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‘Flor do asfalto’: entrevistas com Claudia Wonder

Dácio Pinheiro


14 de fevereiro de 2025

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O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Cláudia Wonder: Flor do asfalto’, com depoimentos organizados pelo cineasta Dácio Pinheiro. No livro a artista travesti traça um retrato da cena cultural paulistana e do movimento LGBTI+ no Brasil desde os anos 1960

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Nos anos 70, a Praça Dom José Gaspar era onde os gays se concentravam, era o reduto dos gays da época. A Praça Dom José Gaspar, a avenida São Luiz, a Praça da República e a famosa Galeria Metrópole. Tinha o Bar do Leco e, mais pra frente, tinha o Paribar. Dentro da galeria tinha um outro bar que eu frequentava muito, que se chamava Barroquinho. Era um barzinho bem bacana, estilo colonial. 

O centro era uma zona nobre, antigamente. Mas nessa época era só festa, desfile pra lá e pra cá. A gente chamava o Paribar de júri do Silvio Santos, porque enquanto as outras ficavam sentadas fazendo o júri a gente passava, e elas ficavam xoxando. (Risos) Era bem chique nos anos 70 — estou falando de 1973, 1974, quando eu estava com dezessete, dezoito anos. Era um lugar bem bacana, mesmo. Tinha o Cine Metrópole, que era supergrande e bem frequentado, todo mundo vinha. Os ícones da cena eram a Rogéria e a Valéria, mas nessa época elas estavam pelo mundo fazendo turnê, estavam trabalhando no Carrousel de Paris. Elas eram as travestis mais famosas. Mas, mesmo elas estando longe, ainda se falava muito nelas por aqui.

Foi nessa época que surgiram as boates Medieval e NostroMondo. Eu frequentava muito as duas casas. Tinha os concursos de miss, que aconteciam uma vez por ano na NostroMondo. Participei de vários, onde eu era Miss Bahia. Tinha a Michelleque, que era também um ícone na época! Tinha a Kelly Cunha. Nossa Senhora, que tempinho bom… A gente não ligava para nada, nem sabia o que era glamour. Botava um trapo no corpo e se achava linda e confiante. Era bem legal.

Os shows de travestis nos anos 70 eram maravilhosos, muito glamorosos. A Medieval fazia shows chiquérrimos. Tinha um elenco seleto das trans da época: a Monalisa, a Erika, a Geórgia. E a gente era tudo adolescente… Eu me inspirei nessas maravilhosas. O show delas era muito luxuoso, tinha corpo de baile com bailarinos, era tudo muito chique… E a frequência também: além dos gays que podiam pagar pra entrar na boate, também tinha a alta sociedade que frequentava, as socialites e os artistas. 

Nessa época eu ainda não fazia show. Imagina, eu tinha dezesseis anos. Eu entrava nos lugares com a carteira profissional rasurada. Como eu já me vestia de mulher, aparentava ter mais idade, nem sempre precisava mostrar o documento. 

Rolava muita perseguição na Praça da República, mas na Galeria Metrópole, nem tanto. Porque era onde tinha aglomeração, né? Como tinha os bares, as bichas ficavam mais protegidas, ficavam em grupinhos, era diferente. Mas lá mais pra baixo, que não era tão nobre, a polícia baixava mesmo. Se estava na avenida São Luís, a polícia te carregava. Se sabia que você era gay, então, te levava embora. Não precisava ser travesti, bastava ser gay pra entrar em cana. Só te soltavam às quatro horas da manhã. E, como era na época do regime militar, a gente achava isso normal, “Ai, dancei, pronto…”. Até que começamos a nos revoltar. 

O meio gay era a rua, os bares, e os ícones eram os travestis. Era uma comunidade. Tinha aquelas que saíam nas páginas das revistas Manchete e O Cruzeiro, que apareciam na televisão nos bailes de Carnaval… No programa do Silvio Santos tinha o concurso “O homem mais bonito vestido de mulher”, uma coisa assim. Ele chamava as bichas pelo nome de homem, fazia questão de chamar o “João Carlos”, daí entra aquela mulher maravilhosa! Mas isso era só no Carnaval.

Nessa época não tinha ponto de prostituição pra travestis. Foi em 1976, 1975, que começou a proliferar a prostituição de travestis. Primeiro na avenida Angélica, coisa de dez ou quinze travestis, depois na rua Rego Freitas. Aí depois começaram a vir várias do Brasil inteiro, virou um meio de vida. 

Eu penso que muitos homossexuais que não são transgêneros na realidade se transformam em travesti pra sobreviver. Mas isso é uma realidade aqui no Brasil, porque a gente fala: “É travesti, é transgênero”. Não, meu bem, nem todo mundo é transgênero, nem todo mundo nasceu para aquilo. A maioria dos travestis que estão na rua são simplesmente homossexuais que não tiveram escolha na vida e botaram silicone para sobreviver. Tanto que tem até tráfico de crianças, de pré-adolescentes que vêm lá do Norte para acabar na prostituição. É uma coisa terrível! 

A primeira vez que eu fiz show foi na boate NostroMondo. Eu tinha dezessete anos, e depois disso não parei mais. Acho que a maioria dos travestis aqui em São Paulo na minha época começou lá na boate NostroMondo. Tinha a Condessa Mônica, que era chamada de “mãe”, ela era a mãe das travestis. Ela ensinava os primeiros passos, desde a maquiagem até como se portar, como se vestir. Mas eu não passei por nada disso, já comecei direto fazendo show na boate. Foi a Cacau que me chamou. Ela era uma estilista maravilhosa, que também gostava de fazer o transformismo. Ela fez um show especial na NostroMondo e me convidou pra participar. Era um show todo em francês, só com cantoras francesas, e eu fazia a Regine, que depois veio aqui para o Brasil e foi dona de uma discoteca famosa no Rio de Janeiro, chamada Regine’s.

No dia do show estavam todos os diretores da casa presentes. Eles queriam começar um grande show, com figurino, bailarinos e tal. Depois da apresentação de todas as travestis, eles gostaram de mim e me chamaram para participar do show efetivo da casa. Foi aí que comecei e não parei mais. Na época também existia o concurso de miss, era a celebração das travestis, ainda é hoje.

Cláudia Wonder: Flor do asfalto

Org. Dácio Pinheiro
Ercolano
184 páginas

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