O que revelam os documentos da China sobre o início da pandemia
Cesar Gaglioni
01 de dezembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 12h58)Relatórios obtidos pela CNN inglesa mostram confusão no sistema de saúde e divulgação de dados distorcidos
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Funcionários de hospital de campanha na cidade de Wuhan, na China
A resposta da China ao início da pandemia da covid-19 foi confusa, ultraburocrática e com divulgação de dados distorcidos, revelam documentos do governo do país asiático obtidos pela filial inglesa do canal de televisão CNN.
Os relatórios, que abrangem o período de outubro de 2019 a abril de 2020, apontam que o sistema de saúde da cidade de Wuhan, o primeiro epicentro do vírus, estava com poucos recursos e pessoal disponíveis. Lidava ainda com uma tramitação burocrática excessiva, com idas e vindas de documentos que engessavam a resposta à pandemia.
Além disso, os documentos apontam que, no início do avanço do novo coronavírus, no fim de 2019, a China apresentou ao resto do mundo dados que não refletiam a realidade.
A reportagem afirma que não há evidências de que o governo central tenha maquiado os números para preservar a imagem do país. A inconsistência entre a real extensão da epidemia e as informações divulgadas oficialmente se deveram, principalmente, à ineficácia na resposta imediata à pandemia e ao nível de alastramento do novo coronavírus – devido, entre outros fatores, a um sistema de testagem falho e a um método imprudente de classificação de possíveis contaminados.
Até a manhã de terça-feira (1º), o governo da China não tinha se manifestado sobre a divulgação de seus documentos internos.
Somados, os documentos totalizam cerca de 120 páginas de informação. Abaixo, o Nexo apresenta algumas das principais revelações dos relatórios.
Segundo os documentos obtidos pela CNN, a China divulgou dados distorcidos no início da pandemia.
No dia 10 de fevereiro de 2020, o país asiático anunciou que tinha registrado 2.478 casos de novas infecções. Os relatórios, porém, mostram que naquele dia foram detectados 5.918 casos.
O mesmo aconteceu em 7 de março de 2020, quando a China afirmou que tinha registrado 2.986 mortes quando, na verdade, tinham sido 3.456.
De acordo com a CNN, a discrepância entre os números foi causada principalmente pelo país, à época, dividir os casos e possíveis casos em subcategorias, que incluíam os confirmados, os assintomáticos, os suspeitos e aqueles que apresentaram sintomas, mas ainda não tinham recebido um teste positivo. À imprensa, o governo chinês divulgava apenas os casos confirmados e os suspeitos.
A reportagem da CNN afirma que não há indícios de que houve interferência direta do alto escalão do governo para distorcer os dados, embora haja um histórico de censura no país.
“Incluir os pacientes que ainda não tinham recebido testes positivos obviamente teria expandido o tamanho do surto, e, eu acho, teria dado uma noção melhor da natureza e do tamanho da infecção”, afirmou à CNN William Schaffner, professor de epidemiologia na Universidade de Vanderbilt, dos EUA.
Os documentos mostram que, no início da pandemia o sistema de saúde da província de Hubei – cuja capital é Wuhan – estava pouco organizado, com recursos em baixa e poucos profissionais.
Em outubro de 2019, mais de um mês antes do início dos casos, um relatório de auditoria feito no Centro de Controle de Doenças de Hubei afirmou que era necessário uma atenção maior à província.
“Uma grande lacuna de fundos e de pessoal no Centro de Controle de Doenças provinciano afetou seriamente as funções do sistema de saúde. É necessário que o governo dê atenção e apoio para garantir a estabilidade financeira e uma operação normal”, diz o documento.
Essa falta de recursos fez com que, nos primeiros dois meses do surto, testes demorassem 23 dias para ficar prontos. Os procedimentos usados num primeiro momento pelos órgãos de saúde de Hubei se mostraram pouco efetivos, com uma série de imprecisões no diagnóstico.
