O que é ser indígena no Brasil hoje, segundo 3 jovens e 2 antropólogos
José Orenstein
29 de abril de 2017(atualizado 28/12/2023 às 23h28)Paralisação da demarcação de terras pelo governo e enfraquecimento da Funai preocupam povos em todo o país
Protesto de grupos indígenas no gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília
No dia 25 de abril de 2017, grupos indígenas avançaram sobre o gramado, na Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso, em Brasília. Eles carregavam caixões, arcos e flechas, para protestar contra o assassinato de líderes indígenas em conflitos por terra. Pediam a retomada das demarcações e a demissão de Osmar Serraglio, ministro da Justiça.
Havia cerca de 3.000 pessoas na manifestação, segundo os organizadores . Os indígenas foram reprimidos pela polícia legislativa com bombas de efeito moral e cassetete. O protesto foi dispersado, mas os manifestantes continuaram fazendo atos e debates em Brasília ao longo de toda a semana.
Eles participavam, entre 24 e 28 de abril, do Acampamento Terra Livre , que reuniu, ao lado do Teatro Nacional, representantes de várias etnias. O evento existe desde 2004. Em 2017, teve grande adesão, já que, segundo os organizadores, aconteceu “em meio à maior ofensiva contra os direitos dos povos originários nos últimos 30 anos”.
As manifestações contam com apoio de artistas como Gilberto Gil, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Arnaldo Antunes, Elza Soares, Criolo, Lenine, Zélia Duncan, Zeca Pagodinho, Zeca Baleiro e Nando Reis, que interpretam a canção “Demarcação Já”, lançada em 24 de abril no YouTube .
Em março de 2017, Osmar Serraglio, o ministro da Justiça — pasta responsável pela demarcação no Brasil —, deu uma declaração que acirrou a discussão entre indígenas, ruralistas e o governo. Serraglio disse em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo” que “terra não enche a barriga de ninguém”. A frase desagradou a grupos indígenas e ONGs, que a classificaram como vergonhosa e uma declaração de guerra .
O direito à terra por parte dos indígenas está previsto na Constituição de 1988 e regulamentado por um decreto de 1996 que estipula o rito da demarcação. Esse rito está sendo questionado e discutido em 2017 . E ele envolve, entre outras coisas, o reconhecimento de uma cultura indígena atrelada à terra. Ou seja, exige o reconhecimento de uma identidade.
As culturas das 305 etnias indígenas do Brasil, que perfazem uma população de mais de 800 mil pessoas, são muito diversas e, ao longo do tempo, incorporaram elementos de culturas não indígenas, o que gera questionamentos sobre o que é ser índio.
Pensando nisso, a ONG Instituto SocioAmbiental lançou em março a campanha “Menos Preconceito, Mais Índio”. A organização fez um vídeo e uma provocação: “se você não é mais igual aos seus tataravôs e não tem sua identidade questionada por isso, por que os índios não podem também mudar e ainda assim continuar a ser índios, com todos os seus direitos respeitados?”.
Para discutir a questão da identidade, oNexo falou com três jovens indígenas e dois antropólogos. Aos indígenas, foi feita a pergunta:
“Ser indígena hoje no Brasil é não visualizar um futuro de curto prazo para termos um pouco mais de paz e ter a garantia dos nossos direitos em relação à concretização das terras demarcadas. Ser indígena, hoje, é saber que cada manhã vai ser de luta, persistência e coragem”
“Hoje, ser indígena, para nós jovens acadêmicos, é trazer diversos conhecimentos tradicionais do nosso povo, para que as sociedades não indígenas tenham conhecimento das distintas realidade milenares que os povos que trazem consigo.
A escrita não é a mesma coisa que a fala, então para nós é importante usar audiovisual, celular. Meu pai está lá em Atalaia do Norte, como vou me comunicar com ele? Como vou ter informações, se eu estou no mundo na sociedade não indígena? As pessoas que pensam que o índio tem que viver só no mato querem acabar com nossa cultura.
A realidade se transforma. E o povo não indígena muitas vezes não percebe que também incorporou nosso modo de falar, nossos costumes, nossa forma de alimentação. A sociedade não indígena vivencia nosso jeito de ser todo dia”
“O índio brasileiro hoje tem que ter orgulho de suas raízes e ter consciência do passado. Renovar seus conhecimentos e acima de tudo saber lidar com o mundo atual.
Muitos não índios ainda têm uma visão atrasada em relação ao indígena. Mas eles esquecem que também somos seres humanos, que estamos sempre em mutação e seguindo o ritmo da vida e do universo.
