Expresso

Por que o desmatamento é também um problema de segurança pública

Camilo Rocha

02 de janeiro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h29)

Entidade militar internacional alertou governo brasileiro que incentivo a crimes contra a natureza cria ambiente de ilegalidade. Ao 'Nexo', especialista em segurança aponta conexões entre atividades ilícitas de garimpo e mineração e outras práticas criminosas

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FOTO: GREGG NEWTON/REUTERS

Tronco de árvore caída com chamas na ponta. Solo ao redor está seco, depois de também tomado pelas chamas

Principal método de desmatamento, as queimadas liberam gás carbônico e metano na atmosfera

No início de dezembro de 2020, um relatório internacional alertou sobre as consequências do desmatamento da Amazônia na esfera da segurança pública. Elaborado pelo Conselho Militar Internacional sobre Clima e Segurança, o documento “Clima e segurança no Brasil” diz que o “desmatamento ilegal desenfreado atrai outras formas de atividade ilegal, que também podem crescer rapidamente”.

Para a entidade, além do problema ambiental em si e de suas consequências na biodiversidade, clima e economia, a atividade põe em xeque a segurança nacional e a legitimidade do estado brasileiro.

O conselho diz haver um “vácuo na aplicação da lei” na Amazônia. Diante da retórica do presidente Jair Bolsonaro, a organização questiona a dedicação do governo brasileiro em conter a derrubada ilegal da floresta. Segundo o texto, a prática “flagrante” de crimes cometidos em grande escala “deveria ser entendida como uma afronta clara às autoridades legais e à soberania nacional”.

Criado em 2019, o Conselho Militar Internacional sobre Clima e Segurança reúne chefes militares e especialistas e instituições de segurança de 38 países. Entre os 67 membros do conselho, não há nenhum brasileiro. Entre os integrantes há altos funcionários da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), militares ligados às Nações Unidas e integrantes das Forças Armadas dos Estados Unidos e da União Europeia.

No relatório, a organização pede a volta de práticas de combate ao desmatamento que, na sua avaliação, haviam sido bem-sucedidas anteriormente.

Segundo dados divulgados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) , a taxa de derrubada na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020 foi a mais alta dos últimos 12 anos.

11.088

foi o total de área desmatada na Amazônia, em quilômetros quadrados, entre agosto de 2019 e julho de 2020

A organização reconhece que as Forças Armadas brasileiras têm preocupações com o meio ambiente e estão atentas a como as mudanças climáticas podem impactar em suas missões no futuro. No entanto, o texto chama atenção para os fracos resultados da estratégia governamental de colocar militares para encabeçar o combate à devastação, “usurpando e sendo menos eficazes” que agências civis.

Em maio de 2020, o governo federal decretou uma operação de Garantia da Lei e da Ordem na região, submetendo o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) ao controle do Ministério da Defesa e das Forças Armadas.

O papel de Bolsonaro

O relatório dos especialistas estrangeiros cita diversas ações do governo Bolsonaro como exemplos de sabotagem à segurança nacional na Amazônia, entre elas “o enfraquecimento sistemático do presidente dos departamentos e agências civis tradicionalmente responsáveis pelos programas de contra desmatamento do país”.

Desde que assumiu, Bolsonaro realizou diversas investidas contra Ibama e ICMBio. Elas incluíram críticas a destruição de maquinário usado em desmatamento ilegal feita por agentes dos órgãos, medida prevista em lei, exoneração de servidores, aparelhamento dos órgãos com policiais militares e a criação de uma instância conciliatória para multas ambientais que julgou apenas 5 infrações de um total de mais de 7.000 agendadas .

FOTO: ROMÉRIO CUNHA – 28.JUN.2019/VICE-PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, durante entrevista em Curitiba

Em setembro de 2020, o vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que Ibama e ICMBio estão sucateados . Além disso, pontuou que a preservação da Amazônia é uma tarefa para os civis, cabendo aos militares a proteção da região. O vice-presidente já disse também que a recriação do Conselho Nacional da Amazônia, que ele chefia, evidenciou “o compromisso do Brasil com os parâmetros globais de sustentabilidade”.

