Os desafios da vacinação de indígenas contra a covid-19
Mariana Vick
05 de fevereiro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 22h57)Imunização é marcada por disputas para definição de grupos vacinados na primeira etapa, desinformação nas aldeias e falta de dados
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Mulher da etnia Ticuna recebe dose da Coronavac em Tabatinga (AM)
Os indígenas estão entre os grupos prioritários da campanha nacional de vacinação contra a pandemia do novo coronavírus , junto com profissionais de saúde, idosos, pessoas que têm comorbidades que podem agravar o quadro da covid-19 e outras populações vulneráveis, como ribeirinhos e quilombolas.
A vacinação de parte da população indígena começou na primeira fase da campanha, poucos dias depois de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em 17 de janeiro, ter aprovado o uso emergencial da Coronavac , vacina da Sinovac fabricada pelo Instituto Butantan, e da vacina de Oxford/AstraZeneca, produzida no país pela Fiocruz.
A campanha de imunização contra o novo coronavírus em todo o país vem sendo marcada por entraves, como a falta de doses disponíveis para os grupos prioritários, escassez de insumos para produção de vacinas no país, mudanças de última hora na fila da imunização e irregularidades.
3 milhões
de brasileiros foram vacinados contra a covid-19 até quinta-feira (4), segundo levantamento de consórcio de veículos de imprensa
Entre as populações indígenas, a campanha também passa por obstáculos. Embora estados como Amazonas, Roraima e Mato Grosso do Sul tenham imunizado parte significativa desse grupo, no Rio Grande do Norte nenhum indígena ainda foi vacinado, e, em algumas regiões onde a vacina chega, a população resiste a se imunizar.
O Nexo apresenta o cenário da campanha de vacinação de indígenas contra a covid-19. Os principais obstáculos à imunização incluem disputas para definir quem deve ser vacinado na primeira etapa, discurso antivacina nas aldeias e falta de dados sobre a evolução da imunização entre esses povos.
O plano nacional de imunização contra a covid-19 define que apenas parte dos indígenas do país estão entre os grupos prioritários da campanha: os indígenas “aldeados” , ou seja, aqueles que vivem em terras indígenas demarcadas e hoje são atendidos pela secretaria de saúde indígena do Ministério da Saúde.
A regra exclui dessa etapa da vacinação os indígenas que vivem em áreas urbanas e os que vivem na zona rural, mas não estão em terras reconhecidas pelo governo. Os indígenas excluídos do plano são mais da metade da população indígena do país, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010.
410.348
indígenas “aldeados” estão contemplados na primeira fase da campanha de vacinação contra a covid-19, segundo o plano de imunização do governo federal
896.917
é o total de indígenas do país, segundo o censo do IBGE de 2010; organizações indígenas dizem que hoje o número chega a 1 milhão
A estimativa é de que, além de 410 mil indígenas, 20 mil profissionais de saúde que atendem a esses povos sejam imunizados na primeira etapa da vacinação. O Ministério da Saúde afirma que 907.200 doses de vacinas foram reservadas para essa população, e elas serão distribuídas nas mais de 6.000 aldeias brasileiras, com apoio das Forças Armadas.
A inclusão de indígenas entre os grupos prioritários da vacinação atende a decisão do Supremo Tribunal Federal, que, em resposta a uma ação protocolada pelo movimento indígena, determinou que o governo federal adotasse medidas de proteção dos povos tradicionais contra a covid-19.
Entidades indígenas e indigenistas, como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), porém, afirmam que a decisão do governo de incluir apenas indígenas “aldeados” nos grupos prioritários da vacinação não se justifica e cria discriminação dentro do grupo.
“O termo usado pelo ministro [da Saúde, Eduardo Pazuello], ‘indígenas aldeados’, nos remete ao período da ditadura militar e representa uma discriminação, onde o governo pretende definir, de forma arbitrária, quem é e quem não é índio”
O Cimi afirmou, em nota, que “o fato de o indígena estar fora da aldeia não faz com que ele deixe de ser indígena ”. O conselho também citou estudo da Ufpel (Universidade Federal de Pelotas) segundo o qual a prevalência da covid-19 entre a população indígena urbana é de 5,4% , cinco vezes maior que a vista na população não indígena, de 1,1%.
Por causa da regra do plano de vacinação, no estado do Rio Grande do Norte nenhum indígena foi vacinado na primeira fase da campanha, porque a população indígena do estado não vive em terras demarcadas. O estado foi o único do país a não receber doses para sua população indígena.
No Maranhão, pressões de ativistas da causa indígena levaram o governo estadual a estender a vacinação para indígenas em contexto urbano. Na cidade de Campo Grande (MS), a Justiça Federal determinou que o governo federal vacine todos os indígenas que vivem no município, seja em terras demarcadas ou em áreas urbanas.
Desde o início da pandemia, o governo federal também considera apenas indígenas “aldeados” na contagem de casos e mortes por covid-19 na população indígena. A decisão, tomada pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), levou à subnotificação do número real de infecções e óbitos pela doença entre esses povos, segundo organizações indígenas.
