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Lígia Souto


17 de janeiro de 2025

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A atriz e dramaturga Lígia Souto indica cinco livros de artistas para conhecer antes de o mundo acabar

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Sou romântica quanto ao fim do mundo. Estou sempre pensando e escrevendo sobre ele. Gosto de pensar que sou quase uma especialista nisso, que de alguma forma detenho esse tema para mim. Dessa obsessão nasceu o meu primeiro livro, “finde mundo, uma coletânea de poesias apocalípticas que saiu pela editora Patuá em 2024, e minha peça mais recente, “udumbara”, que ficou em cartaz em 2018 e previa um fim de mundo parecido com o que viríamos viver em 2020. 

 

Me sinto em casa quando o mundo começa a acabar. Gosto de reparar nos detalhes. De imaginar os absurdos. A cidade vazia depois do caos. Percebo que cultivo essa sensação de que o fim do mundo é urbano.

 

Nos últimos anos, li alguns livros de artistas que me arrebataram pelas suas histórias, suas ironias, seus olhares sobre o presente. Artistas vivos, que compartilham o mesmo tempo-espaço que eu e conseguem traduzir em arte algumas das mesmas questões que me inquietam. Me sinto honrada, penso que é urgente, que todos deveriam conhecer os bons artistas do nosso tempo. Eles existem aqui-agora, pensam aqui-agora, produzem aqui-agora, sobrevivem aqui, agora. Penso naquela máxima, você não pode morrer sem conhecer determinadas coisas. 

 

É hora, portanto, de determiná-las a você, as coisas. Meus cinco livros que fazem sentido num dia como hoje. Cinco livros sobre a cidade, seja qual for a cidade. Cinco livros sobre o fim do mundo, porque o fim do mundo é também sobreviver ao cotidiano. Cinco livros de cinco artistas que você tem que conhecer antes de o mundo acabar.

 

Panaceia parafernália

Leo de Sá Fernandes (Patuá, 2021)

 

Onze contos-reportagem que se interligam por uma misteriosa droga, um elixir de cor lilás, a Belalú. Em “Panaceia parafernália”, o dramaturgo e jornalista paulista Leo de Sá Fernandes explora os efeitos, causas e consequências desse alucinógeno, capaz de transformar personagens em canibais ou seres afrodisíacos que realizam orgias numa sala de estar tomada por galhos secos. O autor nos conduz pela mão e nos faz mergulhar de cabeça em cada universo por ele criado, nos fazendo viver um pouco dos vários finais de mundo, cada um a partir de uma perspectiva social, cada um a partir de uma perspectiva de chapação: é possível pertencer junto com suas personagens a cada cenário e ainda viajar pelos muitos efeitos da substância ancestral e misteriosa que percorre todas as histórias. 

 

Menção especial ao meu conto favorito do livro, “Odara”, sobre os jovens artistas inertes num apartamento do centro da cidade. Qualquer relação com a realidade é mera coincidência. O livro também está disponível em e-book na biblioteca digital de São Paulo, a BibliON. Do autor, também indico o livro de poemas “Murro em ponta de faca” (Primata, 2019) e qualquer uma de suas dramaturgias.

 

Pessoas extraordinárias

Gabriel Pardal (Botafogo, 2020)

 

COMPRAR*

 

Uma coletânea de crônicas que transborda a mais fina das ironias. Neste livro, Gabriel Pardal, um escritor-ilustrador-ator baiano que vive no Rio há mais de uma década, joga luz sobre as contradições do mund(inh)o artístico, sua bolha, sua maquiagem, seus poros entupidos de pó. Narrada por personagens artistas – escritores, atores, jornalistas de fofoca -, a obra escancara as ironias contraditórias desse “meio artístico”, nos questionando e fazendo nos questionar por que ainda endeusamos algumas “pessoas extraordinárias” em detrimento de outras, consideradas comuns. O livro está disponível gratuitamente em e-book ou pode ser comprado em versão física no site da Amazon. Do artista, preciso recomendar também o “Canibal vegetariano” (Rocco, 2016), também disponível gratuitamente, com uma pegada mais visual, mas a mesma lupa ácida, irônica e genial sobre a vida cotidiana. 

