Trechos

‘Cesar Lattes’: a biografia do notável físico brasileiro

Marta Góes e Tato Coutinho


26 de dezembro de 2024

O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Cesar Lattes: Uma vida’, dos jornalistas Marta Góes e Tato Coutinho. O livro narra a história e as descobertas do cientista decisivo no desenvolvimento da energia nuclear durante o século 20

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Um dos assuntos que o atraíam naquele primeiro ano em Bristol eram os nêutrons cósmicos. No outono de 1946, em algum momento desses estudos particulares, solicitou à Ilford um carregamento de emulsões nucleares com bórax (tetraborato de sódio, substância que se comprava em farmácia para tratamentos domésticos). A intenção era usar os átomos de boro com nêutrons liberados por colisões provocadas por um acelerador. O fato de que pudesse – e quisesse – dedicar-se a um projeto que não fazia parte da agenda do laboratório diz muito sobre seu apetite científico e sobre a independência de que desfrutava. 

“Eu estava interessado em ter um detector de nêutrons que pudesse informar a energia, independentemente de se saber a direção em que o nêutron chegava”, recordou Lattes. Ele já tinha feito a experiência com as placas no acelerador Cockcroft-Walton, em Cambridge, descobrindo a energia que o feixe continha e a sua direção. Agora queria experimentar com nêutrons de raios cósmicos, de maior energia. 

Radiação cósmica era um assunto que Lattes e Occhialini conheciam bem. “Tínhamos tradição”, constatava Lattes. Occhialini trabalhara com dois dos maiores especialistas no tema, Blackett e Rossi, e apresentara estudos no Simpósio de Raios Cósmicos, realizado no Rio de Janeiro em 1941. Lattes tinha aprendido com ele, e os físicos formados na USP vinham se notabilizando internacionalmente nesta área de pesquisa. 

Wataghin e seus assistentes Marcello Damy e Paulus Aulus Pompeia haviam mostrado, com os circuitos eletrônicos que construíram, que existiam nos chuveiros cósmicos partículas de altíssima energia que atravessavam superfícies de chumbo sem interagir com a matéria – os chamados chuveiros penetrantes. Os chuveiros cósmicos são o resultado das colisões entre núcleos de raios cósmicos e os núcleos atômicos existentes na atmosfera. 

No outono de 1946, Occhialini ia sair de férias. Montanhista experimentado, pretendia esquiar no Pic du Midi de Bigorre, nos Pireneus franceses, a 2.800 metros de altitude. Raios cósmicos são mais abundantes em locais mais altos, e Lattes pediu-lhe que levasse dois tipos de placas para expor lá em cima: as carregadas de boro, que encomendara, e as comuns, para comparação. Os experimentos comprovaram que, por alguma razão desconhecida, se nessas a imagem desaparecia em aproximadamente uma semana – um efeito conhecido como fading, ou esmaecimento –, nas de bórax ela sobrevivia por mais tempo, e assim resistiria até ser examinada ao microscópio, na volta. 

Em dezembro, Occhialini voltou das férias com as placas que expusera no Pic du Midi. Embora ele próprio não tivesse nenhuma pergunta específica quanto ao que elas poderiam mostrar, estava curioso para verificar o efeito de raios cósmicos sobre elas numa grande altitude. Tratou de revelá-las e, na mesma noite de sua chegada, observou-as ao microscópio. 

Apesar de todos os avanços da física nuclear verificados naquela década, a coesão do núcleo, composto por prótons, de energia positiva, e nêutrons, sem carga, permanecia inexplicada pela física. Entre outras teorias, sugerira-se que havia elétrons no núcleo atômico justamente para compensar a força de repulsão, mas nada explicava inteiramente o fenômeno. 

O alemão Werner Heisenberg postulou que, além da gravidade e da força eletromagnética, haveria uma terceira força, resultante do campo criado pelas partículas leves, que seria responsável por manter colados prótons e nêutrons. Depois de entrar em contato com a teoria de Heisenberg, o então obscuro físico japonês Hideki Yukawa, formado em 1929 na Universidade de Kyoto, formulou uma hipótese ainda mais ousada: a de que a coesão de prótons e nêutrons se devia a uma força desconhecida – que ele reconhece como uma “biding energy”, ou energia de ligação – exercida por uma partícula igualmente desconhecida – a qual chamou de heavy quanta. O artigo de Yukawa sobre o tema foi publicado em 1935 por um periódico japonês. Traduzido e enviado a publicações científicas ocidentais, foi ignorado até 1937, quando o físico Robert Oppenheimer, já uma estrela do mundo científico dos Estados Unidos, publicou uma nota a respeito na prestigiosa Physical Review. A nota produziu alguma repercussão, mas, ainda assim, a teoria de Yukawa circulou pouco, pois o Japão da década de 1930 era um país pobre e isolado, e a Segunda Guerra Mundial agravou seu isolamento. Causava também relutância na parcela do meio científico que tomara conhecimento da teoria o fato de, dez anos depois de formulada, ninguém jamais ter observado a partícula postulada. 

