Como a medicina lida com a covid-19 após um ano de pandemia
Estêvão Bertoni
12 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h01)Doença continua sem tratamento, mas avanços em procedimentos nas unidades de terapia intensiva têm ajudado a salvar vidas
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Profissional de saúde trabalha em UTI que atende pacientes com covid-19 em hospital na França
Um ano após a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarar estado de pandemia devido à disseminação global do novo coronavírus, a covid-19 continua sendo uma doença sem tratamento. Nenhum remédio testado se mostrou capaz de atacar o vírus Sars-CoV-2, que causa a infecção, ou de prevenir seu contágio. As vacinas, desenvolvidas e aprovadas em tempo recorde, são o único modo de evitar mais mortes além das medidas não farmacológicas como o distanciamento social.
No Brasil, a divulgação de um suposto tratamento precoce com um kit de medicamentos ineficazes ganhou força devido ao incentivo pelo presidente Jair Bolsonaro, com o aval do Ministério da Saúde, ao uso da cloroquina e de sua derivada hidroxicloroquina. Ao ser pressionado a se manifestar sobre o tema, o Conselho Federal de Medicina se limitou a defender a autonomia dos médicos para receitar remédios fora da bula, o que contribuiu ainda mais para aumentar a confusão na população.
Algumas regiões têm insistido na difusão de substâncias sem efeito como resposta ao aumento de casos e mortes e à falta de vagas em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva). Em Macapá, equipes de saúde distribuíram no começo de março 150 mil kits com vitaminas C e D, zinco e ivermectina (vermífugo usado contra piolho) na tentativa de “aumentar a imunidade” da população, o que estudos já demonstraram que não acontece. A própria MSD, farmacêutica que produz a ivermectina, afirmou em nota que o produto não traz benefícios contra a covid-19.
Em fevereiro, a Justiça suspendeu a distribuição pela Prefeitura de Porto Alegre de um coquetel com ivermectina, azitromicina (usado contra infecções bacterianas), hidroxicloroquina e cloroquina. Na decisão, o juiz considerou não haver “evidências robustas” de eficácia baseadas em pesquisas e reconhecidas pela comunidade científica. A OMS não recomenda a cloroquina, descartou realizar mais pesquisas e já há consenso entre os cientistas de que ela não funciona para a covid.
Em Santa Catarina, médicos continuam receitando ivermectina e cloroquina. O estado é um dos 13 com taxa de ocupação de leitos de UTI igual ou acima de 90%, segundo boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) publicado na terça-feira (9).
A falta de um tratamento específico para a covid-19 não significa que doentes que busquem ajuda médica, mesmo com um quadro leve de infecção, não precisem tomar remédios.
“A gente faz tratamento para melhorar a dor, a febre, a mialgia (dor muscular). Faz medicações específicas para a tosse, porque às vezes o paciente não consegue dormir por causa dela. O que a gente trata são os sintomas”, disse ao Nexo a professora Patrícia Rocco, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro titular da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciências.
Entre todos os infectados pelo novo coronavírus, algo entre 80% e 90% são assintomáticos ou apresentam quadros leves e não precisam de atendimento médico. Essas pessoas acabam se curando sozinhas em casa. Como os sintomas mais comuns são semelhantes ao de uma gripe, os remédios indicados para quem procura um hospital nesse estágio da doença geralmente são os mesmos analgésicos ou antitérmicos já utilizados para os resfriados comuns.
O chefe da UTI do Hospital Copa Star, Fabio Miranda, afirmou em entrevista ao jornal O Globo, em fevereiro, que a hidratação também é extremamente importante, porque o doente muitas vezes pode se desidratar sem perceber, o que pode levar à complicações da doença. Especialistas também defendem o monitoramento permanente do estado do paciente para evitar que ele já chegue ao hospital em situação grave.
Assintomático
Parte dos infectados pelo novo coronavírus pode receber um resultado positivo no teste para a covid-19, mas não apresentar os sintomas da doença. As pessoas transmitem o vírus mesmo assim.