 

Concórdia

Carol Pitzer (Patuá, 2024)

 

A dramaturgia utópica da carioca Carol Pitzer se passa numa cidade pós-guerra, reconstruída e constituída totalmente por mulheres. A sociedade se encontra em pleno funcionamento, gerida por arquitetas, médicas, professoras, cozinheiras, cientistas, quando é interrompida pela chegada de um soldado ferido. Cabe às mulheres decidirem se acolhem o homem ou se o enviam de volta para as estradas da guerra, a fim de que ele não interfira em seu cotidiano. A história nos faz pensar nas formas de organização possíveis para depois do fim do mundo. Se a guerra é uma realidade implacável, então podemos (e deveríamos) pensar o que fazer a partir da destruição deixada por ela. 

 

Acorn

Yoko Ono (trad. Carolina Caires Coelho, Bateia, 2014)

 

COMPRAR*

 

Rompendo um tanto bruscamente com o fluxo jovens-artistas-nacionais predominante até aqui, peço licença para indicar uma artista de carreira internacional consolidada e ainda, para nossa grande honra, nossa ancestral e contemporânea. Aos 91 anos, a japonesa Yoko Ono tem fama e trajetória que a precedem. Mas se todo mundo já ouviu falar dela por aí, não sei se todo mundo já a leu. Eu li e acabo relendo sempre

 

“Acorn” é um guia filosófico, um pequeno livro de poemas imperativos que (na rabeira do questionamento deixado por “Concórdia”, no item anterior) nos traz uma possibilidade de ações poéticas para recriar o mundo cotidiano. “Acorn” é um livro-performance e também um livro de performances, além de um livro de poemas que nos fazem evocar a paz. Corroborando sua ampla carreira de multiartista e ativista, Acorn é mais um lindo ato de Yoko pela paz (também interior), sempre muito bem-vinda em tempos de fim de mundo.

 

Mamulengo

Eduardo Aleixo Monteiro (Galateia, 2024)

 

Por fim, dando outro plot-twist nessa lista apocalíptica, trago uma literatura de cordel escrita pelo dramaturgo pernambucano Eduardo Aleixo Monteiro. Atualizando a tradição do cordel, Aleixo nos traz a história de dois  mamulengueiros  e um boneco mamulengo que discutem se devem ou não ir visitar o Museu do Mamulengo, em Olinda, depois dos despautérios cometidos contra a arte e a democracia brasileiras em 8 de janeiro de 2023. O livreto é bem humorado ao tratar de assuntos pertinentes ao Brasil atual, tendo a rima repentista como condutora da história. Contando com uma xilogravura feita especialmente para a obra por J. Miguel, filho do também artista J. Borges, o livro é rico em dialogar com o presente e com a raiz cultural do Brasil, nos lembrando que tudo só se acaba quando a memória termina (e, tenho para mim, se depender da arte, ela não termina nunca).

 

Lígia Souto é atriz, dramaturga e roteirista. Estudou dramaturgia na SP Escola de Teatro (2015-2017) e se formou em atuação na Escola de Atores Wolf Maya (2012-2015). Como dramaturga, escreveu as peças “Udumbara” (2018); “Cinema Jenin” (coautoria, 2018 – peça vencedora do Concurso Anual de Dramaturgia DramaTEns 2018 em Portugal), “Estrangeiro” (2017) e “Sozinhos”, “vc sabe que eu te amo” (2015). Em 2019 foi cofundadora da editora Efêmera, editora independente voltada à publicação de dramaturgias brasileiras contemporâneas, onde é editora, revisora e produtora de teatro em livro. Trabalha no audiovisual como roteirista e foi continuísta de diversos filmes e séries. Em 2023 foi uma das ganhadoras do Prêmio Carolina Maria de Jesus, do Ministério da Cultura, com seu primeiro livro de poesia, “finde mundo” (Patuá, 2024).

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