Expresso

Como o regime militar reagiu à crise de meningite nos anos 1970

Isabela Cruz

26 de abril de 2020(atualizado 28/12/2023 às 12h59)

Caso é considerado emblemático dos entraves que uma ditadura impõe ao enfrentamento de crises de saúde pública 

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FOTO: REPRODUÇÃO/CANAL INSTITUTO BUTANTAN NO YOUTUBE

Entrada do hospital com diversas pessoas

Hospital Emílio Ribas na década de 1970

Uma onda mundial de surtos epidêmicos de meningite atingiu a cidade de São Paulo em 1971. A doença, que pode ser causada por vírus, bactérias, parasitas ou fungos, consiste na inflamação das meninges , (membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal) e pode ser letal ou deixar graves sequelas neurológicas, como surdez, alterações sensoriais e necrose de membros.

No entanto, apesar do aumento exponencial dos casos de meningite, o governo do general Emílio Garrastazzu Médici não admitia publicamente a epidemia, que foi se espalhando pelo Brasil em curva ascendente até 1974.

Para analistas, a gestão Médici negava a crise sanitária porque temia que o reconhecimento de uma epidemia desestabilizasse a ordem política ou comprometesse a ideia de sucesso nacional que o grande crescimento econômico da época passava à população. Também não interessava à imagem do governo admitir que o país não tinha vacinas suficientes para a imunização em massa.

Conhecido como “anos de chumbo”, o período de Médici à frente do governo federal foi o auge da repressão do regime militar. As medidas de censura à imprensa, rotineiras no período, recaíram também sobre as questões de saúde pública.

O tamanho do problema

Em 1973, o hospital Emílio Ribas, único da capital paulista que atendia aos casos de meningite, estava superlotado: com capacidade para receber 400 pacientes, atendia 1200 infectados, em leitos improvisados.

13%

Foi a média da taxa de letalidade da meningite meningocócica (bacteriana) na cidade de São Paulo entre 1970 e 1972, segundo o estudo “A Doença Meningocócica em São Paulo no Século XX”, publicado em coleção literária da Faculdade de Medicina da USP

2.500

É o número de mortos por meningite na cidade de São Paulo apenas no ano de 1974 , conforme relatou o jornal O Globo

A censura da ditadura

Sob o pretexto de não causar pânico à população, o governo Médici desde o início do problema se recusou a fornecer dados sobre a epidemia. Conforme os casos foram se multiplicando e chegando ao conhecimento dos veículos de comunicação, o governo endureceu as medidas de sigilo e, valendo-se da Lei de Segurança Nacional, passou a censurar previamente as matérias que tratassem da questão. A censura se manteve no governo sucessor, do general Ernesto Geisel.

A jornalista Eliane Cantanhêde relata que em 1974 sua entrevista com o ministro da Saúde de Geisel, Paulo de Almeida Machado, foi censurada antes mesmo de o texto para a revista Veja ser finalizado.

O jornalista Clóvis Rossi também conta que naquele mesmo ano escreveu uma reportagem sobre a meningite em São Paulo que foi proibida pelo governo federal. No lugar do material, o jornal Folha de S.Paulo publicou um poema, como era de praxe durante a ditadura. Diversos outros jornais foram proibidos de falar sobre meningite.

“[…] fica proibida divulgação através meios de comunicação social falado, escrito, televisado, entrevistas concedidas pelo Sr. Ministro da Saúde sobre meningite, qualquer divulgação de dados e gráficos sobre frequência de meningite, noticiário sobre quantidade e datas de chegadas vacinas importadas, bem como referências necessidades previsão. Fica igualmente proibido divulgação matérias sensacionalistas ou exploração tendenciosa através da imprensa, qualquer assunto relativo a meningite”

Departamento de Polícia Federal

nota recebida pelo chefe de redação do Jornal do Brasil, jornalista José Silveira, em 26 de julho de 1974

Profissionais da saúde também ficaram proibidos de conceder entrevistas e só davam declarações se tivessem a garantia do anonimato. À imprensa, tinham de fingir que a situação era normal, apesar de estarem em um grande esforço para atender pacientes, testar diferentes protocolos de profilaxia e pesquisar novas vacinas.