O documento dos militares estrangeiros menciona o fato de que o presidente e vários de seus ministros apoiam “filosófica, política e ideologicamente” o desmatamento como condição para o crescimento econômico, enxergando a abertura de áreas da floresta para fazendas de gado, madeireiras e agricultura como receita contra a pobreza.

Outra atividade econômica incentivada frequentemente por Bolsonaro é o garimpo. Uma proposta recorrente sua é permitir a mineração em áreas indígenas, o que atualmente é proibido por lei. Em abril de 2020, o presidente afirmou que tem “vontade de abrir” a exploração em Serra Pelada, região do Pará que viveu uma febre de exploração na década de 1980, marcada por violência e destruição ambiental.

“Eu já garimpei também. Tinha um jogo de peneira, tinha uma bateia. Sempre estava no meu carro. Não podia ver um córrego que caía de boca lá, está certo?”, afirmou o presidente a apoiadores no Palácio da Alvorada, em abril de 2020.

A ilegalidade na Amazônia

Em agosto de 2019, a Força-Tarefa Amazônia, que reuniu 15 procuradores da República dos estados de Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Rondônia, junto com a Polícia Federal, chamou atenção para a atuação do crime organizado em grandes esquemas de desmatamento e mineração ilegal.

“São pessoas que têm muito dinheiro e muitas fazendas. Envolve corrupção de agentes públicos, milícias para fazer a grilagem de terra e lavagem de dinheiro, já que o produto do crime é ocultado por meio de laranjas”, disse ao portal UOL o procurador Joel Bogo, do Ministério Público Federal.

FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS – 15.04.2016

Draga em chamas

Draga de garimpo ilegal é destruída às margens de rio em Roraima

Outra linha de investigação da força-tarefa revelou esquemas de lavagem de dinheiro a partir da extração do ouro ilegal em terras indígenas e unidades de conservação ambiental. O motivo é a ausência de mecanismos de rastreamento do minério, o que faz com que sua verdadeira origem possa ser falsificada. Segundo os procuradores, é uma facilidade que abre caminho para a lavagem de recursos provenientes de atividades como tráfico de drogas e contrabando.

De acordo com a Associação Nacional do Ouro, que representa empresas e profissionais que atuam no mercado de ouro, a atividade ilícita movimenta entre R$ 4,5 bilhões a R$ 5 bilhões por ano, o equivalente a 17% da produção legal do minério no país.

“Tem de tirar da cabeça a imagem do garimpeiro com picareta e bateia, que não existe mais. O que tem agora é o garimpeiro empresário, que tem uma draga, uma balsa, pá-carregadeira ou uma retroescavadeira hidráulica”, disse a coordenadora da Força-Tarefa Amazônia, a procuradora Ana Carolina Bragança, em entrevista à Agência Pública .

O crime organizado na Amazônia

A respeito das relações entre problemas ambientais da Amazônia e segurança publica, o Nexo conversou com Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé. A entidade é especializada nos temas de segurança e desenvolvimento.

Quando os problemas ambientais também se tornam questão da segurança pública?

MELINA RISSO Primeiramente, é importante compreender que 80% do desmatamento na Amazônia advém de atividades ilícitas como mineração ilegal, extração ilegal de madeira e grilagem, e portanto, é crime. Segundo, esses crimes ambientais se conectam com diversas outras atividades criminosas como por exemplo tráfico de drogas, conforme revelado pela recente operação Enterprise da Polícia Federal, tráfico de armas e de pessoas, escravidão infantil, exploração sexual e prostituição forçada. Algumas localidades se tornam verdadeiros ambientes criminogênicos. Além disso, muitas das cidades mais violentas da América Latina, incluindo Altamira e Novo Progresso (ambas no estado brasileiro do Pará, um dos principais pontos de criminalidade ambiental), têm economias amplamente baseadas no crime ambiental.

O governo Bolsonaro é acusado de incentivar atividades ilegais, como extração de madeira e garimpo, por meio do discurso, mas também ao promover o enfraquecimento da fiscalização. Qual o efeito que isso pode ter em relação à legitimidade das leis e do Estado?

MELINA RISSO Grileiros, garimpeiros, madeireiros ilegais e assassinos de índios praticando crimes na ponta sabem interpretar os sinais que vem do Palácio do Planalto. Nesse sentido, as sinalizações do governo federal têm poder.

