O fortalecimento evangélico no Brasil e na América Latina
André Cabette Fábio
13 de julho de 2019(atualizado 28/12/2023 às 12h59)Jair Bolsonaro prometeu nomear ministro da crença cristã para o Supremo Tribunal Federal. Especialista argentino analisa como esse movimento se insere no quadro político da região
Marcha para Jesus, em junho de 2019, em São Paulo
Na quarta-feira (10), o mesmo dia em que o plenário da Câmara dos Deputados iniciou a votação da reforma da Previdência, membros da Frente Parlamentar Evangélica realizaram um culto no auditório da Casa .
O presidente Jair Bolsonaro esteve presente no evento, e prometeu indicar um evangélico como ministro do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de mais um aceno favorável ao bloco, instituído em 2003.
Bolsonaro é católico, mas vem buscando se fortalecer junto à bancada evangélica, que o apoiou durante a eleição presidencial de 2018, em contraste com as eleições anteriores, quando os principais grupos evangélicos apoiaram candidatos presidenciais do Partido dos Trabalhadores.
Em junho, Bolsonaro foi o primeiro presidente a participar da Marcha Para Jesus , em São Paulo, o maior evento evangélico do Brasil.
Espera-se que ao menos duas vagas sejam abertas para cadeiras no Supremo até o fim do mandato de Bolsonaro, em 2022. A primeira vaga deverá ser a do ministro Celso de Mello, que atingirá em novembro de 2020 a idade de aposentadoria obrigatória. A vaga seguinte será a de Marco Aurélio de Mello, em julho de 2021.
“Quantos tentam nos deixar de lado dizendo que o Estado é laico? O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar a nossa querida Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], nós somos terrivelmente evangélicos [em janeiro, a ministra se referiu a si mesma como ‘terrivelmente cristã’ ”
Para que um ministro do Supremo assuma, a indicação do presidente da República precisa do aval do Senado, onde a Frente Parlamentar Evangélica conta com oito membros inscritos. Na Câmara dos Deputados, a frente conta com 195 inscritos .
Essa não é a primeira vez que o presidente defende a nomeação de um ministro evangélico. No dia 13 de junho de 2019, o Supremo equiparou homofobia e transfobia ao crime de racismo .
Na data, Bolsonaro participou de um evento em comemoração dos 108 anos da igreja evangélica Assembleia de Deus, em Belém do Pará, onde afirmou: “será que não está na hora de um evangélico no Supremo?”.
Na quinta-feira (11), Bolsonaro mencionou em entrevista à imprensa um possível nome para o cargo : o ministro da Advocacia-Geral da União, André Luiz Mendonça, que é pastor presbiteriano. Segundo informações de bastidores publicadas pelo jornal O Globo, Bolsonaro também fala a lideranças evangélicas sobre a possibilidade de ter um vice evangélico nas próximas eleições presidenciais.
No artigo acadêmico “Quem são? Por que crescem? Em que acreditam? – Pentecostalismo e política na América Latina” , publicado na edição referente a março e abril de 2019 da revista Nueva Sociedad, que aborda política latino-americana, o sociólogo e antropólogo argentino Pablo Semán retrata o crescimento de grupos evangélicos como um fenômeno que não se restringe ao Brasil.
Ele escreve que o rótulo “evangélico” é usado de forma genérica para falar de grupos herdeiros do cisma religioso do século 16, quando a autoridade da Igreja Católica sobre o cristianismo foi questionada na Europa ocidental. Esses grupos são: luteranos, metodistas, calvinistas, batistas, menonitas, presbiterianos e pentecostais, entre outros.
O protestantismo é o marco histórico anterior do conjunto das igrejas evangélicas. Entre outros pontos, ele se distingue do catolicismo por se opor à infalibilidade do papa, e centrar a autoridade religiosa na Bíblia, que pode ser interpretada por qualquer cristão.
“Desse ponto de vista, ser evangélico não é uma religião no sentido de estar inscrito em uma burocracia ou um ritual, mas sim como encontro pessoal com Jesus, o Espírito Santo e Deus Pai. A partir deste encontro, todo crente pode dar testemunho, e por isso todo crente é, ao mesmo tempo, sacerdote”, afirma o sociólogo.
