Tadeu Kaçula
A convite da seção 'Favoritos', o sociólogo Tadeu Kaçula indica cinco livros que exploram como transformar as estruturas do Estado e construir as bases de um pacto social inclusivo e igualitário
Em minha tese de doutorado, desenvolvi a ideia de “desracialização do contrato social” para explicar como a estrutura do Estado pode ser transformada ao valorizar as heranças culturais e cosmológicas das diásporas africanas. Minha proposta vai além de simplesmente incluir pessoas negras nas estruturas de poder. Defendo a valorização de espaços culturais, políticos e econômicos afro-brasileiros que resistem e prosperam fora dos modelos ocidentais tradicionais de organização social.
Compreender esse conceito exige uma abordagem interdisciplinar capaz de questionar os pressupostos eurocêntricos e raciais que sustentam as estruturas sociais atuais. Por isso, nesta seleção escolhi contribuições fundamentais para criticar os pilares coloniais e raciais que moldam o mundo moderno.
Os três primeiros livros mostram como o contrato social foi moldado pelo racismo, enquanto os dois últimos oferecem caminhos para sua desracialização. Juntos, esses autores são essenciais para a formulação de um novo pacto social que supere as heranças do racismo.
Charles W. Mills (trad. Teófilo Reis e Breno Santos, Zahar, 2023)
“O contrato racial” é uma contribuição seminal para os estudos sobre raça e filosofia política e foi um divisor de água em meus estudos. O livro mostra como o racismo não é um desvio ou uma aberração das democracias liberais, mas sim um elemento constitutivo de sua formação. O filósofo jamaicano Charles W. Mills propõe uma reinterpretação do conceito de “contrato social”, desafiando as premissas universalistas de filósofos ocidentais. Em vez de um contrato social que pressupõe a igualdade entre todos os seres humanos como iguais, como teorizam Thomas Hobbes, John Locke e Jacques Rousseau, Mills expõe a existência de um “contrato racial” implícito, que serve para legitimar a exclusão e a opressão.
O “contrato racial” não é apenas uma metáfora, mas uma estrutura real que funciona em escala global. Mills demonstra como o racismo foi institucionalizado para assegurar privilégios a um grupo racial historicamente identificado como “branco” em detrimento de outros, legitimando práticas como a exploração colonial, a escravidão e as desigualdades que persistem até hoje. Sua obra também expõe como a filosofia ocidental frequentemente ignorou ou naturalizou essas hierarquias, desempenhando um papel na perpetuação dessas estruturas de opressão.
Aníbal Quijano (Del Signo, 2019)
A elaboração do peruano Aníbal Quijano sobre a “colonialidade do poder” é um marco fundamental no pensamento crítico latino-americano e nos estudos decoloniais. No livro, disponível apenas em espanhol, Quijano argumenta que as dinâmicas de dominação criadas durante a colonização continuam a operar nas sociedades contemporâneas, mantendo a classificação racial como um elemento central na organização do poder e na distribuição global de privilégios e desigualdades.
O autor também introduz a noção de “colonialidade do saber”, destacando como o pensamento eurocêntrico foi universalizado, marginalizando epistemologias e cosmovisões não europeias. Essa imposição sustenta uma estrutura global que controla o conhecimento e as subjetividades, desvalorizando os saberes indígenas, afrodescendentes e outras tradições de pensamento.
As ideias de Quijano oferecem ferramentas teóricas indispensáveis para movimentos sociais, acadêmicos e ativistas engajados na luta contra as desigualdades globais e na descolonização do pensamento. Mais do que denunciar os legados do colonialismo, ele aponta caminhos para imaginar um futuro além da colonialidade, promovendo relações baseadas na igualdade, na valorização da diversidade e na justiça social.
