‘Negacionismo soft pode ser mais perigoso que o histérico’
Mariana Vick
22 de outubro de 2024(atualizado 23/10/2024 às 13h57)Professor da Universidade Estadual do Ceará e cientista do clima, Alexandre Costa fala ao ‘Nexo’ sobre a publicidade do divulgador científico Atila Iamarino para a companhia de petróleo Shell
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Atila Iamarino em vídeos de publicidade para a Shell no Instagram
Se, no passado, negar os efeitos da mudança do clima era a principal estratégia da indústria petroquímica, hoje o negacionismo climático se renovou: virou um negacionismo “soft”, que não oculta o aquecimento global, mas atrasa as soluções — e pode ser mais perigoso por seduzir e neutralizar uma parcela mais ampla da sociedade.
Essa é a avaliação de Alexandre Costa, professor da Uece (Universidade Estadual do Ceará) e cientista do clima, sobre duas peças de publicidade de Atila Iamarino para a Shell publicadas nas redes sociais desde o dia 11 de outubro, nas quais o biólogo e divulgador científico diz que o petróleo fornece “energia vital” e “se tornou central em nossa vida moderna”.
As postagens receberam dezenas de comentários críticos de cientistas. “O efeito do petróleo é Porto Alegre debaixo d’água, são a Amazônia e o Pantanal sendo perdidos”, disse Costa ao Nexo. para ele, o prestígio de Atila como divulgador científico — que ganhou projeção na pandemia de covid-19 — foi instrumentalizado pela petroquímica, que tem interesse em chegar a seu público.
“É por isso que o grande problema não é o Atila, mas a Shell. Nesse xadrez, o Atila é só um peão” no longo histórico da indústria na promoção do negacionismo climático, afirmou. Ainda assim, ele criticou as ações de divulgadores que parecem tratar a “informação climática como uma mercadoria qualquer dentro da economia da atenção”.
Nesta entrevista, feita ao Nexo por telefone na segunda-feira (21), Costa explica o histórico da indústria petroquímica na promoção do negacionismo climático e explica por que discursos como o da propaganda da Shell são uma forma renovada desse negacionismo. Fala também sobre o papel da divulgação científica nesse cenário e os paralelos entre os negacionismos do clima e da pandemia.
Qual foi o papel da indústria petroquímica na construção do negacionismo climático?
ALEXANDRE COSTA O papel foi central. Já havia uma máquina de negacionismo científico estruturada pela indústria do tabaco, que ia muito além do simples lobby corporativo tradicional. Envolvia campanha de relações públicas, envolvimento com a mídia, cooptação de políticos, grupos de apoio — com aquela história da “liberdade do fumante” — e uma dupla cooptação, fosse de médicos — que apareciam em publicidades dizendo que tal marca de cigarro era mais segura —, fosse de cientistas, que faziam o contraponto da hard science para colocar em dúvida [as evidências sobre os malefícios do cigarro] e prolongar o debate artificialmente. Tem um estudo muito bem realizado pela [historiadora da ciência] Naomi Oreskes sobre esse tema, que deu origem ao filme e ao livro “Mercadores da dúvida”.
Refinaria da Shell em Singapura
A indústria petroquímica herdou esse aparato e o pôs num patamar superior. Os principais protagonistas desse processo foram o Instituto Americano de Petróleo e a [petroquímica] ExxonMobil, mas a Shell está longe de ser isenta. No caso da Exxon, essa estratégia vem do final dos anos 1970, e, no da Shell, vem principalmente dos anos 1980. Há uma farta documentação sobre isso. [Documentos] atestam muito claramente que essas empresas sabiam das consequências do que estavam fazendo. Eles falavam já de elevação da temperatura, elevação do nível do mar, derretimento de geleiras e mudança em padrões regionais do clima. Um integrante da Shell chegou a escrever que provavelmente a mudança no clima iria alterar o tecido das relações econômicas e ecológicas. Mesmo antes da criação do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU], eles tinham essa noção, e eles optaram — não isoladamente, mas em conjunto — por engavetar tudo isso, esconder tudo do público e lançar uma grande campanha de enfrentamento à ciência do clima.
Quando foi nos anos 1990, por exemplo, o Instituto Americano de Petróleo publicou um documento [declarando isso]. Eu, como cientista, sou muito cético, odeio teoria da conspiração. Mas um documento do instituto contém um trecho dizendo justamente que a vitória deles seria alcançada: a) quando a mídia refletisse um equilíbrio na cobertura da visão tradicional da ciência e explicações alternativas para a mudança do clima; b) quando isso também estivesse refletido em outros setores da indústria, da política e do meio acadêmico; e c) quando os defensores da lógica do Protocolo de Kyoto [de 1997] — que na época era o instrumento que se tinha pra tentar limitar as emissões — fossem vistos pelo público como pessoas fora da realidade. Não foi casual, foi deliberado.