Isso não impede, no entanto, que lideranças surjam no âmbito das igrejas evangélicas. Distinguem-se na América Latina três importantes tendências:
Segundo o pesquisador, o pentecostalismo importado dos Estados Unidos foi assimilado e adaptado por pastores que emergiram na própria América Latina no decorrer do século 20. Em expansão, ele “dialogava com as necessidades e crenças populares de uma maneira original, como nenhuma denominação protestante jamais o fez, e este é o motivo de seu êxito diferenciado”.
Em sua avaliação, o notável crescimento do pentecostalismo na América Latina tem entre seus motivos o fato de que a ideia de atualidade e presença do Espírito Santo por meio de milagres “se conecta muito facilmente com noções próprias da sensibilidade religiosa da maior parte das populações de setores populares da América Latina”.
Na década de 1950, já é possível observar grandes grupos pentecostais na América Latina. A partir da década de 1970, desenvolve-se na região o neopentecostalismo, que se distingue do pentecostalismo, entre outros pontos, pela “teologia da prosperidade” e pela doutrina de guerra espiritual.
A “teologia da prosperidade” sustenta que, “se Deus pode curar e sanar a alma, não há razão para pensar que não poderia outorgar prosperidade” terrena, em contraste com a doutrina católica, que santifica a pobreza.
A doutrina da guerra espiritual amplia a ideia de que o divino está presente no mundo terreno. Ela prevê que também o mal está presente, na forma de demônios reais que, precisam ser expulsos dos corpos na liturgia pentecostal.
Pablo Semán é pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina, e professor do Instituto de Altos Estudos Sociais da Universidade Nacional de San Martín.
ONexo conversou com ele por telefone a respeito do papel atual dos evangélicos no Brasil e no resto da América Latina.
Pablo Semán A politização dos evangélicos é histórica, não há uma natureza, uma essência. Mas, obviamente, tem se consolidado neste momento a versão mais direitista dos evangélicos. Isso tem sido visto de forma radical no Brasil. Bolsonaro tem que se apoiar nos evangélicos porque não é bem sucedido na área econômica, e precisa de apoio na população e legislativo para executar ações. Evangélicos são uma possibilidade de aliança.
A transformação da agenda de gênero faz parte da consolidação em nível constitucional e legal da direitização dos evangélicos, mas também de boa parte da sociedade brasileira em geral. Não somente os evangélicos têm virado à direita, como boa parte da sociedade brasileira.
Isso tem que ser visto em um contexto mundial. Vários países do mundo têm desenvolvido processos de quebra da secularização. Faz parte desse fenômeno o caso do Irã, e o ressurgimento de um islã radical. Isso tem a ver com uma experiência de secularização forçada.
Mais próximo no tempo, tem o caso da Hungria e da Polônia, que têm avançado na reversão da secularização. Isso é fruto de uma maioria católica, que sofre uma reação negativa. E eu incluiria nesse conjunto de fenômenos o que acontece na Turquia e, finalmente, o que acontece nos Estados Unidos, que tem muita relação com o Brasil.
Pablo Semán São duas questões. Uma é a relevância, a outra é seu alinhamento político. A relevância é crescente, mas variável. Boa parte da relevância depende da relevância demográfica dos evangélicos, que é muito alta na América Central e no norte da América do Sul, em países como Colômbia, onde têm porcentagens de 45% a 55% de evangélicos.
São países que deixaram de ser católicos, que têm duas religiões majoritárias, ou em que evangélicos são majoritários. A relevância demográfica condiciona a relevância política.
Depois, em toda América do Sul tem casos em que a população e a relevância política são menores. Um caso de transição é o brasileiro, onde têm relevância demográfica e política.
A relevância política não é automática, assim como seu alinhamento. Sempre se pensou que pentecostais votariam automaticamente com a direita. Isso tem sido mais ou menos verdade em muitos casos, mas não necessariamente em casos importantes.
