Qual a encruzilhada da Tunísia pós-Primavera Árabe
João Paulo Charleaux
29 de julho de 2019(atualizado 28/12/2023 às 13h00)Morte do primeiro presidente eleito democraticamente acelera calendário eleitoral e põe à prova instituições ainda em formação
Militares carregam o caixão do presidente Beji Caid Essebsi
Morreu na quinta-feira (25) o presidente da Tunísia, Beji Caid Essebsi , um dos arquitetos da transição democrática iniciada no país após a Primavera Árabe , em 2011.
Essebsi tinha 92 anos e governava desde dezembro de 2014, quando venceu a primeira eleição livre da história da Tunísia.
Antes da morte, registrada no hospital militar da capital Tunes, ele havia passado por uma série de internações hospitalares de longa duração nos últimos meses. Essebsi vinha sofrendo de problemas pulmonares e renais associados à idade avançada.
Seu mandato deveria durar cinco anos. O término estava programado para novembro de 2019. A próxima eleição presidencial – apenas a segunda da história do país – ocorreria no mesmo mês.
Agora, o calendário eleitoral mudou, e os eleitores tunisianos irão às urnas um mês mais cedo, no dia 15 de setembro. No mês seguinte, em outubro, serão escolhidos ainda os novos membros do Legislativo nacional (a data da eleição legislativa permanece inalterada em relação ao calendário original).
Essebsi deixou um processo de transição democrática inconcluso. Sua habilidade política em equilibrar interesses de setores divergentes da sociedade já começa a fazer falta no momento em que adversários de longa data movimentam-se para ocupar o vácuo deixado pela morte do presidente.
Ao morrer, ele deixou sobre a mesa, sem sancionar, uma lei que havia sido aprovada antes na Assembleia dos Representantes do Povo (unicameral), que poderia restringir a participação de políticos independentes, desvinculados de partidos, na próxima eleição presidencial.
O assunto, que acabou dividindo a sociedade civil e a classe política local ao longo de meses, talvez pudesse ser dirimido agora pela Suprema Corte da Tunísia , mas ela tampouco chegou a ser formada nesses oito anos desde a Primavera Árabe.
A morte de Essebsi converteu-se, portanto, um teste de resistência para as recém-formadas instituições democráticas tunisianas, como o Legislativo, o Judiciário – incluindo os órgãos eleitorais, que existem e funcionam -, os partidos políticos, as Forças Armadas e a própria sociedade civil, que passou 24 anos sob o comando do general Zine El Abdine Ben Ali, antes de ter o direito de votar livremente para presidente.
A forma como a sociedade tunisiana emergir desse impasse terá implicações importantes para todos os processos de transição iniciados após 2011 no Oriente Médio e na África.
O país teve papel de vanguarda na onda de manifestações que, em 2011, varreu a região, levando à contestação aberta a líderes que estavam há anos no poder. Em muitos países árabes e africanos, manifestantes foram às ruas pedir abertamente, pela primeira vez, por democracia.
A Tunísia foi colônia francesa até 1956. Após esse período, passou a ser governada por líderes nacionalistas e independentistas, mas também centralizadores e personalistas, como Ben Ali (1987-2011) e, antes dele, Habib Bourguiba (1957-1987).
Ambos tiveram governos longevos – o primeiro por 30 anos e o segundo por 24 anos – e marcados por críticas internacionais por violações de direitos humanos e restrições às liberdades individuais.
O processo de liberação foi acompanhado por uma crescente secularização da política, embora a religião islâmica tenha um papel preponderante na sociedade. Quase toda a população se declara sunita.
Se, em 2011, na Tunísia, a Primavera Árabe prosperou, no Egito as manifestações levaram a golpes e contragolpes que, hoje, devolveram o país quase a seu estágio inicial, de desrespeito às liberdades individuais.
Na Síria , levou a uma guerra civil que ainda se arrasta, com o presidente Bashar al-Assad firme no cargo. Na Líbia, levou à queda e à morte de Muammar Gaddafi, que governava há 42. Mas o país terminou despedaçado entre lutas de facções .
Concluir com êxito um ciclo eleitoral nessas condições equivaleria à Tunísia a um atestado de maioridade democrática. Países próximos, como a Argélia e o Sudão , fracassaram há apenas três meses exatamente nesse estado de transição.
A presidência da Tunísia está temporariamente nas mãos do presidente da Assembleia, Mohamed Ennaceur (que é do mesmo partido de Essebsi, o secular Nidaa Tounes). A rigor, sua investidura deveria ter sido decretada pela Suprema Corte. Mas como ela inexiste, os próprios parlamentares tiveram de chegar a um acordo para ungir Ennaceur.
Nabil Karoui, dono da Nessma
O presidente em exercício tem 85 anos e, assim como seu antecessor, tem problemas de saúde. Sua missão será a de realizar novas eleições presidenciais dentro de, no máximo, 90 dias.
Ennaceur garante que não tem pretensão de concorrer, nem de retardar o processo. A desconfiança dos políticos é outra: o que ele fará com a lei eleitoral que havia sido aprovada pela Assembleia, mas que não recebeu sanção do presidente Essebsi ante de ele morrer?
Se sancionada, a lei favorecerá políticos dos partidos tradicionais, em detrimento de candidatos independentes, nas eleições presidenciais de setembro. O principal deles é o empresário Nabil Karoui, controlador do canal privado de televisão Nessma.
Karoui vinha realizando uma campanha eleitoral agressiva em seu próprio nome, por sua emissora de TV. Ele também vinha distribuindo dinheiro e outros prêmios a moradores das zonas mais pobres do país.
A lei, tal como aprovada na Assembleia, teria efeito retroativo para os candidatos que iniciaram campanha antecipadamente. Agora, alguns setores da sociedade, cansados dos políticos atuais – nonagenários, como era Essebsi e octagenários, como é Ennaceur – veem em figuras como o empresário Karoui uma esperança de renovação.
Para esses setores, a sanção de uma lei vista como casuística, que havia sido deixada sobre a mesa do presidente, sem assinatura, pode ser o início de um retrocesso democrático que a Tunísia esperava ter superado depois da Primavera Árabe de 2011.
João Paulo Charleaux é repórter especial doNexo e escreve de Paris
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