Várias coisas nossas passam também para a sociedade não indígena. A terra não foi descoberta sem indígena”
Os professores de Antropologia da USP Pedro Cesarino e Renato Sztutman responderam a duas questões doNexo sobre os problemas que cercam a definição de uma identidade indígena no Brasil atual. Leia abaixo suas respostas.
Pedro Cesarino O senso comum desconhece a noção de cultura, que é um processo contínuo de transformação. Os povos indígenas sempre incorporaram hábitos e tecnologias seja uns dos outros, seja de sociedades vizinhas como os Incas, com os quais algumas etnias da Amazônia ocidental estabeleciam contato antes da invasão dos europeus.
Toda cultura é por definição aculturada, isto é, resultado de um processo contínuo de apropriação de conhecimentos e práticas alheios. O senso comum pode até se dar conta de que tal processo acontece com a sociedade brasileira, que é mais brasileira quanto mais incorpora hábitos orientais, europeus ou africanos. Mas não quando se trata das sociedades indígenas. A ótica colonialista corrente imagina que índios são espécimes de museus, que devem permanecer sempre congelados para, quem sabe, merecerem os seus direitos. Esquece-se assim de que os índios são pessoas reais, dotadas de tradições dinâmicas que, assim como outras tantas, são sempre traduções.
Renato Sztutman O “senso comum” – que expressa os valores da sociedade dita “moderna” – precisa manter os índios no passado. Sempre foi assim. Os índios são parte da pré-história do Brasil. Esse foi o jeito que o Ocidente encontrou para “amar” os índios.
‘Os índios nos ensinam, entre outras tantas coisas, que é possível coexistir com os não índios sem abrir mão de modos de ser específicos’
Veja-se o tão famoso indianismo na literatura brasileira. Índio “bom” é o índio suficientemente distante – no tempo, mas também no espaço. São índios “de verdade” os Tupinambá da época da Conquista, nos séculos 16 e 17, que chegam a nós pelos relatos de viagem e continuam a povoar nosso imaginário com seus lampejos de antropofagia. Ou então os Zo’é, também falantes de uma língua tupi-guarani, do Cuminapanema, no Pará, que até certo tempo eram categorizados “isolados”, o que provocou o interesse retumbante de um sem número de fotógrafos e videastas ávidos por imagens dos “últimos selvagens”.
Não são índios “de verdade”, sob esta ótica, os Guarani (plenos falantes de outra língua tupi-guarani) espalhados por um vasto território que vai do Mato do Grosso do Sul passando por toda a costa Sul e Sudeste, uma vez que vivem na cercania de grandes cidades, comem comida de brancos, usam roupas, fazem uso de diferentes tipos de tecnologias.
‘Ao se apropriarem de nossos hábitos e tecnologias estão criando algo novo, algo que não podemos muito bem dizer o que é ou o que será’
As culturas se transformam, são inventivas. Mas a maneira como cada uma se transforma depende sempre de um estilo particular. A ideia de que é um destino desejável a ruptura radical ou a adesão a um sistema-mundo homogêneo não é algo abraçado por todas as sociedades.
Os índios nos ensinam, entre outras tantas coisas, que é possível coexistir com os não índios sem abrir mão de modos de ser específicos, que no mais das vezes se chocam com a ética do neoliberalismo. O problema, claro, é ao mesmo tempo conceitual e político. Pois exigir que os índios tenham uma cultura imutável, que eles não possam se apropriar de elementos exógenos é mantê-los à distância, no tempo e no espaço, é como promover um apartheid.
O problema passa a ser quando os índios deixam de constituir um imaginário para se tornarem nossos vizinhos. Os Tupinambá do passado, os “primeiros habitantes do Brasil” que foram banidos de suas terras, podem ter sua cultura admirada. Mas os Tupinambá que, na virada do milênio, reivindicam sua ascendência indígena, fazendo a retomada de suas terras no sul da Bahia ou no Pará, são vistos como impostores, como mestiços que se fingem de índios para apropriar-se de pequenas porções de terra, detidas sabe-se lá como por latifundiários.
E aqueles que os defendem, mobilizando conceitos que escapam à imutabilidade, são vistos como igualmente impostores. O direito de mudar torna-se, assim, o direito de mudar em uma única direção, a direção do sistema-mundo neoliberal, isto é, um jeito de mudar que só conduz ao mesmo.
Mas os índios estão sempre mudando ao seu modo particular. Ao se apropriarem de nossos hábitos e tecnologias estão criando algo novo, algo que não podemos muito bem dizer o que é ou o que será. Isso nos incomoda, pois acreditamos que conhecemos o sentido da história e que exercemos o controle sobre ele.