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Essas campanhas também usaram alguns dos mesmos cientistas que haviam se vendido à indústria do tabaco — como [o físico austríaco] Fred Singer e [o físico americano] Frederick Seitz — e um ou outro da área de clima para fazer o falso contraponto. Com isso, conseguiram produzir um volume de propaganda que fez com que, durante muito tempo, a mídia desse ouvido a essas figuras — já que eu entendo, em geral, que o jornalismo ouve os dois lados. Eles sequestraram essa tese justa dos jornalistas e conseguiram espaço para provocar confusão. Aqui mesmo no Brasil — mas isso vem mais do agronegócio — as pessoas davam ouvidos a figuras minúsculas do ponto de vista científico como [o climatologista] Ricardo Felício e [o meteorologista] Luiz Carlos Molion. Mas o que importa dizer é que, historicamente, o papel dessas companhias [petroleiras] foi, primeiro, fabricar o negacionismo climático e, depois, propagá-lo com um largo financiamento. Estamos falando de muitos milhões de dólares repassados a fundações, grupos de ação e a todo tipo de intervenção.
De que formas esse negacionismo está se renovando hoje?
ALEXANDRE COSTA Mais recentemente, eles têm tentado se descolar do que vinham fazendo antes. Se você entra na página da Shell ou da Exxon, eles não negam mais a mudança climática abertamente. Na era digital essas coisas já se reproduzem sozinhas, então por que eles iriam sujar as mãos, né? Mas, de qualquer modo, o que eles dizem é que agora são empresas preocupadas com o meio ambiente — ou seja, entraram na onda do greenwashing. Passaram a falar de compensação de carbono, de crédito de carbono ou de captura de carbono, sempre indo pelas falsas soluções laterais, sem entrar na questão fundamental [para combater a mudança climática], que é abandonar os combustíveis fósseis.
Esse é o contexto de hoje. O negacionismo histérico não é mais útil como era. Tirando a bolha extremista, quem vai levar a sério um sujeito como Ricardo Felício? Tem um monte de tragédia acontecendo ao mesmo tempo, o caos climático está instalado na casa das pessoas, e ele segue com aquele discurso? Esse tipo de figura não interessa mais à Shell ou à Exxon. O que interessa agora é outro recorte.
Brigadistas voluntários caminham sobre área queimada em Corumbá (MS), no Pantanal
Existem questões, por exemplo, que envolvem o racismo ambiental — são as comunidades periféricas, são os povos indígenas, são as pessoas negras da periferia que são mais brutalmente atingidas pelos impactos da crise climática. O que a Shell faz? Chama pessoas negras para fazer propaganda. Tem a injustiça geracional. Sou pai de três filhos e todo dia sofro imaginando o mundo que vai ser herdado por eles. E o que as empresas fazem? Propagandas com pessoas jovens.
Como a publicidade de Atila Iamarino para a Shell se conecta a esse contexto?
ALEXANDRE COSTA É fundamental para eles ter publicidade com cientistas. Como dizia [o filósofo] Francis Bacon, o conhecimento em si é poder. Se uma empresa neutraliza a divulgação científica, sabota a academia e faz com que a ciência não chegue ao grande público, isso é interessante, porque eles não precisam mais dizer que o aquecimento global não existe. Em vez disso, eles vão na lógica de atrasar as medidas [de combate à mudança climática], de fazer greenwashing, de inventar falsas soluções.
O Atila, aliás, já tinha feito propaganda para a Shell. Era uma publicidade sobre o etanol. Eu já tinha achado aquilo ruim, a figura dele aparecendo vinculada à Shell, mas ele estava falando de etanol — que, com todos os seus impactos de monocultura, compõe o leque de soluções para a transição energética. O vídeo era impreciso, porque não falava dos impactos deletérios do etanol, mas ele não estava mentindo, “apenas” omitindo informações. Para mim, aquele era o limite.
Mas agora ele atravessou o Rubicão. “Sabe o impacto que o petróleo tem?” Amigo, eu sei. É gerar ciclones tropicais de categoria 6, tufões e furacões de categoria 6, é gerar o Irma, o Maria, o Katrina, o Milton — furacões que têm nomes de pessoas, mas deveriam ter nomes de petroquímicas. O efeito do petróleo é Porto Alegre debaixo d’água, são a Amazônia e o Pantanal sendo perdidos. Esse é o efeito do petróleo. Aquilo foi mentira, foi negacionismo. Já teria um valor bizarro se dito por qualquer pessoa — um ator, por exemplo —, mas [é pior vindo de] alguém que ganhou notoriedade e prestígio, de forma absolutamente justa, a partir da fidelidade aos dados científicos. Não podemos apagar o papel extremamente positivo que Atila e outros divulgados tiveram na pandemia de covid-19. Eles salvaram as pessoas.