A Apib, em resposta, passou a fazer seu próprio levantamento da incidência a covid-19 entre povos indígenas. Enquanto, até esta sexta-feira (5), a Sesai considerava que o país acumulava 42.040 casos e 555 mortes por covid-19 entre a população indígena, a Apib contava um número maior: 47.846 casos e 953 óbitos.
O segundo elemento que prejudica a vacinação contra a covid-19 entre povos indígenas é a desinformação. Mesmo onde as vacinas chegam, em algumas comunidades as pessoas têm resistido a receber a dose, influenciadas por mentiras que questionam a eficácia e a segurança dos imunizantes.
A origem da desinformação está em pastores e outros líderes evangélicos que atuam nas comunidades, segundo relatos colhidos pelo site DW Brasil. Por meio de áudios pelo celular, pelo sistema de radiofonia entre aldeias ou em cultos, eles dizem que as vacinas alteram o DNA , causam câncer ou vêm junto com chips , entre outras invenções.
Integrantes de igrejas evangélicas que atuam em parte das aldeias também afirmam que as vacinas foram produzidas com muita velocidade, e que indígenas estariam entre os grupos prioritários da campanha de vacinação para serem exterminados como “cobaias” dos imunizantes. A Coronavac e a vacina de Oxford são comprovadamente seguras e eficazes contra a covid.
Em resposta à desinformação, a Apib criou a campanha “ Vacina, parente ”, que busca criar ações de conscientização sobre as vacinas entre os povos indígenas. Em outro sentido, a campanha deve também pressionar os governos para garantir a imunização para todos os povos.
A Apib também questiona o órgão de saúde indígena do governo federal por não publicar os números de indígenas imunizados contra a covid-19, da mesma forma que faz com os dados de indígenas infectados ou mortos desde o início da pandemia.
A falta de um levantamento preciso e atualizado do número de vacinados se deve a problemas de logística e estrutura nas aldeias, segundo o governo federal. São “locais de difícil acesso, e alguns sem comunicação via internet”, afirmou o Ministério da Saúde em nota reproduzida no site da Revista Época.
O monitoramento dos vacinados está a cargo dos Dseis, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, unidades ligadas à pasta que fazem o atendimento direto das aldeias. Enquanto não há um levantamento único, parte dos Dseis tem publicado seus números nas redes sociais ou repassado para as secretarias estaduais de saúde.
A coordenadora-executiva da Apib, Sonia Guajajara, cobrou esforços das autoridades para mais transparência e celeridade, mesmo com as dificuldades de logística. A escassez de informações prejudica o controle da sociedade civil para pleitear a imunização de todos e saber de fato quantos e quais povos precisam de vacina, disse ela à Revista Época.
Os indígenas estão entre os grupos prioritários para receber a vacina contra a covid-19 porque estão entre as populações mais vulneráveis à doença dentro do país, porque são mais suscetíveis ao contágio por infecções e porque a taxa de mortalidade do novo coronavírus tem sido maior entre indígenas.
O primeiro motivo que agrava a situação de indígenas durante a crise do coronavírus é a falta de acesso a serviços de saúde. A saúde indígena , sistema do SUS (Sistema Único de Saúde) que atende a esses povos, tem pouca infraestrutura para tratar casos graves da doença, e os serviços hospitalares de alta complexidade costumam estar longe de aldeias.
Ianomâmis usam máscaras contra a covid-19 distribuídas pelo Exército
O segundo motivo é a falta de condições de comunidades indígenas para fazer distanciamento social. O vírus pode se alastrar rapidamente nas aldeias, onde as famílias costumam viver em casas comunais, às vezes mal ventiladas. “A vida na aldeia é uma vida compartilhada ”, disse o médico sanitarista Douglas Rodrigues ao Nexo em 2020.
“As doenças infecciosas normalmente atingem grande parte, ou até mesmo a totalidade das pessoas de uma aldeia, de uma comunidade indígena. Elas costumam ser mais graves entre crianças e idosos. […] Temos que considerar o impacto social de epidemias como esta”
Além disso, uma proporção grande de indígenas faz parte do grupo de risco da pandemia, pois tem outras doenças que podem agravar o quadro da covid-19, segundo dados divulgados pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Entre as comorbidades comuns entre indígenas estão malária, tuberculose, hepatite B, hipertensão e diabetes.
Com o tempo, dados da pandemia mostraram que indígenas morrem mais de covid-19 do que outros grupos do país. Em dezembro, a taxa de mortalidade pela doença entre indígenas era de 991 por milhão, 16% superior à mortalidade geral do Brasil, de 852 por milhão, segundo dados da Apib.
Entre os motivos que agravam a situação dos indígenas está também a omissão do governo federal, responsável por atender a essas populações durante a crise. A Apib recorreu ao STF para obrigar o Executivo a tomar medidas para impedir um “extermínio” durante a pandemia, mas o governo não atendeu às ordens da corte.
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