O que significa o Cais do Valongo se tornar Patrimônio Mundial
André Cabette Fábio
10 de julho de 2017(atualizado 28/12/2023 às 12h59)Segundo a Unesco, local no centro do Rio é 'o traço físico mais importante da chegada de escravos africanos ao continente americano'
Mercado da Rua do Valongo, próximo ao Cais do Valongo, em pintura de Jean-Baptiste Debret, 1816-1831
O Rio de Janeiro foi uma das principais portas de entrada de escravos nas Américas. Cerca de 1 milhão de pessoas chegaram ao país através do Cais do Valongo, que se estendia até o que é hoje a Praça da República. Isso significa que essa porta de entrada pode ter recebido 25% de todos os escravos que aportaram no país, e passaram a integrar uma parcela relevante da população brasileira.
O local foi reconhecido no domingo (9) como Patrimônio Mundial pela Unesco (organização para a Educação, Ciência e Cultura da ONU), que o definiu como “ o traço físico mais importante da chegada de escravos africanos ao continente americano”.
Apresentada em janeiro de 2016 pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e prefeitura do Rio à Unesco, a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial comparava o local ao campo de concentração de Auschwitz. Segundo o documento, a importância do cais “reside no valor simbólico que sintetiza toda a tragédia do tráfico de africanos cativos para as Américas”. Por isso, deveria ser reconhecido como “sítio de memória” da escravidão.
O Cais do Valongo é o 21º ponto brasileiro a integrar a lista do Patrimônio Mundial da Unesco, ao lado da Cidade Histórica de Ouro Preto, em Minas Gerais, ou do Centro Histórico de Olinda, em Pernambuco, por exemplo.
O título de Patrimônio Histórico não traz obrigatoriamente nenhuma mudança prática na forma como se lida com um local. Mas é uma mudança de status que, pelo seu peso simbólico e atenção que suscita, pode levar a medidas práticas de preservação e propagação de determinada narrativa histórica ligada a ele -como a história da escravidão, no caso do Cais do Valongo.
Até 1774 os africanos traficados para o Brasil desembarcavam em uma região que fica entre a Praça 15 e o que é hoje o Aeroporto Santos Dumont, próximo ao centro antigo da cidade, onde eram vendidos.
Naquele ano, o Marquês de Lavradio determinou que o tráfico negreiro fosse transferido para trás do morro do São Bento, na Praia do Valongo. A mudança significava diminuir a visibilidade dos escravos que, quando não morriam após três meses de viagem em navios negreiros, chegavam imundos, exaustos e frequentemente doentes.
Nas palavras do Marquês de Lavradio, no Valongo os escravos passavam a desembarcar “ no subúrbio da cidade separados de toda comunicação”.
A região passou a concentrar não só o desembarque, mas também atividades como alojamento e enterro de negros desterrados. Também chegavam pelo Cais do Valongo produtos africanos como condimentos, panos, adereços e objetos de culto, consumidos pela população majoritariamente negra do Rio.
Por isso, a região do cais se estabeleceu como espaço não só de tráfico de escravos, mas de comércio, moradia, cultos e manifestações negras, como samba e capoeira. No início do século 20, a área era conhecida como Pequena África.
Em 1843, 12 anos após a importação de escravos ser proibida no Brasil, o cais foi embelezado para receber a imperatriz Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, esposa do imperador D. Pedro 2º. O Cais do Valongo passou a ser chamado de Cais da Imperatriz. Em 1911, o local foi aterrado e uma praça foi criada no lugar.
Em 2011, escavações do projeto de requalificação urbana Porto Maravilha encontraram partes do calçamento original do Cais do Valongo.
Vestígios do Cais do Valongo
Em entrevista aoNexo, o antropólogo Milton Guran avalia que o simples fato de o Estado brasileiro ter proposto a candidatura do Cais do Valongo como Patrimônio Mundial representa que ele assume a importância da matriz africana na história brasileira. Guran coordena o grupo de trabalho que apresentou a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade.
Por lidar com a questão da escravidão, o cais se torna um sítio de memória sensível, assim como Hiroshima e o campo de concentração de Auschwitz. Ele “remete a um acontecimento da história da humanidade que ela não quer que se repita”, afirma. Para Guran, o debate sobre as consequências da escravidão e como lidar com elas é reforçado com a declaração.
Entrar na lista do Patrimônio Mundial tem um peso essencialmente simbólico. Segundo a Unesco, a classificação se reverte em um prestígio mundialmente reconhecido que pode aumentar a conscientização sobre a necessidade de cidadãos e governos de preservar um local.
Países também podem receber assistência técnica e financeira do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, que oferece auxílio principalmente para locais ameaçados. De 2010 até julho de 2017, no entanto, apenas 20 projetos do tipo foram implementados no mundo, todos com orçamento relativamente pequeno.
No total, US$ 544 mil foram liberados pela entidade para iniciativas como um levantamento sobre a vida selvagem nas reservas de Air e Teneré, na Nigéria (US$ 29,9 mil). Isso significa que apenas estar assegurado como Patrimônio da Humanidade não implica em receber incentivos financeiros da Unesco, e projetos de vulto no Cais do Valongo precisarão obter outras fontes de financiamento.
Segundo o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, a Unesco recomenda que o governo execute projetos que promovam uma “visão holística” sobre o local e o que ele representa. Há algumas propostas em estudo pela prefeitura do Rio:
Circuito Arqueológico
Desde 2012, o Cais do Valongo integra o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana , que passa por marcos da cultura afrobrasileira na Região Portuária do Rio. Além do cais, o circuito inclui: Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Pedra do Sal, onde ocorrem encontros de samba, Centro Cultural José Bonifácio e Cemitério dos Pretos Novos
Centro de referência
A secretária Municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, afirmou que a prefeitura do Rio planeja instalar um centro de referência no Cais do Valongo ‘para que os próprios brasileiros conheçam um pouco mais sobre sua cultura’
Museu da Escravidão
Nogueira também afirmou que se planeja construir um Museu da Escravidão e da Liberdade (nome provisório) em um prédio ao lado do Cais do Valongo
Levantamento
Arqueólogos do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação da cidade, está realizando um levantamento dos mais de 500 mil itens encontrados nas escavações do Cais do Valongo. Entre eles estão contas, corais, ferramentas, adereços e uma extensa coleção de cachimbos africanos de barro. Os objetos estão guardados na Vila Olímpica da Gamboa
Pingente de madeira em forma de figa encontrado em escavação no Cais do Valongo
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