A auditoria também identificou um processo demasiadamente burocrático nos computadores do Centro de Controle de Doenças. Segundo o relatório, o sistema era lento e tortuoso no trabalho de compartilhamento de informações com a rede nacional de saúde. Isso, na prática, poderia ter resultado em uma resposta mais clara e efetiva aos primeiros casos de infecção.
Os documentos obtidos pela CNN inglesa contam com datas que vão de outubro de 2019 a abril de 2020 e foram tarjados como confidenciais.
De acordo com os documentos, na primeira semana da pandemia,as cidades de Xianning e Yichang, também em Hubei, e não Wuhan , apresentaram o número mais alto de pacientes com sintomas de gripe na província de Hubei – 6.135 e 2.148, respectivamente, ante 2.032 daquele que é considerado o primeiro epicentro da covid-19 no mundo.
À época, o vírus Sars-CoV-2 ainda não tinha sido identificado e, por isso, não é possível afirmar que todos esses casos sejam de pessoas diagnosticadas com covid-19. Porém, os sintomas e o padrão de infecção apontam nessa direção.
Os documentos foram enviados à CNN por um funcionário do sistema de saúde chinês que preferiu não se identificar. De acordo com o canal, essa pessoa afirmou que queria expor uma verdade censurada pelo governo, o que seria, a seu ver, um ato patriótico.
A CNN disse que os documentos foram analisados por seis especialistas externos, incluindo um profissional – não identificado – que tem relações próximas com a China e um oficial de segurança da União Europeia que conhece com profundidade os documentos chineses.
Além disso, a emissora afirmou que enviou os arquivos para cientistas forenses digitais, que analisando os metadados – informações sobre a criação e o manuseio dos documentos – atestaram sua veracidade e não encontraram indícios de que eles teriam sido modificados por terceiros.
Na comunidade científica, é aceito que o primeiro caso de covid-19 foi registrado em um homem da cidade de Wuhan, em 1º de dezembro de 2019.
Apesar de esse paciente receber o título de primeiro caso da doença, não há um consenso. Isso porque, em março de 2020, a China afirmou que houve um paciente anterior , infectado em novembro de 2019, na província de Hubei. Oficialmente, a OMS (Organização Mundial da Saúde) decretou estado de pandemia em 11 de março de 2020.
Além disso, a origem do vírus é incerta . Segundo o virologista Rômulo Néris, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), “é possível sim que o Sars-CoV-2 estivesse circulando por outros hospedeiros intermediários antes de chegar ao homem”. “Essa definição de quanto poderia ter circulado ou se circulou bastante é uma área bastante cinza pois é um vírus que a gente nunca tinha visto e nunca tinha isolado”, disse ao Nexo em julho de 2020.
Durante toda a pandemia, teorias conspiratórias envolvendo o vírus e a China surgiram, e iam desde a ideia de que o governo do país tinha criado a infecção em laboratório para promover o avanço do comunismo à afirmação de que o governo – sob liderança do primeiro-ministro Xi Jinping – deliberada e ativamente mentiu para o resto do mundo, tentando mascarar os dados oficiais como forma de evitar uma crise de opinião pública.
Até mesmo autoridades ventilaram as afirmações, caso do presidente americano, Donald Trump, que, em mais de uma ocasião, chamou o novo coronavírus de“ vírus chinês ”. Durante um comício no fim de junho, Trump usou o termo “kung flu” para se referir à covid-19, um trocadilho jocoso envolvendo kung fu, as artes marciais chinesas, e a palavra “flu”, que significa gripe. Em maio, Trump anunciou o rompimento dos EUA com a OMS, alegando que a organização seria uma “fantoche da China”.
As revelações chegam em um momento em que os Estados Unidos e a União Europeia pressionam a China a cooperar com a OMS em um estudo para identificar a origem exata do vírus. Na última semana de novembro de 2020, a organização sanitária afirmou que o país asiático tinha aceitado levar cientistas da instituição para a província de Hubei. A viagem ainda não foi marcada.
A divulgação dos documentos deve gerar mais dúvidas para os cientistas que tentam rastrear o vírus até sua origem e também alimentar, de alguma forma, essas teorias conspiratórias.
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