Covid-19: os imigrantes na linha de frente na Europa e nos EUA
João Paulo Charleaux
31 de maio de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h28)Xenofobia cresce com o alastramento do coronavírus, mas estrangeiros assumem postos em atividades essenciais no combate à crise, dos caixas de supermercados aos hospitais
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Trabalhadoras do sistema público de saúde do Reino Unido em Chelsea
O alastramento mundial da covid-19 está associado à velocidade e à facilidade do deslocamento humano. Foram as viagens intercontinentais que, em poucos meses, fizeram uma doença surgida no interior da China chegar a 5 milhões de pessoas em 181 dos 193 países do mundo.
Esse movimento de expansão internacional do vírus acabou levando na sequência a uma forte retração dos fluxos migratórios, com fechamento de aeroportos, cancelamento de voos e militarização das fronteiras. Sobre os imigrantes, caiu o peso redobrado da xenofobia — comportamento de quem vê no estrangeiro uma ameaça inata e uma fonte permanente de perigo.
1.820
foi o número de leis restritivas à imigração adotadas em todo mundo por causa da pandemia, segundo as Nações Unidas
55%
é a queda estimada na receita das companhias aéreas em 2020, de acordo com a Iata (Associação Internacional dos Transportes)
Até 22 de abril, quando a pandemia estava em nível crítico na Europa e nos EUA, os imigrantes representavam 10% da população de 10 dos 15 países mais afetados pela covid-19 no mundo, de acordo com as Nações Unidas.
Presos fora de seus países de origem, esses estrangeiros passaram a ser vistos como um fardo extra para os sistemas locais de saúde, quando não eram vistos como vetores de transmissão em si. Esse quadro sinistro de discriminação foi notado pela OIM (Organismo Internacional para as Imigrações) que, ainda em março, lançou um apelo mundial:
“É importante que todas as autoridades façam todos os esforços para confrontar a xenofobia contra os imigrantes e contra outras pessoas sujeitas à discriminação por motivos ligados às suas origens. A covid-19 não discrimina, e nossa resposta tampouco pode discriminar, se quisermos ter sucesso”
A associação entre “vírus” e “estrangeiro” ganhou força a partir de 11 de março, quando o presidente dos EUA, Donald Trump, em seu primeiro pronunciamento nacional sobre a pandemia, disse: “Esse é o mais agressivo e abrangente esforço para confrontar um vírus estrangeiro na história moderna”.
No mesmo discurso, Trump criticou a China e anunciou a proibição da entrada nos EUA de cidadãos dos países da União Europeia. A China tinha sido o epicentro mundial da pandemia, e a Europa via crescer à época os casos da doença, levando em pouco tempo ao colapso do sistema de saúde na Itália e na Espanha.
Criança guatemalteca de 8 anos, desacompanhada, é interpelada pela patrulha de fronteira no Texas
Comentaristas políticos americanos chamaram Trump de xenófobo . O rival do presidente americano nas eleições de novembro, o democrata Joe Biden, disse que “o racismo não parará o vírus”, e a União Europeia emitiu uma nota na qual disse que “ desaprova a decisão dos EUA de impor restrições [aos cidadãos dos 27 países do bloco] de maneira unilateral e sem consulta” por parte da Casa Branca.
Nada mudou no discurso de Trump desde então. Quase três meses depois de falar do “vírus estrangeiro”, o presidente americano postou em sua conta no Twitter, na quinta-feira (28), um post no qual disse, em sua linguagem peculiar: “Coronavírus no mundo todo. Um ‘presente’ muito ruim da China avança. Nada bom!”
All over the World the CoronaVirus, a very bad “gift” from China, marches on. Not good!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) May 28, 2020
Só no mês de abril, os EUA expulsaram 600 crianças que tentavam entrar no país pela fronteira com o México. Muitas delas tinham apenas 10 anos de idade. Até então, cortes americanas costumavam permitir a permanência de crianças cujos pais estivessem nos EUA, mas a postura mudou com a pandemia, e as expulsões na região passaram a ser sumárias .
A pandemia também justificou que os governos da Itália e de Malta fechassem seus portos para embarcações de ONGs que resgatam imigrantes à deriva no Mediterrâneo.
Após a adoção da medida, em 7 de abril, uma embarcação com 63 imigrantes a bordo foi avistada à deriva por uma aeronave, mas teve a atracação várias vezes recusada em Malta. Quando finalmente agentes da Frontex, a agência de fronteiras europeia, alcançaram o barco, encontraram nele passageiros mortos de fome , enquanto outros morreram afogados depois de terem se lançado ao mar.
Autoridades europeias citaram o medo de que pessoas infectadas acabassem espalhando a doença no continente . Porém, a África concentra muito menos casos de pessoas com covid-19 do que a própria Europa, que figurou por meses como epicentro mundial da doença, antes de ceder esse posto às Américas .
À crise sanitária, seguiu-se uma crise econômica. O dólar e o euro dispararam em muitos países, tornando a remessa internacional de recursos uma estratégia desfavorável para muitos imigrantes assentados em países da Europa, ou nos EUA, que recebiam ou enviavam ajuda a parentes.
As leis de quarentena levaram ao fechamento de bares, restaurantes e outros negócios que empregam grande parte da mão de obra imigrante. Quando o emprego é formal e enquanto o funcionário estrangeiro estiver empregado, ele está coberto por mecanismos de proteção social . Uma vez na rua, a rede de proteção diminui.
Se muitos imigrantes perderam empregos, outros ganharam, por se disporem a cumprir funções mais expostas a risco de contaminação. Nos países europeus, em muitos casos eles foram empurrados para trabalhos na linha de frente do comércio, como entregadores de comida ou como caixas de supermercados.
Assim como ocorreu em supermercados, cozinhas e serviços de entrega em domicílio, os imigrantes também desempenharam papel fundamental em outro setor nevrálgico durante a pandemia, trabalhando como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, administradores ou faxineiros em hospitais e laboratórios ligados ao enfrentamento à covid-19.
Entre os 37 países-membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) — organização conhecida como “ clube dos ricos ” — a Suíça é o país-membro cujo sistema de saúde é mais dependente dos trabalhadores imigrantes: 47,1% dos médicos da Suíça nasceram em outros países. Entre os enfermeiros, esse percentual é de 31,6%.
No Canadá, o percentual de médicos estrangeiros é de 38,5% do total. Entre enfermeiros, 24,4% não são canadenses. Algo semelhante ocorre nos EUA, onde 30,2% dos médicos são estrangeiros e 16,4% dos enfermeiros estão nessa condição.
No Reino Unido, o reconhecimento do papel dos estrangeiros no sistema público de saúde, conhecido pela sigla NHS, ganhou destaque inesperado depois que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi internado numa UTI de hospital público com coronavírus.
Em seu discurso de agradecimento ao NHS, Johnson citou nominalmente alguns médicos e enfermeiras, sendo que dois deles, Jenny e Luis, mereceram deferência especial. Ambos são imigrantes. Ela é neozelandesa e ele é português.
A condição de Jenny e Luis está longe de ser rara no NHS, pois um terço dos médicos que trabalham no sistema são estrangeiros. Os dois maiores grupos são de europeus (21 mil) e de indianos (21 mil também).
O peso dos estrangeiros no sistema foi um dos argumentos dos que se opuseram à saída britânica da União Europeia, o chamado Brexit, sacramentado com apoio decisivo do mesmo Johnson que agora agradeceu aos enfermeiros imigrantes lotados no NHS.
João Paulo Charleaux é repórter especial do Nexo e escreve de Paris
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