“Mais que dobraram o aluguel.” Não sei como olhar pra ela depois de dizer isso, parece que estou diante de mim mesma. Tipo, torna tudo muito real.
“Putz.”
“Pois é.” Olho pro céu. “É por isso que Marcus precisa arranjar um trampo.”
Alê se estica pra pegar minha mão e toca meu pulso de leve. Fico pensando se ela consegue sentir minha pulsação, se é isso que ela está procurando. “O que você vai fazer?”
“Sei lá. Mas se a gente não resolver logo, vamos acabar na rua.”
Começo a mexer as pernas fora do ritmo, pra frente e pra trás, com os pés no ar. Alê tira do bolso um pedaço de seda e um vidrinho com buchas de maconha. Curto ver ela bolar, acho relaxante, e o cheiro, doce e singelo, parece canela misturada com sequoia. Nunca aprendi a bolar direito, nunca sei quando o beck está firme o bastante pra não desmanchar, mas frouxo o suficiente pra fumar. Então prefiro ficar olhando Alê fazer, me lembra o jeito que mamãe costumava dobrar as roupas, tão dedicada em deixar o vinco certinho.
Ela para e olha pra mim. “Não esquenta, a gente vai dar um jeito.”
Abre o vidrinho, espalha a maconha na seda e pega um pouco de lavanda. Ela chama essa mistura de “pantufinhas” e nem precisa explicar o porquê: quando eu puxo e solto, me imagino descalça andando num campo de lavandas, um lugar calmo e sagrado. Ela termina, dá uma olhada, abre um sorrisinho e quase chega a fazer beicinho, toda orgulhosa.
Pega o isqueiro e eu cubro o beck com as mãos, pro vento não atrapalhar. Alê aperta o isqueiro até acender, a base da chama é do mesmo tom de azul da nossa piscina antes daquela merda toda. Leva a chama até a ponta do beck e, enfim, acende.
Passamos de uma pra outra até o beck ficar pequeno demais para caber entre nossos lábios sem desmanchar. Nunca fui muito fã de maconha, mas era o que me fazia sentir mais perto de Alê, então eu fumava um com ela e tentava ficar chapada até não poder mais.
Alê começa a balançar, eu a acompanho, levando o balanço rumo ao céu. Lá em cima, sinto que estou entrando numa daquelas nuvens. Olho pra baixo, vejo uma tenda atrás das quadras de basquete e um velho mijando numa árvore, nem um pouco preocupado em olhar pros lados pra ver se tem alguém xeretando. Meu sonho é ser tão irresponsável, tão despreocupada a ponto de mijar no parque San Antonio ao meio‑dia de uma quinta sem nem olhar pros lados.
“Sabe o que eu tava pensando?”, Alê me pergunta.
Estamos em lados opostos do céu, balançando uma em direção à outra e, pela primeira vez no dia, consigo não pensar no papel colado na nossa porta, na cara do Marcus dormindo, no tamanho da boca de Dee aberta.
“No que você tava pensando?”
“Ninguém conserta nunca essas merdas de ruas.”
Assim que ela fala isso, eu começo a rir, pensando que ela ia fazer alguma revelação filosófica sobre o mundo.
“Você nem tem carro, por que tá ligando pra isso?”, falo gritando por cima da ventania e entre um balanço e outro.
Mesmo dizendo isso, olhando para as ruas que dão até o parque como se fossem pernas de uma aranha, sei o que Alê quer dizer. Pedaços da pista carcomidos junto com buracos que foram ignorados, onde pneus de Volkswagens caem e, por um segundo, não sei se vão conseguir sair, mas daí conseguem, e o único sofrimento que sobra é um leve barulho do para‑choque. Nenhum buraco de Oakland parece deixar alguém preso por muito tempo, uma miragem de fragilidade. Ou talvez isso seja só com os carros.
“Nunca parou pra pensar que as ruas daqui estão sem recapeamento faz décadas?” Alê, uma skatista nata, gasta mais tempo entrando e saindo de buracos do que eu.
“E daí? As pistas não estão fazendo mal pra ninguém.”
“Não importa. Só tô dizendo isso porque não é assim em lugar nenhum, saca? Por que a Broadway não é toda destruída? Ou San Francisco? Porque eles colocam a grana na cidade, assim como colocam dinheiro no centro. Você não vê problema nisso?” Alê endireita o corpo e diminuímos o ritmo, descendo do nosso céu.
“Não. Não vejo problema nisso, assim como não vejo problema no tio Ty comprar um Maserati e uma mansão lá em Los Angeles e nos deixar aqui, sozinhos. Assim como não vejo problema no Marcus fazer rimas num estúdio enquanto eu preciso pagar nosso aluguel. Não é da minha conta ficar me preocupando com a sobrevivência de outra pessoa. Se a cidade quiser pagar pra deixar a pista lisa pros ricos passarem, vai em frente, beleza. Deus é testemunha que eu não vou pensar em mais ninguém se um dia me oferecerem uma grana preta.”
Mexo os dedos do pé nas minhas pantufinhas quando o balanço para, e sinto que Alê me encara:
“Não acredito em nada disso”, diz.
“Em quê?”
Ela balança a cabeça, chapadaça, mole. “Ai, você é muito coração pra ser uma vendida, Ki, não é cruel suficiente pra isso. Eu sei que você não deixaria Marcus ou Trevor ou eu só por dinheiro.”
Queria que ela estivesse errada, mas se estivesse eu passaria o dia inteiro nesse balanço, fumando até não pensar em nada além das tatuagens de Alê e no quanto as ruas estão se fragmentando e continuarão a desintegrar até que estejamos andando no meio de destroços.
Em vez disso, penso em Marcus, em como a gente costumava ficar nas esquinas tentando vender pinturas que eu fazia em telas de papelão. Mal conseguíamos dinheiro pra comprar mais tinta, mas Marcus e eu estávamos juntos naquela, escolhendo um ao outro. Tá na hora de contar pra ele que não consigo dar conta do trabalho pesado sem ajuda. Contar pro Marcus que é hora de largar o microfone e encarar as ruas como eu tenho encarado há seis meses.
“Preciso falar com o Marcus”, digo, pulo do balanço e vejo o mundo, caótico, girando, saindo e entrando em foco. Deixo Alê lá, balançando, com uma fumaça saindo de seus lábios como se estivesse puxando um faz tempo, e ela não precisa nem olhar pra mim de novo, pois o meu casaco agora tem o mesmo cheiro das pantufinhas; e hoje, em pleno dia de velório, essa é a única coisa que eu preciso.
Criaturas noturnas
Leila Mottley
Trad. Bianca Gonçalves
Companhia das Letras
328 páginas