada vez mais mecanismos que estão disseminados a toda volta, como as redes sociais, como o funcionamento dos algoritmos dessas redes sociais, a maneira como esses algoritmos são desenvolvidos para buscar sempre maximizar o engajamento. E o que engaja é justamente um conteúdo polêmico, controverso, para usar todos esses eufemismos que a imprensa às vezes usa para se referir a lideranças racistas, homofóbicas, etc. Então, a gente tem uma série de coisas ao nosso redor que facilitam e meio que incentivam esse tipo de processo polarizante, formação de opiniões muito opostas em relação a diferentes temas e um ocultamento das posições intermediárias ou das condições de debate, onde algum debate seria possível e ficaria no meio desses extremos.
Isso se combina ao quadro maior de crise de legitimidade, que a gente pode entender justamente como uma crise do consenso que se formou nos anos 1990, justamente nesse momento em que a antiga centro-esquerda abraçou a política econômica da direita. A partir dali, você teria apenas um tipo de política econômica, a neoliberal, com pequenas nuances em relação a sua política de reconhecimento, a sua relação com a religião, a sua relação com valores culturais e morais, a sua relação com minorias e assim por diante. Esse consenso servia justamente para blindar a economia, para excluir a economia do debate sobre projetos de sociedade: “na economia ninguém toca, o problema da economia já tá resolvido, foi cientificamente resolvido”.
Se a gente for ler alguns dos principais ideólogos neoliberais, isso está dito com todas as letras em alguém como o Friedrich Hayek, por exemplo. Ele diz: “olha, o problema do que a gente está vivendo é que houve uma extensão muito grande da democracia e, a partir do momento que há uma extensão muito grande da democracia, as pessoas começam a impor demandas, aí os políticos por conta do seu interesse próprio de ganhar eleições, vão querer atender a essas demandas, e esse é o caminho para o desastre”. Por isso, quando Hayek vai ao Chile nos anos 1970, para emprestar apoio ao governo [do ditador Augusto] Pinochet, ele diz: “olha, antes uma ditadura que seja economicamente liberal que um governo democrático que põe em risco a economia liberal”.
Agora, uma série de coisas que seriam impensáveis muito pouco tempo atrás voltaram à discussão, embora nenhuma delas tenha se apresentado ainda com força suficiente para substituir esse modelo, substituir esse consenso. Mas o consenso já não conta mais com o mesmo grau de adesão que ele contava antes. Somado ao fato de que a gente tem cada vez mais mecanismos que penetram nossa vida, nossa maneira de pensar, nossa maneira de nos relacionarmos uns com os outros e nos relacionarmos com nós mesmos — mecanismos que facilitam essas dinâmicas de polarização —, parece que esse quadro veio pra durar algum tempo. Ele veio para durar, eu diria, pelo menos até que alguma outra solução se apresente como o novo centro do debate político. Alguma coisa, alguma outra coisa consiga ocupar o espaço desse consenso pós-político que se formou em torno do neoliberalismo.
Quanto tempo vai levar para isso acontecer? Bom, eu não arriscaria palpite, eu acho que é muito difícil tentar identificar isso. Mas é absolutamente urgente, tanto por conta dos riscos que a gente corre com essas dinâmicas de polarização, quanto pelo fato de que o relógio está correndo contra nós em relação ao aquecimento global.
É uma crise, é um um enigma que ou a gente decifra ou nos devorará, porque a gente não tem mais muito tempo a perder. E quanto mais tempo a gente perder, mais a gente estará se aproximando daquele futuro que parece ser um futuro para o qual a extrema direita aponta, que é um futuro, no fim das contas, de guerra por recursos, de um estado de natureza diferencialmente distribuído entre as pessoas, a lei do mais forte numa situação em que alguns que são muito mais fortes e outros que são muito mais fracos. É um cenário perfeitamente possível. Em um certo sentido, a gente poderia dizer talvez que seja o cenário mais provável, porque, no final das contas, me parece que basta apenas tudo continuar como está que a gente acabará chegando lá.
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