Luís Costa
O jornalista e historiador Luís Costa propõe um roteiro de cinco livros para tentar decifrar Getúlio Vargas
De tão repetido, colou-se o chavão: Getúlio Vargas, uma esfinge. Enigmático, impenetrável. Num país de oradores inflamados, Vargas chegou ao poder no comedimento de gestos. Ninguém ficou mais tempo na cadeira presidencial do Brasil: entre 1930 e 1954, foram 19 anos, entre governos provisório, constitucional, ditatorial e democrático.
Getúlio, sabe-se, era homem que preferia o silêncio tático à eloquência teatral. Esquivava-se de perguntas ferinas no riso fácil e aberto. Tinha o jeito esguio, mais mineiro que gaúcho. Sua biografia política nada linear fez com que o velho escapasse às definições fáceis, às etiquetas apressadas, simplistas ou preguiçosas. Raposa, caudilho, déspota, pai dos pobres, inventor do Brasil moderno — são muitos os epítetos, alguns mais acurados que outros, disparados da retórica de entusiastas e detratores.
Entre biografias, memórias, diários de gabinete e análises políticas, esta lista propõe um possível roteiro de decifração da figura mais influente da história da República no Brasil.
Lira Neto (Companhia das Letras, 2014)
É a mais recente biografia de Getúlio, lançada em 2014, nos 60 anos do suicídio que estremeceu a República. Uma documentação farta se espraia pelos três volumes escritos por Lira Neto. O autor foi aos arquivos de cartas e jornais, a filmes, fotografias e canções, peças de coleção e autos de julgamentos para traçar um Getúlio que viu — e fez — o Brasil transformar-se: da gênese na conturbada São Borja do final do século 19, ambientada na política provinciana do Rio Grande do Sul, ao país que se pretende despontar industrial, moderno e soberano na década de 1950.
A escrita tem o traço de estilo, próprio às biografias, dado às minudências e à descrição de detalhes que, noutras penas, poderiam passar despercebidos. Lira usa fontes primárias clássicas e inéditas, dialoga com teses e dissertações, investiga o quadro político do país e entra, também, nos segredos de alcova.
Da biografia, sobressai um Getúlio mais contraditório que bem delineado, antes ambíguo que preciso. É o mesmo Getúlio que despe-se das roupas de ditador do Estado Novo e acomoda-se nas vestes de democrata nos anos 1950, como se nele habitassem, em uma dialética própria, dois personagens que a razão diria inconciliáveis.
Alzira Vargas (Objetiva, 2017)
Foi na casa da família Vargas no bairro do Catete, no Rio dos anos 1920, que Alzira Vargas diz ter conhecido as “sombras do poder”, quando o pai, ascendente deputado federal, assumiu a liderança da bancada gaúcha na Câmara dos Deputados. Anos mais tarde, ainda na faculdade de direito e nomeada auxiliar de gabinete do já presidente Vargas, Alzira viria a ser testemunha e personagem fundamental dos salões do poder no Palácio do Catete.
Suas anotações desatam a intimidade de Getúlio, pai ora severo, ora matreiro. Alzira investiga a índole da política do homem tido por exímio calculista político. “Sempre me pareceu ouvir, anos mais tarde, dizerem que papai era de índole calma e serena, o homem que sabia esperar. Saber, ele o sabia, mas não gostava”. Ela reconstitui, pela memória, bastidores de alguns dos episódios mais atribulados dos anos de poder, como as crises dos levantes comunista, de 1935, e integralista, de 1938. A reedição de 2017 acrescenta relatos inéditos à clássica de 1960, como uma descrição viva da reunião ministerial da madrugada de 24 de agosto de 1954, horas antes de o presidente, acuado pelo ultimato militar que exigia sua renúncia, disparar um Colt 32 contra o próprio peito.
Tempos depois, Alzira consideraria aquelas páginas como “apenas uma explosão sentimental, com fundo histórico”. Feito como desagravo pessoal à memória do pai, o livro tem o traço de uma devoção indisfarçada. “Havia nele tanta força, tanta grandeza, tanta compreensão, tanta generosidade oculta que às vezes me pergunto: por que tanto num só homem”, escreveu a filha.
