Coluna

Luciana Brito

Escola não é quartel: a educação como prática libertadora

25 de julho de 2023

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Nesse ambiente autoritário, onde a diversidade sexual, religiosa ou racial é objeto de negação, suspensão e expulsão, professoras e professores perderam autonomia

No dia 10 de julho, o presidente Lula anunciou o fim do financiamento federal às escolas cívico-militares , justificando que criar e financiar essas instituições não é obrigação do Ministério da Educação, que tem como um de seus deveres desde a Constituição de 1988 criar colégios civis. A ação do presidente desagradou setores mais conservadores que engrossam o batalhão daqueles e daquelas que percebem o espaço escolar como campo de uma suposta “guerra cultural”. No entanto, da parte de entidades estudantis, professoras e professores e famílias, a medida foi bem recebida.

Até os anos 2000, as escolas militares são instituições criadas pelas Forças Armadas brasileiras. Para estudar numa delas, o estudante civil deve se submeter a um processo seletivo, já que a maioria das vagas, ou ao menos 50% delas, é destinada para filhos e filhas de oficiais, em geral, de alta patente. Portanto, essas escolas, com gestão e políticas pedagógicas próprias, seriam o veículo de produção e perpetuação de uma elite nas Forças Armadas que preparariam seus descendentes para cumprir o mesmo papel. Sendo essas escolas um espaço hereditário dos militares e de alguns civis que miram o militarismo como espaço de ascensão social, as escolas militares seriam algo cobiçado de longe, porém quase que sem chances para as famílias civis pobres e negras. Isso por causa da sua promessa de educação de qualidade, disciplina e acesso às mais altas posições da hierarquia militar, refletidas nos salários e benefícios.

As escolas cívico-militares são algo COMPLETAMENTE diferente das escolas militares, na sua gestão, objetivos e justificativas, mas sobretudo para o público para a qual se destina. Desde 2001, o estado de Goiás já vem implementando o modelo cívico-militar em muitas das suas escolas. Lá, assim como no restante do país, a justificativa era diminuir a violência no ambiente escolar, ensinar práticas de disciplina entre os estudantes enquanto, ao mesmo tempo, melhoravam seu desempenho escolar. Essa era a mesma promessa que também apresentou-se atrativa para as famílias negras, pobres e de bairros periféricos e de pequenos municípios em outros estados, como a Bahia, que mesmo sob um governo de esquerda, aderiu ao projeto de militarização das escolas estaduais em 2017. Assim, progressivamente, nas periferias de quase todo país, foi possível perceber, gradualmente, a “ocupação” militar nas escolas do bairro, o que acabou também sendo mais uma força do braço armado do Estado nessas localidades. Ao fim e ao cabo, isso significou pouco investimento em educação (estrutura, material pedagógico, salário das professoras e professores) e mais uma modalidade de política de segurança que criminaliza a juventude negra e pobre.

A princípio, a ideia de ter os filhos, netos, sobrinhos e afilhados estudando num “colégio militar” alimentou os sonhos das famílias das comunidades periféricas cujos jovens negros são as maiores vítimas da violência. A promessa de impor uma disciplina aos jovens, o que supostamente melhoraria o comportamento dos meninos e meninas, responderia às preocupações das famílias a respeito do ensinamento de práticas cotidianas que prolongassem suas vidas e ainda garantissem a inserção desses jovens no mercado de trabalho. Dessa forma, acreditavam, seriam afastados da criminalidade através do ensinamento de um comportamento que supostamente os poria longe de problemas com o Estado ao passo que enquadravam-as num comportamento “socialmente aceitável”.

No entanto, o que se viu pelo país foi a continuidade da evasão escolar, o pouco investimento na escola e nos salários de professoras e professores, enquanto eram oferecidos aos militares da reserva que atuam como “disciplinadores”, benefícios bem mais robustos do que aqueles e aquelas que possuem uma formação pedagógica para desempenhar suas funções. Além disso, diversos são os casos de abuso, violência e intimidação de professores, mas sobretudo das professoras no espaço escolar que, agora comandado por militares, tornou-se um espaço de autoritarismo e hierarquia, validados por muita misoginia.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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