O desmatamento, embora tenha causas complexas, é antes de tudo movido a expectativas. Hoje, o sistema premia atores ilegais com a expectativa de legalização. Segundo levantamento feito pelo Imazon, 86% dos crimes ambientais na Amazônia estão impunes; são 5,5 anos de duração média dos processos, e há uma taxa de 16% de prescrição das multas. O mesmo se observa com o garimpo ilegal. Entre janeiro e abril de 2020, 72% de todo o garimpo realizado na Amazônia ocorreu dentro de áreas que deveriam ser protegidas (segundo dados do Greenpeace).

Mas não se trata apenas do discurso e da expectativa. A política de enfraquecimento e desfinanciamento do Ibama tem consequências muito graves para o desmatamento e as ilegalidades presentes na região.

A violência rural é outro fator recorrente na região. O que o governo tem feito para coibir a violência e proteger os defensores ambientais ameaçados de morte?

MELINA RISSO O problema da violência rural não começou com o governo Bolsonaro. O Instituto Igarapé fez um levantamento de dados para monitorar violência perpetrada por agentes estatais e não estatais contra defensores ambientais na Amazônia brasileira. Entre 2012 e 2018, documentamos 2540 atos violentos na Amazônia Legal e dentre eles mais de 400 assassinatos. No geral, o Pará é o estado de maior risco para os ambientalistas (27% dos registros), seguido por Maranhão e Rondônia.

Desde 2004, o Brasil tem um programa para proteger defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, contudo o programa oferece pouca proteção. Atualmente, o Brasil é o terceiro país que mais mata defensores ambientais no mundo. São pelo menos três assassinatos por semana, de acordo com o relatório da Global Witness.

À medida que Bolsonaro retrocede nas implementações das leis e mecanismos de proteção ambiental, as redes criminosas atuando na Amazônia vão expandindo suas atividades e ameaças para a região.

Bolsonaro acusa países de comprar madeira ilegal do Brasil. Quais têm sido os esforços do governo dentro do país para coibir essa modalidade de crime?

MELINA RISSO O mercado brasileiro de madeira na Amazônia é, historicamente, marcado pela ilegalidade. Não há números precisos sobre a dimensão das atividades criminosas no setor, mas estima-se que 70% da madeira que sai da Amazônia é fruto de extração irregular. No entanto, o Brasil avançou muito no manejo de madeira sustentável em outras regiões.

O governo federal conta com sistemas de controle da produção, de rastreamento de madeira e de sensoriamento remoto, por meio de imagens de satélite e sobrevoos. Recentemente, o Ibama lançou um novo sistema digital antifraude. O Sinaflor+ , que traz um maior controle no manejo da madeira, rastreando desde à origem e fortalecendo o combate ao desmatamento ilegal.

Infelizmente, apesar disso, o desmatamento na Amazônia continua subindo. De acordo com o Inpe, entre agosto de 2019 e julho de 2020 houve um aumento de 9,5% na área desmatada comparada ao ano anterior.

Quais as principais frentes de atuação do crime organizado na Amazônia? Ele tem expandido sua operação na região nos últimos anos?

MELINA RISSO A falta de vontade política para exercer o controle e a aplicação correta da lei, aliada à dificuldade de fiscalização do vasto território e à falta de pessoal, agravada pelo desmonte de instituições como o Ibama, tornam a Amazônia especialmente vulnerável à expansão do crime organizado.

Do tráfico de drogas e armas passando pelos crimes ambientais, muitas dessas organizações operam na região e se articulam com instituições legais e esferas públicas, alimentando um ciclo de corrupção e impunidade.

A porosidade das fronteiras também fortalece o crime organizado transnacional. Em 2015, o Exército Brasileiro colaborou com as forças militares colombianas na Operação São Joaquim, que fechou as fronteiras da Amazônia para combater facções criminosas (PCC, FDN e outro grupo carioca, Amigos dos Amigos) que mantêm laços com as Farc e outros grupos armados na Colômbia. De acordo com investigações recentes, esses grupos estão ampliando sua atuação na mineração ilegal, em especial na lavagem de dinheiro.

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