A força da resistência atravessou o tempo. Não se trata de romantizar a ancestralidade, mas de reconhecer a profundidade de outros pensares e dos imaginários como dimensões da realidade social. E, por isso, acreditamos que tem sentido refletir com eles o amanhã como uma sociedade imaginada, idealizada e forjada no sentido profundo da vida como dádiva, em que a espécie humana é apenas uma dentre milhões que povoam o planeta. A utopia como sonho ou lugar que não existe, mas povoa o imaginário e dá pulso às forças sociais. Uma utopia integrada às raízes da terra e comprometida com o bem-estar de todas e de todos, diferente portanto daquelas que o Iluminismo fomentou pela razão como verdade universal e sobre a qual se erigiram os ordenamentos e as instituições político-econômicas da modernidade-colonialidade demarcada pela exclusão e classificação social.
Descentralizar o olhar formado nos cânones da razão instrumentalizada significa perceber outros paradigmas essenciais ao entendimento da sociedade e desses fenômenos emergentes, tais como as mudanças climáticas, que nos impõem reconhecer a natureza como um ator que se move independente dos humanos. É também refletir sobre os novos processos de diáspora e de racialização que se multiplicam no mundo. Massas crescentes de população são desterritorializadas em todos os continentes, refugiadas, deslocadas compulsoriamente devido às crises e mudanças nos ciclos de acumulação e na geopolítica do mundo, guerras, intolerâncias e fundamentalismo, entre outros processos transnacionais que têm conduzido à vulnerabilidade da vida em escala planetária. Os exemplos dos eventos climáticos extremos são trágicos, como as mudanças no regime de chuvas provocando deslizamentos de terras, soterrando casas, escolas, hospitais e pessoas, o desaparecimento de ilhas devido ao aquecimento climático no oceano Índico, a perda de glaciares na Cordilheira dos Andes, entre tantos outros exemplos ao redor do mundo. Dinâmicas também transnacionais que implicam repensar as crenças e as utopias do passado e os desafios que se tem pela frente, de erigir um sistema de conhecimento e de ação capaz de produzir as rupturas que se impõem e que têm sido ressaltadas largamente pela literatura ambientalista e pelos movimentos sociais
Se podemos falar de mundo no plural, de imaginários e de lógicas distintas que sempre estiveram presentes na reprodução da vida, certamente também podemos falar de possibilidades e de produção de saberes contextualizados enquanto sinalização de um outro mundo a imaginar. Reconhecer, no plural, o singular que ele contém em si mesmo já é uma postura emancipatória por se contrapor a uma suposta universalidade do saber produzido pela ciência ocidental e pela classificação de ordens de saberes, desde a primazia da razão até conhecimentos do outro, o primitivo da ciência, representado como saber vulgar, mágico e assistemático.
Ao formular uma crítica à racionalidade ocidental, buscamos possibilidades epistêmicas a partir da prática e da vivência considerando três perspectivas. A primeira é reconhecer a insuficiência das teorias que nos informam para dar conta da diversidade da experiência social do mundo. Os referenciais clássicos das ciências e da teoria crítica foram fundamentais à compreensão temporal e espacial das sociedades ocidentais, da modernidade e do entendimento do mundo. Na segunda perspectiva, chamamos a atenção para as categorias contextualizadas como a de colonialidade do poder, que ajuda a entender as sociedades latino-americanas, o racismo, a racialização e a violência enquanto dimensões do crescimento econômico que permanecem como chave de entendimento do presente. Que lógicas podem ser emancipatórias e sob que novos parâmetros da vida? Como seriam as sociedades pós-desenvolvimento e pós-capitalismo? Essas perguntas fomentam o debate atual, diante de situações-limite presentes na crítica à razão reducionista, evolucionista e liberal das interpretações críticas sobre a modernidade em diferentes perspectivas. Uma crítica ao desenvolvimentismo a partir da ecologia política e dos estudos pós-coloniais. A terceira perspectiva diz respeito à inversão do olhar no sentido de reconhecer as realidades como portadoras de sentido que escapam ao entendimento fora de um contexto da experiência social vivida, com suas regras próprias de linguagem, cultura e ação política. Ressalta a diversidade de saberes étnicos e sociais e interroga em que eles contribuem para repensar o mundo de hoje.
Diante dessas perspectivas epistemológicas se pensa a desconstrução de marcos que limitam a análise da filosofia política, como propõe Dussel, de superar o chamado mito da Modernidade, cujos processos centrais foram atos de violência realizados pelo dominador em relação ao dominado, em nome do desenvolvimento e da civilização nas Américas e nas Áfricas. As sociedades latino-americanas sempre estiveram engajadas, de uma ou outra forma, na busca de alternativas, como mostra Lander, em direção à desconstrução do caráter universal e natural da sociedade capitalista-liberal. As lutas de povos amazônidas até o presente constituem um contínuo re-inventar da re-existência.
Utopias amazônicas
Org. Marcos Cólon
Ateliê Editorial
336 páginas