Em 1937, os físicos americanos Carl Anderson e Seth Neddermeyer, que investigavam a radiação cósmica, descobriram uma partícula subatômica que parecia ser a mesma descrita por Yukawa, e que chamaram de mésotron, por ter massa intermediária entre o próton e o elétron. Outros dois cientistas dos Estados Unidos, Jabez Curry Street e Edward C. Stevenson, chegaram simultaneamente à mesma descoberta. Mas novos estudos sugeririam que a partícula que Anderson e Neddermeyer haviam observado não era a mesma descrita por Yukawa, mas sim uma outra, derivada daquela que depois da revelação das placas de Chacaltaya se chamaria méson. 

Powell e Occhialini certamente já conheciam a teoria de Yukawa, mas, no H. H. Wills naqueles dias, ninguém estava muito interessado nela. Embora já tivesse feito experimentos no alto do Jungfraujoch, na Suíça, Powell não havia se dado o trabalho de mobilizar o laboratório para testar a eficiência das emulsões nucleares com adição de boro, expondo-as aos raios cósmicos em montanhas distantes. A única pessoa empenhada em empregar seu tempo livre nessas investigações era Cesar Lattes. Para sorte dele – e do laboratório –, Occhialini não apenas aceitou seu pedido, como se entusiasmou com ele. 

Ao examinar no microscópio as placas que trouxera na mochila, Occhialini surpreendeu-se. Como recordaria Lattes, ele “percebeu que havia uma barbaridade de coisas nelas”. A variedade de ocorrências nas emulsões com bórax e a riqueza de detalhes mostraram que a possibilidade de dedução da energia do nêutron cósmico, que Lattes se propusera a investigar, era apenas uma das análises possíveis a partir dos eventos registrados nas placas. Havia algo mais extraordinário. 

Há diferentes versões para o desenrolar dos acontecimentos no laboratório a partir daí. Segundo Occhialini, num depoimento ao projeto de história oral do Instituto Americano de Física, ele estava ao microscópio, à noite, quando encontrou uma estrela – traços da desintegração de um núcleo. Achou que se tratava de um méson, mas não estava ainda bem certo para anunciar. Na manhã seguinte, posicionou de novo a placa no microscópio e mostrou a Lattes. “Sabe me dizer o que é essa coisa estranha?”. Debruçado sobre a imagem, Lattes foi categórico: “Elementar, é um méson entrando”. Só então Occhialini se sentiu seguro para afirmar a descoberta. “Compreendi que Lattes era ainda melhor do que eu pensava”, relatou. 

Na descrição de Lattes, os acontecimentos sucederam-se de outra maneira: “A quantidade de ocorrências vistas nas emulsões era suficiente para colocar toda a capacidade do laboratório no estudo de raios cósmicos de baixa energia”, relatou. “Depois de alguns dias de observação, uma moça, Marietta Kurz, encontrou um evento incomum: um méson parando e, emergindo da extremidade [de seu traço], outro méson de cerca de seiscentos mícrons de alcance, não inteiramente contido na emulsão.”

Também Cecil Powell, o chefe das pesquisas com emulsões nucleares, descreveu o momento da descoberta. Em sua autobiografia, ele o apresenta como uma epifania: “Ficou imediatamente claro que um mundo inteiramente novo havia se revelado. A trajetória de próton lento tinha grãos tão comprimidos uns contra os outros que parecia uma haste sólida de prata, e o pequeno volume de emulsão parecia, sob o microscópio, estar cheio de desintegrações produzidas por partículas rápidas de raios cósmicos, cuja energia era muito maior que aquela que podia ser gerada artificialmente naqueles tempos. Foi como se, repentinamente, tivéssemos adentrado um pomar cercado por muros, onde árvores houvessem florescido até então protegidas, e todos os tipos de frutas exóticas amadurecido em grande profusão”. 

Embora as palavras poéticas de Powell pareçam se referir a um milagre, e não a um árduo processo, a descoberta ainda demandava mais comprovação para ser aceita. O grupo de Bristol compreendeu que havia muito trabalho pela frente – e que tinham de andar depressa, pois a placa com boro logo iria ser usada por outros pesquisadores, e um deles, em especial, já estava quase cruzando a reta de chegada.

Cesar Lattes – Uma vida: Visões do infinito

Marta Góes e Tato Coutinho
Record
320 páginas

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