Agora, esse prestígio é instrumentalizado para a Shell. É por isso que o grande problema não é o Atila, mas a Shell. Nesse xadrez, o Atila é só um peão. A credibilidade dos divulgadores junto aos setores mais progressistas da sociedade e ao segmento que ouve mais a ciência é muito grande. Capturar esse segmento, neutralizá-lo e cooptá-lo, seja qual for o grau, é de interesse para essas empresas. Esse é o novo jogo. É o negacionismo “soft”, que pode ser mais perigoso do que o negacionismo histérico, porque o negacionismo histérico só mobiliza uma bolha extremista, enquanto o “soft” pode seduzir e neutralizar uma parcela muito mais ampla da sociedade — justamente a parcela que poderia se mobilizar pela causa climática.
Pessoas caminham em rua alagada no bairro de Cavalhada, em Porto Alegre (RS)
É um episódio lamentável para o Atila, para a divulgação científica brasileira e para nós, cientistas, porque ele foi um dos caras que mais ganharam visibilidade. Se tivéssemos uma figura com o peso, a influência social e a audiência do Atila — e mesmo com a capacidade didática dele, que é muito boa — jogando no nosso time [da ciência do clima], seria maravilhoso.
E acho que esse caso ficou especialmente ruim porque, no fim, o público não aceitou. Outros divulgadores científicos têm um público menos crítico. Talvez com eles a publicidade não pegasse tão mal. Com o Atila, pode não ter surtido o efeito que eles [a Shell] esperavam.
Qual deve ser o papel de divulgadores científicos no atual contexto de mudança climática?
ALEXANDRE COSTA A responsabilidade é a mesma que tiveram na pandemia. Porque vamos combinar: a pandemia era um evento concentrado no tempo. Eu sempre disse que o caos climático faria a pandemia parecer uma coisa pequena, porque ele iria permanecer, iria desestabilizar a civilização humana. Esse é o potencial [da crise do clima]. E não tem vacina. Só tem uma saída: cortar as emissões radicalmente, zerar o desmatamento e promover uma transição rápida que reduza a demanda energética e permita o encerramento das atividades da indústria de combustíveis fósseis. O que os divulgadores de ciência têm que fazer? Falar isso, falar a verdade, falar o que a ciência do clima diz.
Os painéis de ciência — e falo isso como quem está dentro da área — são moderados e conservadores nas suas falas. É muito raro ser completamente assertivo em ciência. “É extremamente provável que”, “os resultados indicam que”, “essas medidas sugerem que” — os papers científicos estão cheios disso. Esse tom cauteloso tem a ver com o método científico, já que, num paper, o cientista está falando para outros cientistas. Mas, para fora, a gente tem muito mais certeza [sobre nosso objeto de estudo] do que se dá a entender lendo esses papers. O papel da divulgação da ciência é lançar esse alerta. Precisamos nos mobilizar urgentemente para resolver o maior desafio jamais posto para a humanidade.
Mulher se refresca na Fontana della Barcaccia durante onda de calor na Itália em 2023
Dito isso, a primeira coisa que me causa estranhamento é como, em geral, os divulgadores científicos ainda têm pouco aprofundamento na questão climática, têm um diálogo limitado com a comunidade acadêmica e, sendo bastante sincero, às vezes parecem tratar da questão climática como uma entre tantas dentro da lógica mercantil da economia de atenção. É como se a crise climática fosse um produto da prateleira, que se pode optar por promover ou não, a depender de quanta atenção isso chame ou de quantos views, likes e seguidores isso dá. Essa em si já é uma lógica terrível.
Compartilho do sentimento do [climatologista] James Hansen, que foi diretor do Instituto Goddard da Nasa. Ele pesquisava Vênus quando era jovem cientista. Quando eles constataram que Vênus era extremamente quente por conta do efeito estufa — e quando, depois, constataram que o efeito estufa da Terra estava crescendo —, ele mudou toda sua trajetória científica. Para ele, era muito mais importante se preocupar com o que estava acontecendo na sua casa. Não dá pra tratar a informação climática como uma mercadoria qualquer dentro da economia da atenção. É por isso que, com todo o respeito que qualquer pessoa merece, achei profundamente lamentável — e, diria, imperdoável — a tal publicidade do Atila.
Atila Iamarino ganhou notoriedade ao combater o negacionismo na pandemia de covid-19. Qual é a relação entre o negacionismo climático e os negacionismos que vieram depois?