Aimé Césaire (trad. Claudio Willer, Veneta, 2020)
Aimé Césaire expõe as contradições e hipocrisias do discurso colonial, desnudando os impactos devastadores que a colonização teve sobre as culturas, as identidades e as dignidades das populações dominadas. Nesse manifesto poderoso, Césaire mostra como o colonialismo também corrompeu moralmente as sociedades colonizadoras, desumanizando-as.
O autor desmonta a ideia do colonialismo como uma “missão civilizatória”, evidenciando que ele não trouxe progresso, mas sim exploração, violência e racismo. E estabelece uma conexão contundente entre o colonialismo e o fascismo europeu, argumentando que as práticas opressivas nas colônias foram um ensaio para as violências que a Europa posteriormente infligiu a si mesma.
A obra é uma base fundamental do pensamento da negritude, movimento literário e político cofundado por Césaire, que celebra as culturas africanas e afrodescendentes como forma de resistir à hegemonia europeia. “Discurso sobre o colonialismo” tornou-se uma inspiração para movimentos de libertação em todo o mundo e uma referência para líderes e intelectuais do século 20, como Frantz Fanon, que expandiram suas ideias.
Lélia Gonzalez (Azougue, 2023)
Lélia Gonzalez é uma das mais importantes intelectuais negras do Brasil. Sua obra é crucial para o desenvolvimento de um pensamento crítico sobre as interseções entre raça, gênero e classe no Brasil, além de introduzir categorias teóricas que desafiam as narrativas eurocêntricas dominantes.
Entre seus conceitos mais influentes está o de “amefricanidade”, que conecta os povos afrodescendentes das Américas à diáspora africana. Esse conceito ressalta o papel central da cultura negra na formação das sociedades americanas, valorizando as contribuições africanas em aspectos como língua, religião, música, modos de resistência e formas de ser. Para Gonzalez, a “amefricanidade” não apenas celebra essa diversidade, mas também questiona as estruturas de poder que historicamente invisibilizaram tais contribuições.
Por meio dessa perspectiva, Gonzalez desmascarou o mito da democracia racial no Brasil, evidenciando como o racismo estrutural opera de maneira dissimulada e profundamente excludente. Suas reflexões também apontam para a necessidade de uma abordagem decolonial, dando destaque às experiências e epistemologias do Sul Global, especialmente às das mulheres negras, frequentemente marginalizadas até mesmo dentro de movimentos feministas e antirracistas.
Clóvis Moura (Anita Garibaldi, 2021)
Por meio de uma análise materialista e dialética da história brasileira, Clóvis Moura examina os conflitos de classe e as contradições estruturais que moldaram o país. Ele desconstrói a romantização da escravidão e do período pós-abolição, revelando como as elites consolidaram mecanismos de exclusão social e racial que perpetuam desigualdades até os dias atuais.
Moura destaca as resistências negras como elementos fundamentais para entender as dinâmicas sociais e políticas no Brasil, rejeitando a ideia de passividade dos escravizados. O autor resgata o protagonismo dos quilombos, revoltas e estratégias de sobrevivência e organização política, mostrando como essas formas de luta não apenas abalaram o sistema escravista, mas também deixaram um legado de resistência que ecoa nas lutas sociais atuais.
Ao reinterpretar a história oficial sob a ótica da luta e do enfrentamento, Moura amplia a compreensão crítica da formação social brasileira. Sua obra transcende o âmbito acadêmico, sendo uma ferramenta poderosa para fortalecer as lutas antirracistas e compreender as desigualdades estruturais que persistem no país.
Tadeu Kaçula é mestre e doutor em mudança social e participação política pela Universidade de São Paulo, onde integra o Grupo de Estudos Latino-Americano sobre Cultura e Comunicação. Atualmente, é pós-doutorando na Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, em Bauru. Também integra o Grupo de Estudos Griô de Culturas Populares e Educação da Universidade Federal da Bahia e atua como coordenador-executivo da Universidade Livre de Sociologia e Comunicação Afro-Brasileira, além de ser coordenador político da Nova Frente Negra Brasileira.
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