Pedro Cesarino Essa definição não pode ser feita apenas da perspectiva do Estado. O Estado classifica e divide coletivos com critérios quantitativos e substantivos. Ele imagina que a identidade indígena tem um limite dado por sua noção engessada e equivocada de cultura.
‘Não é bem a cor da pele ou o uso de um cocar que define o processo do parentesco, sempre dinâmico e flexível’
Assim, quantifica-se como indígena aquele que vive segundo uma noção arbitrária de tradição e exclui-se outros que não seguem tais padrões. Ora, os pressupostos indígenas são qualitativos: a identidade se dá de acordo com o parentesco, com um modo de vida que envolve um vínculo com a terra, com a alimentação e a manutenção de relações sociais.
Não é bem a cor da pele ou o uso de um cocar que define o processo do parentesco, sempre dinâmico e flexível. Como quantificar essa dinâmica em um censo? A definição sobre a identidade, então, só poderia ser feita através de um amplo debate, no qual os pressupostos dos índios ocupariam o lugar central.
Renato Sztutman Definir “limites” é pressupor que temos o direito de dizer quem é e quem não é índio no Brasil. Índio é, antes de tudo, quem se reconhece como tal. Mas isso não é simples! Antropólogos como Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro têm reflexões brilhantes sobre esse problema.
‘Nomear-se índio é um ato de resistência. Como o é nomear-se negro, gay, trans’
Não vou aqui acompanhar seus argumentos, mas apenas improvisar a partir deles. Índios são aqueles que se reconhecem como tais, e não aqueles que são reconhecidos por nós. E esse reconhecimento se dá por múltiplos fatores, por exemplo, a relação com um determinado território ou ambiente, o que passa necessariamente por relações de parentesco e vizinhança, por histórias que circulam entre diferentes gerações.
Como diz Viveiros de Castro em uma entrevista de 2006, “índio é quem se garante”. Isto é, aquele que para se reconhecer como tal tem o aporte de uma comunidade. Não se trata de uma questão individual, de foro íntimo. E essa comunidade tem de bancar um estilo de vida que escapa, digamos, à gramática de uma sociedade estatal neoliberal.
Isso posto, há modalidades e modulações do “ser índio”. Aliás, “índio” é uma categoria que fomos nós que impusemos a eles. Se hoje pode-se falar de um “movimento indígena”, de uma “causa indígena” é porque foi construída historicamente uma conexão entre esses diferentes povos, que passaram a reconhecer formas de vida comuns, para além das disparidades e dos conflitos.
Nessa mesma entrevista, Viveiros de Castro diz que “no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Ele dá um passo adiante para mostrar que, no Brasil, existe um “substrato” indígena que por muito tempo foi obrigado a permanecer oculto, por conta de perseguições e preconceitos.
‘Para esses lobistas, é preciso restringir o critério da indianidade, é preciso enfraquecer as garantias angariadas por essas pessoas’
Mais recentemente, povos expropriados de suas terras e referidos como caboclos ou bugres passaram a reivindicar para si uma identidade indígena, de modo a lutar por direitos e reparações. Eles são muitas vezes retratados por ruralistas e por boa parte da mídia como impostores. Mas eles não o são!
O que eles fazem é chamar de “indianidade” uma vida que sempre foi vivida e que, por sua diferença, foi radicalmente ameaçada, tendo de esconder-se. Nomear-se índio é um ato de resistência. Como o é nomear-se negro, gay, trans.
Mas isso não quer dizer que qualquer um possa fazê-lo a qualquer momento, pois é preciso uma garantia e uma ocasião, é preciso uma rede de relações humanas (mas também não humanas, poderíamos dizer), é preciso de histórias e conhecimentos sobre a terra e os seres que nela habitam.
Em vez de identidade, poderíamos falar de um fundo indígena que pode vir à tona das mais diferentes maneiras. Em vez de traçar limites, ato burocrático-estatal, cabe a nós cartografar formas de vida, modos de garantir-se de forma a produzir políticas públicas mais justas.
Essa discussão é extremamente importante, sobretudo num momento político como o que vivemos no Brasil, no qual montou-se um lobby gigante visando barrar demarcações e cassar direitos, sob argumentos espúrios, como aquele que diz que é preciso estipular “limites” para a indianidade.
Índios tidos como “misturados” ou “aculturados” devem ser logo integrados, assimilados, não precisam de direitos. E não raro, quando insistem em reconhecer-se como índios, tornam-se vítimas de genocídios rapidamente silenciados… Para esses lobistas, é preciso restringir o critério da indianidade, é preciso enfraquecer as garantias angariadas por essas pessoas.
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