ALEXANDRE COSTA Pois é, o Atila pagou um preço alto na pandemia. Ele foi ameaçado, difamado e perseguido. Isso só torna tudo mais trágico, porque o negacionismo da covid-19 é filho do negacionismo climático.
Depois do boom da Exxon, quem assumiu o protagonismo do negacionismo climático nos EUA foram os irmãos Koch — Charles e David Koch, das Koch Industries, um grupo com indústria petroquímica, indústria química e várias outras coisas. Esses irmãos não eram ativos apenas no negacionismo climático: eles sempre foram atores importantes na estruturação da nova direita radicalizada americana. Os dois financiaram grupos para defender a privatização ainda maior de serviços diversos, como educação, e financiaram grupos de direita engajados nas chamadas pautas de costumes.
Tendo assumido esse processo às vésperas do boom digital, quando a internet começou a se popularizar, o negacionismo climático entrou como uma componente do ecossistema de ideias da direita radical — e isso até hoje. O Vox [partido da extrema direita espanhola] é negacionista. O [Donald] Trump [ex-presidente dos EUA], obviamente, é negacionista. O AfD [partido da extrema direita alemã] é negacionista. Esse é o resultado de um processo que foi fermentado lá nos Estados Unidos e depois se propagou, porque essa direita é internacional.
Homem ilhado durante o Furacão Katrina, em 2005
Houve, na verdade, um período em que o negacionismo climático era ambidestro, vide [o ex-deputado federal e hoje secretário municipal de Relações Internacionais de São Paulo] Aldo Rebelo, na época ainda no PCdoB, defendendo o novo Código Florestal e evocando o materialismo dialético de [Karl] Marx contra, segundo ele, a “hipótese” do aquecimento global. É inacreditável, mas havia uma esquerda fortemente negacionista algum tempo atrás. Mas o fato é que esse negacionismo passou a ser uma questão no ecossistema da direita.
Dito isso, quando veio a pandemia, as teorias de conspiração nesse caldo de cultura afloraram rapidamente. Surgiu, por exemplo, aquela história que é sempre contraditória — ao mesmo tempo em que [a covid-19] era só uma gripezinha, era um vírus mortal deliberadamente lançado no mundo pela China. A questão é que foi esse ecossistema — construído a partir do negacionismo climático — que fomentou a possibilidade do surgimento dos negacionismos da pandemia. O negacionismo da pandemia não existiria se não existisse o negacionismo climático. Tudo isso que essa turma viveu agora [em 2020], nós já estamos enterrados até o pescoço há muito tempo.
Isso mostra também que cientistas e divulgadores da ciência precisam ter noção daquilo que eles muitas vezes desprezam, que são as ciências humanas — sociologia, filosofia e história. É preciso conhecê-las, porque a ciência não é neutra nem livre de valores. A ciência tampouco é um produto de prateleira se que pega na hora em que se quer.
Ao mesmo tempo em que há diversos conflitos de interesse no trabalho para corporações, ainda é muito difícil viver da divulgação de ciência. Como superar essa situação?
ALEXANDRE COSTA É importante dizer que isso não ocorre só com a divulgação científica. A própria ciência é bastante precarizada. Tivemos, finalmente, com o governo Lula, um refresco com o reajuste das bolsas, mas elas continuam muito baixas. Além disso, viver de bolsa é uma total insegurança: você pode ter num dia e não ter mais no outro. Se a pesquisa é tratada dessa forma, imagine a “prima pobre” dentro das universidades, que é a extensão, onde a divulgação da ciência se encaixa. Não tem financiamento. São raríssimos editais, de pequena monta.
Preciso também não só apontar o dedo, mas fazer mea culpa, porque o segmento acadêmico olha com desdém [para a divulgação científica]. Isso é um absurdo. É só pensar no [físico americano e divulgador científico] Carl Sagan, né? Para mim foi inesquecível ver “Cosmos” na TV aberta, na Globo, quando tinha 10 anos de idade. Tinha que ter financiamento na universidade para isso.
Mas mesmo isso não é suficiente. Tem muito professor titular com a vida ganha que usa seu posto da universidade para benefício de empresas privadas. Esse é outro debate que precisa ser travado, que é o da ética. Há linhas que precisam ser traçadas, e nossos cursos de ciências precisam falar disso. O mito da neutralidade [da ciência] foi uma das coisas mais perversas já difundidas. Em questões como a do clima, como ser neutro? Como ser neutro entre 10 milhões de pessoas de Bangladesh que são afetadas pelas monções, enchentes e elevação do nível do mar e corporações como a Shell e a Exxon? Isso precisa ser debatido.
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