Trechos

‘A grande porção de lixo do Pacífico’: o absurdo do progresso

Vinícius Portella


06 de dezembro de 2024

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O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘A grande porção de lixo do Pacífico e outros contos’, de Vinícius Portella. O livro traz histórias que especulam sobre o futuro, imaginando nossas existências em realidades marcadas pelo avanço de temas como mudanças climáticas e IA

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Depois de me recompor e escovar os dentes, voltei pra parte lateral do convés onde estavam Eric, Elaine e Boris. 

— Tudo bem? 

— Sim, só fiquei enjoada, mas já passou. Acho que foi mais o lixo que o movimento. 

Boris estava apanhando pedaços com uma espécie de cesto de haste comprida e os depositando numa grande rede aberta no convés. Usando luvas grandes e amarelas, Elaine revirava os restos até achar um pedacinho que parecesse consistente o suficiente pra resistir algum tempo, largo o bastante pra se acoplar ao sinalizador, mas não largo demais que se desprendesse dos trajetos da maior parte da massa. Que era o que importava, no final, pro resultado ser estatisticamente relevante. 

De longe, não dava muito pra distinguir nada. Tudo estava disforme e desgarrado demais. Mas, revirando os pedaços com as mãos, dava pra reconhecer pedaços de embalagem, sacos rasgados, partes de brinquedos, um pequeno adesivo redondo declarando que uma fruta era orgânica (ainda legível por pouco). Só assim pra lembrar que cada elemento ali teve seu uso, seu breve momento de utilidade, antes de se juntar aos seus irmãos no vórtice, onde provavelmente ficariam por centenas e centenas de anos. 

Depois de uma tarde inteira de trabalho, Eric e eu sentimos que tínhamos apanhado o básico. Boris e Elaine entraram pra tomar banho quando começou a anoitecer e a visibilidade já não estava tão boa. Ficamos só eu e Eric ali sentados diante daquela nojeira toda. Eu estava feliz com o silêncio, sentia que tinha falado minha cota de inglês do dia. Mas ele decidiu rompê-lo. 

— Não é bem uma ilha, né. Não dá pra dizer que é uma ilha. Aqueles relatos iniciais falavam que era uma ilha. Em algumas fotos que eu tinha visto, chegava a parecer uma ilha mesmo. 

Demorei pra entender o tom com que ele falou isso. Olhei pra ele e depois olhei em volta do barco de novo. E aí que eu entendi direito. 

— É, não é exatamente uma ilha. Mas é porque de longe parece que está mais junto. Por isso chamaram assim. Mas acho que já tem muitas matérias falando que a coisa era mais diluída e espalhada, mesmo. 

— Claro, eu já tinha lido uma coisa assim. Já tinha ouvido falarem que era um sopão. Mas ainda assim achei que teria uns acúmulos mais vistosos, não sei. Achei que seria mais fotogênica. No sentido dramático. 

Ele estava desapontado, era isso mesmo? Queria que fosse uma ilha mesmo, que desse pra andar em cima e tudo? Era como se ele quisesse que fosse ainda pior do que já era. Ele não percebeu meu estranhamento e continuou num tom mais exasperado: 

— Se não rende uma foto boa, não adianta nada. Não vai gerar a atenção que o meu departamento achava que ia gerar. Eu trouxe uma câmera super boa, achei que ia poder fazer umas fotos melhores do que as que já existiam. Achei que a gente ia conseguir fazer umas imagens realmente impactantes. Que grande bosta

Não consegui evitar um risinho sarcástico (que inclusive acabou saindo todo pelo meu nariz, uma espécie fungada sarcástica). Ele olhou pra mim alarmado, como se até então jamais tivesse lhe ocorrido que eu pudesse ser uma fonte possível de zombaria, e a possibilidade o deixasse morrendo de medo. E pareceu querer se explicar. 

— Não, não, você não entendeu. Não pra mim. Eu não tenho nenhuma vontade de ficar famoso, não quis dizer esse tipo de atenção. Eu digo pra causa. A gente precisa convencer as pessoas. Fazer elas entenderem a importância da vida nos oceanos. E eu pensava que uma ilha de plástico que se formou sozinha com nosso lixo fosse algo que fosse ajudar. Sabe? Sei que já teve muitas matérias, mas achei que talvez ninguém tivesse tirado ainda as fotos do jeito mais expressivo. E estou vendo que não é isso, que não tem muito o que fotografar. Eu estava imaginando que a gente sairia daqui com uma imagem daquelas que todo mundo passa a conhecer. Dessas que rodam o mundo mesmo. E que aí o mundo ia parar por um segundo e pensar: “Caramba, tem tanto lixo no mar que virou uma ilha”. Sabe? Tipo, porra… 

Talvez ele fosse bom na sua especialidade, tudo é possível, mas devia ser uma pessoa muito ingênua. Eu mal conseguia acreditar no que estava ouvindo. 

