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‘Amai e… não vos multipliqueis’: a luta feminina no século 20

Maria Lacerda de Moura


18 de fevereiro de 2022

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O ‘Nexo’ publica trecho de coletânea de artigos de Maria Lacerda de Moura para o jornal ‘O Combate’. Publicada originalmente em 1932, a obra trata do empenho das mulheres em combater as formas de opressão encontradas por elas nos campos social, político, religioso, e também do feminismo

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Que é emancipação?

Dentro desta sociedade, em que se compra o pensamento, o amor e a consciência, é lá possível falar-se de emancipação humana?

E, se o homem é escravo do homem, através do salário, e, se a mulher é duplamente escrava, do homem e do salário — como podemos pensar na emancipação feminina dentro do regime legal burguês-capitalista, no qual a função da mulher se limita a máquina de prazer ou de trabalho ou a fabricar a carne para os canhões vorazes?

Mas, a expressão usada na literatura, no jornalismo, na cátedra, no púlpito, para dourar a pílula engolida pela idiota milenar, não será “fabricar as carnes para os canhões”, e sim, fala-se na “maternidade sagrada”, “direitos das mães” (só dentro da lei, já se vê), “deveres para com as mães”, “dia das mães”, “rainha do lar”, “educadoras dos cidadãos de amanhã”, — todas essas chapas convencionais — a fim de arrastar a deusa e santa, através dos filhos, para o açougue canibalesco donde os grandes e os poderosos extraem a matéria-prima com que encher as suas arcas vorazes e com que comprar cortesãs caríssimas e posições espetaculosas no cenário social.

Nesta sociedade, a mulher, ou tem de ser a fabricadora de carnes para o Melcarte da guerra ou das revoluções, de fauces escancaradas e sangrentas em tempo de paz tanto quanto em época de luta armada, ou terá de ser a “virtuosíssima” cortesã dos salões (casada legalmente, mas, geralmente prostituída na alma muito mais do que no corpo) — para o gozo dos elegantes cidadãos patriotas e cristãos civilizados, ou dos sultões do harém da monogamia de comediantes.

Falhando essas duas hipóteses, terá de ser a prostituta fabricada pelo mesmo cínico que a tirou, menina, das camadas populares, que a comprou de qualquer cáften e irá aumentar o cortejo das que têm por missão saciar a fome bestial do senhor de escravas brancas, assalariadas para a venda de sua carne.

Se ainda falhar essa hipótese, (e tudo é questão de sorte, acaso, destino), será a desgraçada solteirona histérica, a criar cachorrinhos ou titia de sobrinhos malcriados.

Se falha também essa hipótese, há outra: a da besta de carga, a proletária, explorada no trabalho, noite e dia, pela exigência da família — cheia de necessidades.

É inútil pensar em fugir de qualquer das hipóteses.

A mulher tem de cair em uma dessas redes.

A solteirona podia falhar ao seu destino, se se resolvesse a deixar de ser o relicário famoso da honra da família. De todas as hipóteses, é a mais deprimente e a mais tola — pela ingenuidade, pela ignorância, pela idiotice com que se sacrifica inutilmente, passando a ser motivo de ridículo e zombaria de toda a família, por quem se sacrificou, e de toda a sociedade, que impõe o sacrifício a quem não tem coragem para se tornar livre, consequentemente: antissocial.

A mulher não passa de cousa, bibelot, lulu-da-pomerânia, animal de tiro, máquina de prazer, procriadora na maternidade imposta, inconsciente, de cidadãos para a defesa sagrada da pátria dos histriões políticos — também presos aos cofres dos altos industriais, reis do aço, do petróleo, do carvão, da borracha ou do café.

É sempre a explorada pelo homem, como ambos são explorados pela organização social de privilégios e convenções.

Dentro de tal regime, quem quiser emancipar-se, ou melhor: quem quiser caminhar para a sua realização, tem de desertar da sociedade, ser indivíduo antissocial, colocar-se fora da lei e dos preconceitos de uma civilização envilecida de crimes e de baixezas.

A organização social baseada no capital e no salário, na exploração do homem pelo homem, civilização de indústria, nunca emancipará nem ao homem, quanto mais à mulher.

Não há absolutamente ilusão alguma para os que veem menos superficialmente o caminho errado seguido pelos homens arrastando as mulheres em direção à loucura da voragem de todas a degenerescências — para o suicídio coletivo da humanidade, cada vez mais acorrentada à geena de necessidades perfeitamente dispensáveis, inventadas pelos industriais, os mercadores do fantástico mercado do gênero humano.

A concorrência comercial, a ambição incomensurável dos que buscam acumular sempre, mais e mais, em detrimento de todos, a megalomania do poder e da autoridade, a correria louca de toda gente em busca dos prazeres e excessos sensuais — tudo é um passo para as guerras, para as revoluções, para o descontentamento geral, para o assalto às posições já ocupadas — a busca do gozo material num delírio de baixo sensualismo — que é bem a amostra do degenerar de todas as fibras mais sensíveis e mais admiráveis das energias interiores, dos seres humanos.

O homem deixou de ser homem para ser máquina dispersadora de forças fantásticas, inutilmente, cujo objetivo, cuja finalidade se resume em inventar necessidades ilusórias, complicando cada vez mais a vida, em um esbanjar de energias que assombra, exclusivamente voltado para o progresso material.

E esse progresso é a morte, a escravidão de uns, ociosidade de outros, a degenerescência de todos.

Do progresso material resultam as guerras, cujo pretexto é o ídolo da Pátria (ídolo exigente, Moloc insaciável como todos os ídolos) e cuja razão de ser vamos buscar na concorrência comercial, nas Bolsas e nas grandes usinas de armas, nos cofres-fortes dos donos da humanidade, escravizada ao bezerro de ouro.

Dentro da sociedade capitalista a mulher é duas vezes escrava: é a protegida, a tutelada, a “pupila” do homem, criatura domesticada por um senhor cioso e, ao mesmo tempo, é a escrava social de uma sociedade baseada no dinheiro e nos privilégios mantidos pela autoridade do Estado e pela força armada para defender o poder, o dominismo, o industrialismo monetário. Assim pois, socialmente falando, dentro do regime do Estado burguês-capitalista, todos são escravos, todos são exploradores e explorados, ninguém pode conhecer o que seja emancipação.

É uma civilização de escravos a sociedade que decreta uma moral para cada sexo.

Maria Lacerda de Moura (1887‐1945) foi professora, escritora, anarquista e feminista. Formou‐se professora pela Escola Normal Municipal de Barbacena e participou de esforços para enfrentar a questão social através de campanhas nacionais de alfabetização e reformas educacionais.

Capa do livro "Amai e... não vos multipliqueis", com fundo verde e tipografia em preto

Amai… e não vos multipliqueis

Maria Lacerda de Moura

Chão Editora

328 páginas

Lançamento em fevereiro