Org. Valentina da Rocha Lima (Record, 1986)
Enredo de memórias costuradas pela linha cronológica da história da República, o livro organizado por Valentina da Rocha Lima é resultado de extenso material de entrevistas feitas por pesquisadores do CPDOC/FGV (Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas), que reúne o mais importante acervo documental sobre o ex-presidente.
São 60 personalidades que contracenaram com Getúlio da infância em São Borja aos dias finais no bairro do Catete. Tomados pelo método da história oral, cujo ritmo é dado pela memória falada, os depoimentos refazem histórias da família e do poder, das intrigas palacianas, da queda solitária, das fraquezas e dos enigmas. É o homem rememorado e interpretado por aqueles que orbitaram sua existência mais próxima: filhos, aliados e desafetos, jornalistas, militares, ex-presidentes.
“Era um preparador de cenários”, definiu o escritor e político Barbosa Lima Sobrinho, da ferrenha opositora UDN (União Democrática Nacional). “Ele tinha a preocupação de se libertar do ditador”, avaliou Tancredo Neves, ex-ministro da Justiça, ao tentar explicar por que Vargas não resistiu com armas à tentativa de golpe civil-militar de 1954.
Getúlio Vargas (Ed. Leda Soares, Siciliano/FGV, 1995)
Getúlio Vargas começou a escrever seus diários no exato momento em que a marcha político-militar liderada por Minas Gerais e Rio Grande do Sul punha abaixo a República Oligárquica. A primeira anotação é de 3 de outubro de 1930, data da queda do presidente Washington Luís: “Que nos reservará o futuro incerto neste lance aventuroso?”, escreveu aquele que, à frente do movimento revolucionário, assumiria a presidência do Governo Provisório.
Os manuscritos, guardados nos cadernos mantidos por Getúlio e depois por sua filha Alzira, foram lidos e compilados por sua neta, a pesquisadora Celina Vargas do Amaral Peixoto. Lançados em 1995, reúnem anotações diárias do ex-presidente durante 13 anos no poder.
No Palácio do Catete, Getúlio rabiscaria o dia a dia dos atos de governo, reuniões, jantares e atos públicos. No calor de crises, o diário também dava conta das muitas partidas de golfe e de algumas idas ao cinema. Em meio aos relatos quase sempre diretos e secos da rotina de gabinete, escapam os escritos que revelam seus humores no poder. “Tenho me sentido só, mal ajudado e aborrecido”, escreveu o presidente em agosto de 1935.
Hélio Silva (L&PM, 1980)
Hélio Silva dedicou pelo menos cinco décadas a estudar o fenômeno Vargas, combinando o testemunho histórico à análise política. Jornalista desde os anos 1920, foi chefe de redações no Rio e em São Paulo durante o período em que Getúlio esteve no poder. Em 1959, a convite de Carlos Lacerda, começou a escrever os 16 volumes da obra “O ciclo de Vargas”, editados pela Civilização Brasileira.
Em 1980, no livro síntese que escreveria sobre o ex-presidente, o autor assume a tarefa que, só à primeira vista, parecia simples. Em um prefácio que soa um tanto zangado, Silva se queixa das contingências editoriais que o impediam de escrever tudo o que já havia reunido em uma vida sobre o período. Feita essa advertência, reconhece ali um esforço honesto de decifrar o pensamento político de Getúlio.
O livro traça um perfil político que, segundo o próprio Silva, é “antes uma análise que um julgamento”. O autor não se demora muito nos episódios da trajetória política do ex-presidente e prefere escrutinar a história da Era Vargas nos discursos contados às dezenas, desde a malfadada campanha pela Aliança Liberal, em 1930, à carta-testamento de 1954.
Luís Costa é jornalista e autor de “Bota o retrato do velho outra vez”, estudo sobre as eleições presidenciais de 1950 e um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2017. É doutorando em história pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e foi visiting scholar da Columbia University, nos EUA.
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