— … 

Não falei nada, mas acho que estava fazendo cara de quem achava graça dele. Porque eu estava, sim, achando graça na decepção quase infantil daquele homem arrogante. E parte de mim queria apontar e rir mesmo. Ha-ha. Igual criança, também, e uma cruel. Ele continuou: 

— É, sei lá. Em retrospecto foi meio idiota, eu sei. Achar que a gente seria os primeiros a saber fotografar a coisa direito. Depois de várias expedições já terem vindo. Claro que, no fundo, nem faria diferença, mesmo se fosse uma ilha. O mundo não vai mudar por causa de uma merda assim. Claro que eu sabia disso. Eu só achei que poderia ter algum impacto, sei lá. Fazer uma pequena diferença. 

Tento evitar, mas acabo dando uma pequena risadinha quase inaudível. 

— Você deve achar que eu sou bobo. 

— Não, não acho. Quer dizer… Até acho um pouquinho, talvez. Mas eu entendo. Super entendo. Eu não estava com essa expectativa específica, mas eu também adoraria fazer parte de algo que impactasse as pessoas. Claro. Queria acreditar nisso também. Mas… 

A real é que eu o achava bem tolo mesmo. Mas não era das piores maneiras disponíveis de ser tolo, então, beleza, era uma forma ingênua. De todas, talvez fosse a qualidade menos lamentável que ele havia demonstrado até ali. Então não tinha tanto por que cair em cima disso. Achei que o assunto morreria aí. Mas ele decidiu cutucar. 

— Mas o quê? 

— Não sei. 

Mas eu sabia, sim. 

— Acho que é porque eu sou do Brasil, mas tenho um pouco de dificuldade de acreditar em qualquer coisa impactando as pessoas desse jeito, mudando radicalmente o comportamento delas. Acho que tem que mirar totalmente nas crianças e nos adolescentes e torcer pra geração mais velha morrer logo. Porque não tem jeito. Não vai mais mudar. A gente mesmo, a nossa geração, eu não sei se é capaz de mudar. Todo mundo quer dirigir seu jipe, quer voar de avião pra todo lado, se tiver grana pra isso. Todo mundo sente que tem direito de fazer todas essas coisas. E quem vai dizer que não tem? Quem decide a hora de parar? Nada disso vai mudar a tempo. Só vai piorar e piorar, e o medo que vai crescer quando piorar mesmo só vai… acelerar a velocidade com que tudo piora. 

Ele não falou nada por um bom tempo. Nós dois ficamos encarando a barra suja do horizonte. E, do nada, ele perguntou: 

— Você disse que talvez pense assim porque é do Brasil. Por que você diz isso? 

Suspirei fundo antes de responder. 

— O Brasil é tiro em criança e esgoto a céu aberto pra todo lado, e a galera finge que está tudo bem. A gente tem uma quantidade de homicídio digna de guerra civil, boa parte disso é o Estado que faz, e ainda assim tem um Carnaval incrível, parece ter várias das pessoas mais felizes do mundo. O pessoal é engraçado até não poder mais. O Brasil mostra que é perfeitamente possível as pessoas aprenderem a conviver e a tomar o inferno por normal. Por bacana, até. Então se a gente está assim tem quinhentos anos, se estava só começando a melhorar e já voltou a piorar com força… Sei lá, acho que o resto do mundo é totalmente capaz de agir do mesmo jeito pelas próximas décadas. Assistir a tudo explodir e derreter e continuar comprando seu salmão defumado no supermercado e subindo o vidro pra não ver a miséria amontoada na rua. Igual os ricos brasileiros são super acostumados a ignorar o que está bem na fuça deles, o mundo vai aprender a assistir a dezenas de milhões de refugiados climáticos morrendo nas fronteiras dos países ricos e temperados como quem assiste a um seriado. Exatamente como assiste a um seriado. É o que a gente faz com tudo, não é? Se piorar sempre é mais fácil que melhorar, em qualquer sistema físico, o que esperar de uma situação em que a sociedade inteira teria que ser radicalmente transformada desde a base até a ponta? Não tem a menor chance de isso acontecer. Não com a velocidade que seria necessária. 

Eu não queria entrar nesse modo. Nos últimos anos, tinha ficado bastante pessimista quanto mais lia sobre o assunto. Mas, fora em conversas com alguns amigos e amigas que compartilhavam plenamente dessa impressão — melhor dizendo, dessa constatação fria, racional e objetiva —, evitava trazer isso à tona. Em parte, acho que eu devia trazer mesmo e foda-se, devia incomodar todo mundo com isso, sim, mas não queria ser a chata, não queria hostilizar todo mundo do meu convívio. Então sinto que não devia ter chegado assim de voadora com meu pessimismo no talo já no primeiro dia (teríamos mais dois ali, juntos). 

E ainda sentia que estava falando tudo meio desajeitado, por estar falando em inglês. O Eric parecia impressionado. Ou, pelo menos, não sabia o que responder. Fazia uma cara de abismado que aos poucos foi parecendo vazia como a de um boneco. Ficamos mais uns minutos observando aquela massa de plástico que boiava na nossa frente sem falar muita coisa. Até que adormeci e, quando acordei, ele tinha se recolhido.

A grande porção de lixo do Pacífico e outros contos

Vinícius Portella
DBA
336 páginas

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