Leve
Nessa fase, o infectado apresenta um ou mais sintomas, como febre, indisposição, dor de cabeça, de garganta ou muscular, náusea, vômito, diarréia e perda de olfato e paladar, mas não têm falta de ar e comprometimento do pulmão identificado em exames de imagem.
Moderada
O paciente começa a demonstrar dificuldade para respirar e apresenta um grau de saturação de oxigênio no sangue de cerca de 94%.
Grave
O nível de oxigenação no sangue cai abaixo de 94%, a frequência respiratória supera 30 respirações por minuto (a média de um adulto em repouso é de 12 a 20) e o paciente apresenta infiltração pulmonar superior a 50%.
Crítico
São pacientes que apresentam quadro de falência respiratória, choque séptico ou disfunção de múltiplos órgãos.
A parcela de doentes de covid-19 que precisa de internação é de cerca de 10%, dos quais um terço necessita de atendimento em UTI. A evolução no tratamento médico ocorreu justamente para esse público.
A ciência sabe qual o efeito da doença no pulmão. Por meio de autópsias em vítimas da covid-19, pesquisadores observaram que o Sars-CoV-2 causa lesões em todo o aparelho respiratório , com maior gravidade nos alvéolos, que são pequenas bolsas agrupadas no formato de cachos nas quais ocorrem as trocas gasosas no interior do pulmão.
Segundo as análises, o interior dessas estruturas sofre uma descamação, o que faz com que elas acumulem líquido, levando à insuficiência respiratória.
Os pesquisadores identificaram ainda pequenos focos de hemorragia na parede dos alvéolos, que o organismo fechou formando coágulos. O risco desse processo é que os coágulos podem causar tromboembolismo, o entupimento de vasos sanguíneos mais finos.
Por isso, os maiores avanços foram na modulação do uso de corticoides (anti-inflamatórios) e anticoagulantes nos pacientes graves. Em junho de 2020, pesquisadores britânicos do estudo Recovery mostraram que o uso do corticóide dexametasona reduziu significativamente a mortalidade em pacientes com covid-19 internados com quadros graves.
Atualmente, todos os pacientes com baixa de oxigenação e que precisem de ventilação mecânica fazem uso de corticóide, segundo a professora Patrícia Rocco, da UFRJ. Eles também recebem anticoagulantes de maneira profilática, mas o uso pleno do medicamento precisa seguir alguns parâmetros laboratoriais obtidos por meio de exames de sangue, e é usado em casos específicos que dependem da condição do paciente.
Os médicos também descobriram que a pronação, técnica que consiste em deitar o paciente com a barriga para baixo, também ajuda a salvar vidas. Colocar a pessoa de bruços melhora a respiração ao liberar a carga sobre os pulmões.
Nenhum antiviral funcionou contra o Sars-CoV-2 nos testes realizados. No final de 2020, a OMS divulgou uma nota desaconselhando o uso do antiviral remdesivir em pacientes hospitalizados com covid-19. Até então, o remédio era visto como promissor. Um artigo publicado no British Medical Journal mostrou não haver evidências de que ele diminuía o risco de ventilação mecânica e aumentava as chances de sobrevivência.
Mesmo assim, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou na sexta-feira (12) o uso do medicamento para pessoas hospitalizadas que precisem de oxigenação. Segundo a agência, a análise da OMS teve como foco a prevenção de mortes. Para a liberação no Brasil, o critério usado foi a redução no tempo de hospitalização, o que já ajudaria devido à superlotação dos hospitais. O uso do remdesivir é aprovado por agências de outros 50 países, como a dos Estados Unidos.
Encontrar um antiviral capaz de combater o novo coronavírus não é uma tarefa fácil. Ao Nexo a biomédica e doutora em bioquímica Ana Paula Herrmann, que é professora adjunta do departamento de farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, disse que já era esperado que não houvesse antivirais eficazes para infecções virais agudas como é o caso da covid-19.
