Um ato interreligioso contra o racismo no Brasil
Guilherme Henrique
18 de dezembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 13h02)Cerimônia com lideranças de diversos credos presta homenagem a João Alberto Freitas, homem negro assassinado em uma loja do Carrefour em Porto Alegre
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Mulher participa de manifestação na frente de um supermercado Carrefour em Brasília
A Coalizão Negra Por Direitos , que reúne mais de 150 entidades do movimento negro no Brasil, a Congregação Israelita Paulista, maior instituição judaica da América Latina, entre outros movimentos religiosos e da sociedade civil, vão realizar uma cerimônia ecumênica e antirracista neste domingo (20).
O evento, intitulado“Minha fé é antirracista – em defesa de todas as vidas negras”, será virtual em decorrência da pandemia do novo coronavírus e começa às 11h. O encontro será transmitido pelas redes sociais da Coalizão Negra por Direitos.
A manifestação têm como objetivo homenagear João Alberto Freitas, homem negro assassinado ao ser espancado por dois seguranças brancos em uma loja do Carrefour em Porto Alegre no dia 19 de novembro de 2020.
Na quinta-feira (17), o Ministério Público do Rio Grande do Sul indiciou seis funcionários ligados à rede de supermercado francesa por homicídio triplamente qualificado — por motivo torpe, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.
Segundo os organizadores, a partir desse primeiro encontro, outras reuniões semelhantes vão acontecer no dia 20 de cada mês, até 21 de março de 2021, quando é celebrado o Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial.
Além do ato virtual, uma mobilização presencial em frente à loja do Carrefour onde o crime aconteceu em Porto Alegre, com a presença de familiares de Beto Freitas, ativistas políticos e lideranças religiosas da capital gaúcha, vai acontecer no domingo (20), a partir das 15h.
De acordo com organizadores, a ideia é que os encontros tenham representantes de todas as matrizes religiosas, com prevalência para as afro-brasileiras. Estão confirmadas entidades como Comissão Arns, CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e Anistia Internacional.
A mobilização serve para que a morte de Beto Freitas não seja esquecida, segundo Ruben Sternschein, doutor em filosofia judaica pela USP (Universidade de São Paulo) e rabino da Congregação Israelita Paulista. “Ficamos chocados com o assassinato, mas ainda mais perplexos com a volta ao suposto normal. Depois de cinco dias da morte dele quase ninguém tocava mais no assunto”, disse ao Nexo .
Sternschein participou das manifestações ocorridas na avenida Paulista , região central da capital, no dia seguinte à morte de Beto Freitas. “Eu percebi que a maioria das pessoas eram negras. Isso me indignou enquanto homem ocidental e branco”, disse. “O racismo não é um problema dos negros, mas algo criado pelos brancos . Precisamos ter consciência disso para diminuir os efeitos do racismo na sociedade”, completa o rabino.
Segundo Ìyá Sandrali, uma das lideranças da Renafro (Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde), a participação de entidades religiosas não-negras mostra que a luta antirracista precisa ser disseminada. “Nós, negros, somos as vítimas. O combate à perversidade precisa estar para além dos movimentos e das religiões africanas”, disse ao Nexo .
“A pandemia dificulta um pouco nossas ações, mas esses atos servem para mostrar que a morte de pessoas negras não pode ser esquecida. Por isso as reuniões vão acontecer todo mês. Essa congregação de forças precisa perdurar e impactar o debate político e social de alguma forma”, afirmou.
Para Sternschein, a união em torno da morte de Beto Freitas deve extrapolar a religião. “Ser religioso neste momento não consiste em estar em uma igreja, sinagoga ou catedral. É preciso ocupar o espaço público, ainda que virtualmente, para fazer parte da luta antirracista. Esse é o preceito religioso que as entidades, principalmente não-negras, precisam ter nesse momento”, disse.