Pablo Semán No Brasil, os evangélicos passaram gradualmente para a oposição durante o governo do PSDB, de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), em função dos problemas sociais gerados pela sua política, como desemprego e redução de renda. Isso foi mais forte a partir de 1998, com a desvalorização do real.
Até então, a esquerda pensava que não podia ter interlocução com evangélicos. A partir de então, viu que poderia ter. O PT abriu diálogo, até porque tinha candidatos evangélicos em suas fileiras, inclusive ligados a igrejas pentecostais, que são majoritárias na América Latina.
O alinhamento não é necessariamente à direita. A questão dependia não só do crescimento demográfico, mas de que partidos políticos interpelassem e promovessem diálogo com evangélicos.
Uma segunda questão é que nos últimos 10 anos a esquerda tem assumido mais ou menos uma agenda de diversidade sexual e de gênero, que está no centro das colocações políticas.
A América Latina não era necessariamente feminista. Isso tem tido o resultado de acrescentar o confronto e o antagonismo com os evangélicos, que são contra aborto, contra o casamento igualitário. Tudo isso determina um rompimento dos evangélicos com a esquerda, que tem colocado os evangélicos à direita.
Nos anos 2010 o governo Kirchner aprovou a lei do casamento igualitário, e pensou que obteria muito apoio. É verdade, uma parte da classe média aderiu ao governo. Mas ao mesmo tempo a agenda começou a gerar polarização com os cristãos em geral.
O catolicismo tem dificuldade em se contrapor à questão de gênero, porque a oficialidade católica tem muitos casos de abusos sexual contra meninos. Isso deslegitima a ação católica, e os evangélicos fazem da sua voz a voz dos cristãos católicos, o que potencializa sua agenda.
No Brasil, mesmo com a reviravolta em geral do eleitorado a favor do Bolsonaro, os evangélicos não votaram tão longe da média dos brasileiros, não se comportaram como um rebanho.
Não vou negar que nos últimos anos evangélicos têm trabalhado mais com a direita, mas isso ocorre em função de uma construção histórica.
Isso tem a ver com a esquerda ter em geral uma postura antirreligiosa e preconceituosa. Para a esquerda, a teologia da libertação é a válida para os pobres. Mas os pobres têm tendido para os evangélicos. O sujeito histórico da esquerda é evangélico.
A espiritualidade evangélica é interpretada como exagerada e autoritária. E a afro-brasileira, como autêntica, emancipadora, como uma expressão genuína de uma subalternidade, o que sociologicamente não faz sentido. Acho que tem falta de claridade interpretativa para com essas outras formas de espiritualidade, que refletem opiniões próprias.
São julgamentos exprimidos por pessoas que não são religiosas, um fenômeno de ateus hierarquizando religiões.
Pablo Semán A primeira coisa é esse patamar de dados objetivos. Com uma percentagem de população evangélica menor do que a da América Central, os evangélicos conseguiram melhores resultados no Brasil.
Com 33% da população, evangélicos no Brasil têm mais força que em países que têm 50% de evangélicos. A particularidade é determinada por uma série de tendências. A primeira coisa é que o Brasil é um país onde as identidades políticas em geral são fluidas, apesar de mudanças nos últimos 30 anos.
Têm-se formado eleitorados relativamente estáveis, mas mesmo assim sem partidos constantes. Muitos partidos crescem, aparecem têm apogeu e desaparecem.
Uma segunda questão é a particularidade do regime eleitoral brasileiro. A eleição no Brasil é nominal. Vota-se no candidato, não na lista do partido. Isso favorece representantes evangélicos porque o número de eleitores necessários para fazer representante é menor, o que grupos organizados conseguem fazer facilmente.
Isso favorece a preponderância política das grandes igrejas, que conseguem mobilizar seus próprios membros como cristãos evangélicos de outras igrejas menores. Como o Congresso brasileiro é muito fragmentado, o poder Executivo tem mais dificuldade em aprovar leis.
Os evangélicos negociam muito bem com suas bancadas e microbancadas intervenções nas leis, e obtêm facilidades para a mídia evangélica. Isso tem possibilitado construir grandes bancadas com capacidade de articulação política e na mídia, que acabam retroalimentando o crescimento das bases evangélicas em geral.
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