— Você caiu no mar?
A voz é delicada, o sotaque permanece indecifrável. O padre novo — Roberts, ele se lembra — está na ponta do banco.
— Me ajoelhei na água. Para limpar o vômito do rosto.
— Está passando mal?
— Não. Eu… — Agora lhe parece uma bobagem, e meio surreal. — Eu achei que tinha visto uma coisa na floresta. Depois de ver o senhor. Ouvido alguma coisa. Não sei. Me pareceu… sobrenatural.
Os detalhes já lhe escapam. Ele entrou na floresta e depois o quê? Ele se recorda de uma escuridão; notas musicais; um som que não conseguiu identificar; tudo em um piscar de olhos. Será que aconteceu de verdade?
— Posso me sentar com você?
— Claro.
O padre se acomoda ao lado dele.
— Você se sentiria melhor se desabafasse?
— Não sou católico.
— Estou aqui para servir a qualquer um que entre por essa porta.
Mas os detalhes já estão se esvaindo. No momento em que aconteceu, o episódio estranho na floresta foi profundamente desestabilizante, mas agora Edwin se vê pensando em uma manhã péssima que teve na escola. Tinha 9 anos, talvez 10, e se deu conta de que não conseguia ler as palavras que estavam diante dos olhos dele, pois as letras se retorciam, se tornavam incoerentes, e manchas nadavam em sua visão. Ele se levantou da carteira e pediu para ver a supervisora, quando desmaiou. Desmaiar era escuridão, mas também som: murmúrios e gorjeios como um coro de passarinhos, um vazio branco logo seguido pela impressão de estar aconchegado em casa, na cama — uma autoilusão da parte do subconsciente, ao que se supõe —, e então ele acordou em um silêncio profundo. O som voltou aos poucos, como se alguém tivesse girado o dial do rádio, o silêncio se dissipando no clamor e no vozerio, as exclamações dos outros meninos e os passos ligeiros da professora se aproximando — “Levante-se, St. Andrew, chega de se fingir de doente”. Será que o acontecido há pouco na floresta tinha sido tão diferente assim? Havia sons, ele raciocina, e escuridão, assim como na primeira vez. Talvez tivesse apenas desmaiado.
— Imaginei ter visto uma coisa — diz Edwin lentamente —, mas, ao falar isso agora, percebo que talvez não tenha visto nada.
— Se você viu — diz Roberts com amabilidade —, não foi o primeiro.
— O que o senhor quer dizer com isso?
— É que eu ouvi histórias — esclarece o padre. — Quer dizer, a gente ouve histórias.
Edwin tem a sensação de que a emenda desajeitada é uma camuflagem, que Roberts está mudando o jeito de falar para soar mais inglês. Mais parecido com Edwin. Existe algo errado com ele, mas Edwin não sabe dizer exatamente o quê.
— Se me permite a pergunta, padre, de onde o senhor é?
— De longe — responde o padre. — Muito longe.
— Bem, isso vale para todos nós, não é? — diz Edwin com uma pontinha de irritação. — A não ser pelos nativos, é claro. Quando nos encontramos na floresta, agora há pouco, o senhor disse que estava substituindo o padre Pike, não foi?
— A irmã dele está doente. Ele partiu ontem à noite.
Edwin assente, mas algo nessa afirmação lhe soa completamente falso.
— Que estranho eu não ter ouvido falar de nenhum barco zarpando ontem à noite.
— Tenho uma confissão a fazer — diz Roberts.
— Sou todo ouvidos.
— Quando vi você na floresta, e falei que estava voltando para a igreja, bom, eu me virei só por um instante, quando estava me afastando… Edwin olha fixamente para ele.
— O que foi que o senhor viu?
— Vi você andando debaixo de um bordo. Você estava olhando para cima, para os galhos da árvore, e então… bem, tive a impressão de que você viu alguma coisa que eu não consegui enxergar. Havia alguma coisa?
— Eu vi… Bom, eu imaginei ter visto…
Mas Roberts o observa com um olhar intenso demais, e no silêncio da igreja de um só ambiente, na beiradinha do mundo ocidental, Edwin está estranhamente assustado. Ainda se sente meio mal — a cabeça lateja de dor —, e seu cansaço é imenso. Não quer mais conversar. Só quer se deitar. A presença de Roberts ali não faz sentido para ele.
— Se o padre Pike foi embora ontem à noite — diz Edwin —, deve ter ido nadando.
— Mas ele foi embora — afirma Roberts. — Posso lhe garantir.
— O senhor entende como este lugar tem fome de notícias, padre, sejam elas quais forem? Moro em uma pensão. Se um barco tivesse partido ontem à noite, eu ficaria sabendo no café da manhã. — O pensamento mais óbvio lhe ocorre em seguida: — Por falar em coisas das quais eu ficaria sabendo, como foi que o senhor veio para cá? Não chegou barco nenhum nos últimos dois dias, então devo supor que o senhor atravessou a floresta?
— Bem — diz Roberts —, não entendo qual é a relevância do meu meio de transporte…
Edwin se levanta, o que obriga Roberts a se levantar também. O padre recua até o corredor e Edwin passa ao lado dele.
— Edwin — chama Roberts, mas Edwin já está na porta.
Outro padre se aproxima, sobe os degraus que levam da estrada à igreja: o padre Pike, voltando de uma visita à fábrica de conservas ou ao acampamento da madeireira, a massa de cabelos grisalhos quase reluzente ao sol.
Edwin olha para trás e vê a igreja vazia, a porta dos fundos ainda aberta. Roberts fugiu.
Mar da tranquilidade
Emily St. John Mandel
Trad. Débora Landsberg
Intrínseca
272 páginas