A cerimônia ecumênica é uma celebração de caráter religioso e social que reúne representantes de várias religiões e membros da sociedade civil em um ato conjunto sem distinção entre os mais diversos credos.
Em entrevista ao Nexo , Douglas Barros, professor de filosofia da PUC-Campinas (Pontifícia Universidade Católica), afirmou que cerimônias ecumênicas são atos que assumem uma atitude de chamar a atenção da sociedade em favor da justiça, e também para denunciar atrocidades contra a população.
Ele também disse que a reunião de diversas crenças religiosas serve para mostrar que a religião não pode se calar diante dessas atrocidades. “Essas cerimônias mostram que a religiosidade precisa transcender grupos específicos e estar ao lado do povo em momentos desfavoráveis”, afirmou.
Barros lembrou que as homenagens a Beto Freitas acontecem em um momento de violência exacerbada contra a população negra, com casos reiterados de violência policial . “Os negros são maioria, mas são aniquilados repetidamente. É preciso escancarar essa realidade”, afirmou.
A realização de cerimônias ecumênicas ganhou protagonismo no Brasil durante a ditadura militar (1964 a 1985), como resposta às denúncias de tortura e de assassinatos contra opositores ao regime. Foram atos que ajudaram a impulsionar o processo de redemocratização do país.
O primeiro grande ato aconteceu em outubro de 1975, em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, morto uma semana antes nos porões do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão política da Polícia Civil. Na época, o laudo oficial dizia que Vlado havia se suicidado, mas investigações posteriores mostraram que ele foi morto durante uma sessão de tortura nas mãos dos agentes policiais.
Após a morte do jornalista, um culto ecumênico organizado por Dom Paulo Evaristo Arns , o rabino Henry Sobel e o reverendo presbiteriano Jaime Wright reuniu 8.000 pessoas na Catedral da Sé, no centro paulistano. “Eles tiveram a coragem de denunciar uma morte brutal em um momento em que a abertura para isso era quase nenhuma. E fizeram isso seguindo o mandamento religioso do momento, que era se manifestar na via pública”, disse o rabino Sternschein.
Em 1980, cerca de 500 pessoas, entre lideranças religiosas e ativistas políticos, se reuniram na Diocese de Nova Iguaçu, município na Baixada Fluminense, para homenagear os mortos que participaram da Guerrilha do Araguaia .
O grupo com cerca de cem guerrilheiros formados pelo PCdoB manteve confronto com o Exército brasileiro entre 1967 e 1974, na divisa entre os estados do Pará e Tocantins. Muitos deles foram mortos já após a rendição. A maioria dos corpos dos guerrilheiros nunca foi encontrada pelas autoridades.
Três anos depois, em dezembro de 1983, Dom Paulo Evaristo Arns organizou outro culto ecumênico na Catedral da Sé, desta vez em homenagem a Joílson de Jesus. O menino de 15 anos havia sido morto a pontapés por um procurador de Justiça, depois de ser acusado de roubar uma correntinha de ouro na região central.
Em 20 de março de 2018, diversas lideranças religiosas e ativistas se reuniram em frente à Igreja da Candelária , região central do Rio de Janeiro, para um ato ecumênico em homenagem à vereadora Marielle Franco e ao motorista Anderson Gomes, assassinados seis dias antes no bairro da Lapa.
Além de familiares de Marielle e Anderson, a cerimônia teve a presença de religiosos como a iyalorixá Iyá Wanda de Omolu, o frei Leonardo Boff, o rabino Nilton Bonder e o pastor Mozart Noronha. Não foi divulgado na época o número de pessoas que compareceram ao ato.
Mais de dois anos após o assassinato, o caso segue sem que se conheçam as motivações e os mandantes do crime. Já há dois réus acusados de executar o assassinato. O policial militar Ronnie Lessa é apontado como autor dos disparos, e o ex-PM Élcio Queiroz como responsável por dirigir o automóvel em que Lessa estava no momento do crime. Ambos estão presos .
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