“Para nós, médicos de instituições públicas, já existia a lei da mordaça . Embora tecnicamente tivéssemos razão, não podíamos contradizer as autoridades. A palavra oficial era delas”

José Cássio de Moraes

médico integrante de grupo técnico de epidemiologistas, infectologistas e sanitaristas da Santa Casa de São Paulo e da USP, durante o período da epidemia meningocócica dos anos 1970, em entrevista ao Viomundo

Estava longe de ser a primeira vez que a gestão Médici impedia o trabalho de instituições sanitárias. Em 1970, por exemplo, o governo aposentou compulsoriamente dez importantes cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, que depois se tornou a Fundação Oswaldo Cruz. Os profissionais, que propunham mudanças ao instituto, foram acusados de serem “subversivos” e ficaram proibidos de trabalhar em qualquer outra instituição pública nacional. A medida só foi revogada depois do fim do regime militar.

Os impactos do sigilo

Aceleração da disseminação

A decisão de ignorar o assunto publicamente atrasou a adoção de medidas administrativas necessárias ao combate à doença, como a organização das estruturas hospitalares, o treinamento de profissionais da saúde e a compra de vacinas. Os alertas sobre riscos e medidas de prevenção também demoraram anos a chegarem com clareza à população. Com a demora na resposta à epidemia, o crescimento exponencial dos casos foi se tornando cada vez mais acelerado.

Mortes e sequelas evitáveis

Sem saber dos sintomas típicos ou da gravidade da doença, muitos não procuraram tratamento a tempo de evitar sequelas ou mesmo a morte. Segundo o infectologista Eitan Berezin, uma meningite bacteriana, na sua forma clássica, pode matar em 24 a 48 horas a partir dos primeiros sintomas. Se a bactéria atingir a circulação, o prazo pode ser de 6 a 12 horas. ” Diagnóstico precoce e início imediato do tratamento são fundamentais para controlar a evolução da doença”, afirma o médico Drauzio Varella.

Perda de confiança

A falta de transparência e clareza quanto aos dados sanitários acabou por gerar um sentimento de desconfiança da população em relação às autoridades da Saúde. “As pessoas não entendiam como as autoridades governamentais passaram anos dizendo que não havia epidemia e, de repente, ela acontecia com tamanha intensidade. As pessoas viviam dizendo ‘ eu não acredito em mais nada’”, relatou o infectologista José Cássio de Moraes sobre a epidemia da década de 1970.

Especulações de corrupção

A ausência de um plano organizado sobre as medidas de enfrentamento à epidemia deu margem para especulações sobre a legalidade de contratos firmados pela administração pública. As compras de remédios, por exemplo, apresentaram valores diferentes a depender do órgão que realizava os contratos, e os motivos da escolha de determinado remédio não foram explicados — fatos que motivaram muitas críticas. A opacidade se voltou portanto contra o próprio governo.

A mudança de posicionamento

O governo federal só passou a falar publicamente da doença em 1974, quando explodiram os casos de meningite. Naquele ano, o governo federal, já sob o comando do general Ernesto Geisel, criou a Comissão Nacional de Controle da Meningite, que providenciou a importação de milhões de vacinas e uma preparação mais acelerada do corpo técnico para diagnosticar e tratar a doença.

Em razão da epidemia, aulas de escolas públicas foram canceladas, escolas foram transformadas em hospitais de campanha e outros hospitais paulistanos, além do Emílio Ribas, passaram a receber os pacientes com meningite.

A crise na saúde pública também foi também justificativa do cancelamento dos Jogos Pan-Americanos de 1975, a três meses de sua realização na cidade de São Paulo. Relatos atribuem o cancelamento, porém, à falta de dinheiro do governo para custear o evento.

Uma campanha de vacinação em 1975 se propôs a imunizar 10 milhões de pessoas e, segundo o IBGE, cobriu mais de 93% da cidade de São Paulo. Depois as vacinas chegaram também a outras cidades e outros estados do país.

A dificuldade vivenciada à época para importar as vacinas despertou o governo federal para a necessidade de criação no Brasil de laboratórios públicos produtores de imunobiológicos em larga escala. Em 1976, o Instituto Oswaldo Cruz passou a contar com uma unidade tecnológica para essa finalidade, o Bio-Manguinhos . O instituto é o hoje um dos mais importantes centros de produção de vacinas, reativos e biofármacos da América Latina .

Mesmo com o reconhecimento da epidemia, os boletins diários da Secretaria de Saúde ainda passavam pelo controle do SNI (Serviço Nacional de Informações) e do próprio presidente da República.

A normalização da situação sanitária, com o retorno ao nível endêmico da meningite, só aconteceu no segundo semestre de 1977, seis anos depois da primeira onda do surto.

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