histórias do cinema
e da televisão
isso não podia vir
senão de alguém
da nouvelle vague
a nouvelle vague
talvez a única geração
que se encontra
no meio tanto do século
quanto talvez do cinema
o cinema
é coisa do século 20
é coisa
do século 19
mas que foi resolvida
no século 20
que sorte vocês tiveram
de terem chegado/br> cedo o suficiente
De ir embora
para herdar uma história
que já era rica
e complicada
e agitada
e de terem esperado tempo o bastante
visto filmes o bastante
formado sua própria ideia
do que era importante
ou desimportante
nessa história
e de terem uma linha para seguir
afinal de contas a gente sabe que Griffith
vem antes de Rossellini
Renoir, antes de Visconti
e o momento exato
do aparecimento de vocês
numa história
que já tem como ser contada
que ainda tem como ser contada
que foi contada, como estória
por assim dizer
mas jamais como história
mas ainda tinha
saberes o suficiente
e paixão o suficiente
para poder se afirmar
saber que a gente vem
antes de algo
e depois de algo
o fato de estar assim
no meio do século
constituir por si só sua história
saber
quem vem depois
uma oportunidade única para se fazer
a história
não porque eram filmes demais
eles são poucos
e tem cada vez menos
eles são poucos
e tem cada vez menos
o historiador das letras fala
tem Homero, Cervantes, Joyce
tendo falado desses três
eles incluem Faulkner ou Flaubert
eles foram poucos
para mim dez filmes
nas mãos são dez dedos
para mim são dez filmes
o cinema
a ideia
que eu consigo expressar
agora
é que era a única forma
de fazer
de contar
de me dar conta
eu mesmo
de que eu tenho uma história
uma história minha
mas que se não fosse
pelo cinema
eu não saberia que tenho
uma história
era o único jeito
eu devia isso a ele
sempre isso de se sentir culpado
ou maldito
como disse Marguerite
ela dizia
que eu era maldito
a única forma
se é que dá
para contar
uma história
ou fazer a história
e essa jamais foi feita
pularam essa história
a história da arte
fizeram um pouco
os franceses
não os outros
Diderot, Baudelaire
Malraux
eu ponho logo após
Truffaut
uma linha direta
Baudelaire falando de Poe
é que nem Malraux
falando de Faulkner
é que nem Truffaut
falando de Edgar Ulmer
ou de Hawks
foram só os franceses
que fizeram
essa história
eles desconfiaram
que estavam dentro de uma história
quiseram saber
qual era a história
a deles dentro da maior
a maior dentro da deles
por exemplo
para mim
a história maior
é a do cinema
ela é maior
que as outras
porque ela se projeta
porque
ela se projeta
numa prisão de Moscou
Jean-Victor Poncelet
talentoso engenheiro
do exército de Napoleão
recompôs
sem o auxílio de suas anotações
os conhecimentos geométricos
que tinha aprendido
nos cursos de Monge
e de Carnot
o tratado
das propriedades projetivas
das figuras
publicado em 1822
estabelece como método geral
o princípio da projeção
utilizado por Desargues
para estender as propriedades do círculo
às cônicas
e posto em prática por Pascal
na sua demonstração
do hexagrama místico
então foi preciso
um prisioneiro francês
andando para lá e para cá
diante de uma parede russa
para que a aplicação
mecânica
da ideia
e da vontade de projetar figuras
numa tela
praticamente alçasse
voo
com a invenção
da projeção
cinematográfica
p’ra a criança
que adora gravuras
e mapas
o universo é tal qual
seu apetite imenso
ah, como o mundo
é grande
à luz das luminárias
aos olhos da lembrança
o mundo é tão pequeno
Jean-Luc Godard nasceu em Paris, em 1930, e cresceu na Suíça. Colaborou como crítico na revista Cahiers du Cinéma, integrou a nouvelle vague, movimento que revolucionou a linguagem cinematográfica em meados do século 20, e em seguida o grupo Dziga Vertov, coletivo cinematográfico de orientação maoísta. Nos últimos anos, algumas de suas pesquisas resultaram em livros e filmes homônimos, como estas “História(s) do cinema”.
História(s) do cinema
Jean-Luc Godard
Trad. Zéfere
Fósforo e Luna Parque
192 páginas
Lançamento em 2 de maio