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‘Ausência de destino’: relatos de um campo de extermínio nazista

Imre Kertész


28 de fevereiro de 2025

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O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Ausência de destino’, de Imre Kertész, ganhador do Nobel de Literatura de 2002. Baseado nas experiências do autor, o livro acompanha a história de um adolescente húngaro judeu em Auschwitz

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Posso assegurar: a espera não atrai a felicidade – ao menos foi essa a minha experiência quando por fim chegamos. É possível que estivesse cansado e a ansiedade de chegar me fizesse esquecer da ideia; entretanto, de certo modo, fiquei mais apático. Mas precipitei um pouco os acontecimentos. Lembro-me de que acordei de repente por causa de um estrépito insano de sirenes que pareciam próximas; a luz débil que se filtrava no nosso vagão marcava o amanhecer do quarto dia. A base das costas, que tocava o piso do vagão, doía. O trem ficou parado, como das outras vezes, e como sempre quando havia um ataque aéreo. Nessas horas, as janelas ficavam ocupadas. Ultimamente todos esperavam ver alguma coisa. Passado algum tempo, consegui um lugar: não vi nada. Fora, a madrugada estava fresca e perfumada, sobre os vastos campos pairava uma neblina cinza e, de repente, um facho parecido com o anúncio de um trompete, intenso, concentrado, vermelho, alcançou-nos de algum lugar às nossas costas e eu compreendi: assistia ao nascer do sol. Era belo e, no conjunto, interessante. Nessa hora, em casa, eu estaria dormindo. Vislumbrei um edifício, uma estação no fim do mundo ou o prenúncio de uma estação maior, à frente, um pouco à esquerda. Era acanhada, cinzenta, vazia, com pequenas janelas fechadas e um telhado de inclinação engraçada, como os que eu havia visto na região, na véspera: no amanhecer enevoado, ganhava, a princípio, contornos sólidos, arredondados, passava do cinza ao lilás, e as janelas adquiriam um brilho avermelhado à medida que sobre elas caíam os primeiros raios. Outros também a perceberam; eu mesmo falei dela aos curiosos atrás de mim. Perguntaram se eu não conseguia ver o nome do lugar. Divisei duas palavras na luz incipiente, na parede debaixo do teto, do lado mais estreito do edifício, voltadas para nós: “Auschwitz – Birkenau” – li, em letras alemãs anguladas, sinuosas, ligadas por um traço de união que formava duas ondas. Entretanto, de minha parte, a busca nos conhecimentos de geografia foi inútil, e os demais também não se mostraram mais bem-informados. A seguir, sentei, pois os que estavam atrás de mim queriam o meu lugar e, como era cedo e eu estava com sono, logo voltei a dormir. 

Mais tarde fui acordado por agitação, movimentos. Fora, o sol ardia pleno. O trem voltara a andar. Perguntei onde estávamos aos rapazes: responderam que nos encontrávamos no mesmo lugar, mas acabávamos de partir de novo; devo ter despertado com os sacolejos. Porém, não restava dúvida – acrescentaram – de que adiante havia fábricas e uma espécie de acampamento. Um minuto depois, os da janela disseram, e eu também o havia imaginado pela mudança da luz, que tínhamos passado sob um arco abobadado. Mais um pouco e o trem parou, e eles, excitados, avisaram que viam uma estação, soldados, pessoas. Muitos logo começaram a juntar os pertences, abotoar a roupa; alguns, em especial as mulheres, passaram a se limpar, embelezar-se, pentear-se de improviso. Ouvi pancadas nos vagões vindas de fora, barulho de portas que se abriam, balbúrdia de passageiros que se confundiam à saída do trem, e nessa hora tive de concordar que, sem dúvida, havíamos chegado. Fiquei feliz, era natural, mas com um espírito diferente do que sentira na véspera. Depois, uma ferramenta golpeou a porta do vagão e alguém, ou alguns, fez a porta pesada correr. 