O desenvolvimento de remédios para bactérias, por exemplo, é mais fácil porque elas são seres vivos que se reproduzem de forma independente e têm estruturas muito diferentes das células humanas. “A gente consegue desenvolver fármacos específicos para bactérias que não vão matar as células humanas. São muitos seguros porque vão atuar contra proteínas e estruturas que só elas têm”, disse.
No caso dos vírus, isso já é mais complicado por suas características. “O vírus é muito diferente, pois tem apenas o material genético e usa toda a maquinaria da célula humana para se reproduzir”, afirmou. Por causa disso, é difícil encontrar “alvos” para atingir diretamente os vírus. Os remédios acabariam interferindo nos próprios mecanismos das células que são usados para exercer suas funções normais.
Outro problema, segundo a professora, é que quando os sintomas de infecções virais agudas começam a aparecer, muitas vezes já é tarde demais para conter a doença com remédios.
Para Patrícia Rocco, da UFRJ, é também difícil realizar ensaios clínicos para testar antivirais, especialmente na fase precoce da doença, quando as replicações virais mais acontecem no organismo dos pacientes. Os remédios tendem a funcionar mais nas primeiras 48 ou 72 horas. Muitos testes são feitos em pessoas internadas com mais de dez dias de sintomas, o que prejudica o resultado.
“A gente tem dificuldade de recrutar pacientes na fase correta. E para fazer um estudo desses com antivirais tem que ser multicêntrico [cooperativo, entre vários centros de pesquisa] porque aí passa a ter um recrutamento maior, com mais pacientes”, disse.
Especialistas concordam que a medicina aprendeu a lidar com a covid-19 no último ano, mas não o suficiente. A taxa de mortalidade nas unidades de terapia intensiva é alta. Um estudo que analisou as primeiras 250 mil internações no país entre fevereiro e agosto de 2020 constatou que seis em cada dez pacientes morreram.
A professora Patrícia Rocco credita o fato não a problemas de procedimento médico, mas à falta de estrutura. “O problema é que a gente não tem leito e não tem especialista”, afirmou.
Segundo ela, pacientes têm passado muito mais tempo na emergência do que deveriam, à espera de uma vaga. “Na emergência, com oxigênio, o pulmão vai piorando, o paciente vai aumentando o esforço para respirar. Para ter a troca gasosa, tem que ter o alvéolo para o ar entrar e o sangue passar pela artéria. Conforme aumenta o esforço, começa a lesar mais os alvéolos e o seu vaso, que começa a esgarçar. O paciente piora e tem um edema pulmonar. Quando ele chega na UTI, é muito mais difícil ventilar pelo grau de inflamação e do edema”, disse.
A mortalidade, na opinião da professora, poderia ser menor com a disponibilidade de mais vagas em UTIs. “Algumas cidades não têm estrutura nenhuma de terapia intensiva para isso. E os pacientes estão morrendo onde? Na emergência. A mortalidade nas UTIs está maior porque eles estão chegando mais graves também”, afirmou.
No começo da pandemia, a OMS lançou um projeto chamado Solidarity , para testar as drogas mais promissoras contra a covid-19. A iniciativa concluiu que os medicamentos remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir (antirretrovirais usados no tratamento do HIV) e interferon (usado contra a leucemia) tiveram pouco ou nenhum efeito na mortalidade e no tempo de hospitalização de pacientes com covid-19.
Pesquisadores ainda mantêm estudos sobre o uso de anticorpos monoclonais , tratamento experimental que foi usado pelo ex-presidente americano Donald Trump, quando ele se infectou com o novo coronavírus em outubro de 2020. A ideia é que um coquetel de anticorpos seja capaz de neutralizar o vírus.
Outra alternativa estudada é a colchicina , um anti-inflamatório usado contra a gota (doença das articulações decorrente do excesso de ácido úrico no sangue). Ele ajudaria a conter a inflamação pulmonar e a acelerar a recuperação de pacientes com quadros moderados e graves da covid-19. Testes feitos pela USP mostraram resultados positivos, mas ainda sem grande impacto.
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