Primeiro ouvi vozes. Era como se falassem alemão ou uma língua muito parecida, todas ao mesmo tempo. Do que pude depreender, pediam que descêssemos. Entretanto, a impressão era de que eles se espremiam entre nós; eu não via nada. Logo correu a notícia de que as malas e bagagens ficariam ali. Mais tarde, naturalmente – explicaram, traduziram e passaram de boca em boca –, todos receberiam seus pertences; porém, antes, seriam desinfetados, enquanto um banho nos esperava: eu também achava que não era sem tempo. Na confusão, eles se aproximaram de mim e eu finalmente vi as pessoas do lugar. Fiquei muito surpreso porque, afinal de contas, encontrava, pela primeira vez na vida – ao menos assim de perto –, prisioneiros de verdade, vestidos com a roupa listrada dos malfeitores, de cabeça raspada e gorros redondos. Era natural que eu recuasse, assustado. Alguns respondiam às perguntas, outros examinavam o vagão e outros ainda, com a velha habilidade dos carregadores, começavam a descarregar as bagagens, isso tudo com uma vivacidade estranha, qual raposas. No peito de todos, além do número costumeiro dos prisioneiros, notei também um triângulo amarelo que – embora não me fosse difícil adivinhar o significado da cor – de certa forma me feriu os olhos; durante a viagem, cheguei até a esquecer essa questão. O rosto deles também não inspirava muita confiança: orelhas salientes, nariz proeminente, olhos fundos, miúdos, espertos. Sob todos os aspectos, lembravam judeus. Pareceram-me suspeitos e estranhos. Quando nos viram, os rapazes, notei que ficaram excitados. Logo se entregaram a uma falação atropelada e descobri, surpreso, que a língua dos judeus não era somente o hebraico, como até então acreditara: “Reds di jiddis, reds di jiddis?” [“Fala iídiche?” (em iídiche)] – decifrei aos poucos a pergunta deles. Os rapazes e eu lhes dissemos: “Nein” [“Não” (alemão)]. Percebi que não ficaram muito satisfeitos. Assim – com base no alemão, compreendi com facilidade –, passaram a se interessar de repente pelas nossas idades. Dissemos: “Vierzehn, fünfzehn” [“Catorze, quinze” (alemão)] – cada um a sua. Passaram a insistir de imediato, com as mãos, a cabeça, o corpo todo: “Zescájn”, sussurravam por todos os lados, “Zescájn” [“Dezesseis” (iídiche)]. Surpreso, perguntei a um deles: “Warum?” [Por quê? (alemão)] “Willst die arbeiten?” [Você quer trabalhar? (iídiche)], perguntou um deles com o olhar vazio sob as órbitas arqueadas, inteiramente pregado no meu. Eu disse: “Natürlich” [Naturalmente (alemão)], pois, se refletisse um pouco, era por isso que tinha vindo. Ao que ele não só grudou as mãos amareladas, esqueléticas, rijas, no meu braço, mas o sacudiu, dizendo: “Zescájn… verstajszt di?… zescájn!…” [Dezesseis… entendeu?… dezesseis! (iídiche aproximativo)]. Via que ele estava irritado, mas, apesar disso, me parecia que a coisa era muito importante, e como na pressa já tinha combinado com os rapazes, com certo otimismo, concordei: eu teria 16 anos. Entre nós não deveria mais haver – a despeito do que nos dissessem, e da verdade – irmãos e, sobretudo – para o meu grande espanto –, gêmeos; entretanto, em especial: “Jeder arbeiten, nist ka mide, nist ka krenk” [“Todo mundo trabalha, sem cansaço, sem doença” (iídiche aproximativo)] – soube por meio deles durante os dois minutos, talvez nem completos, em que no empurra-empurra me desloquei do meu lugar à porta do vagão, onde, por fim, dei um grande salto para a luz do sol, para o ar livre.

Ausência de destino

Imre Kertész
Trad. Paulo Schiller
Carambaia
232 páginas

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