Quem o Brasil conseguiu vacinar em 2 meses de campanha
Estêvão Bertoni
15 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h04)Para além da escassez de doses, falta de planejamento e de metas atrapalha o andamento da imunização no país e impede que mesmo grupos prioritários sejam atendidos
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Comunidade ribeirinha é vacinada com imunizante da AstraZeneca/Oxford em Manaus
Quase dois meses após o início da campanha de imunização contra a covid-19 no Brasil, apenas um terço de nove grupos prioritários — como profissionais de saúde, indígenas, quilombolas e idosos acima de 70 anos — recebeu a primeira dose da vacina, segundo um estudo publicado na sexta-feira (12) pela Rede de Pesquisa Solidária, que reúne pesquisadores de várias universidades.
Menos de 5% de toda a população brasileira tinha recebido ao menos uma dose da vacina até segunda-feira (15). Com recordes diários de casos e mortes, o país, que tem um histórico em vacinação em massa, é o epicentro da doença no mundo e representa um risco global devido ao aparecimento de variantes mais contagiosas.
A capacidade de entrega dos imunizantes pelo Ministério da Saúde tem sido incerta. Entre o final de abril e início de março, o agora ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, reduziu por cinco vezes a previsão de doses fornecidas aos estados em março.
A lentidão da campanha é uma das principais críticas à atuação de Pazuello e do governo federal na pandemia em 2021. Na segunda-feira (15), o presidente Jair Bolsonaro anunciou a substituição do general pelo médico cardiologista Marcelo Queiroga. Ele será o quarto nome a comandar o Ministério da Saúde desde o início da crise sanitária.
A Rede de Pesquisa Solidária comparou a campanha de vacinação brasileira a de outros quatro países: Estados Unidos, Reino Unido, Índia e México. Todos vêm aplicando mais doses para cada 100 habitantes por dia do que o Brasil. Os Estados Unidos, por exemplo, vacinaram quase 3 milhões de pessoas apenas no sábado (13). O número representa quase um terço da vacinação brasileira realizada em dois meses.
Os quatro países definiriam etapas iniciais de vacinação com prazos a serem cumpridos, ao contrário do Brasil. Apesar da gravidade da pandemia, o plano de vacinação do governo federal continua sem uma meta de imunização de grupos preferenciais ou prazo para a conclusão de cada fase de aplicação das doses.
9.716.458
pessoas receberam ao menos uma dose da vacina contra a covid-19 no Brasil até segunda-feira (15), segundo o consórcio de veículos de imprensa
Embora esteja negociando a aquisição de mais vacinas com outros laboratórios e tenha fechado acordos de intenção de compra de mais doses, o Ministério da Saúde contava até a segunda-feira (15) com apenas duas opções de imunizantes: a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, e a vacina da AstraZeneca, desenvolvida pela Universidade de Oxford e produzida pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Em dois meses de campanha, várias cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, tiveram de suspender a vacinação por falta de doses. Os cronogramas do Butantan e da Fiocruz sofreram atrasos devido a dificuldades de importação do IFA (ingrediente farmacêutico ativo) da China para o envase das doses no Brasil.
20 milhões
de doses haviam sido distribuídas em todo o país na segunda-feira (15), segundo o Ministério da Saúde
Na nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, elaborada pelos pesquisadores Guilherme Loureiro Werneck (UERJ/UFRJ), Ligia Bahia (UFRJ) e Mário Scheffer (USP), quatro principais obstáculos para a vacinação dos grupos prioritários no Brasil são elencados:
Segundo os pesquisadores, os Estados Unidos e o Reino Unido, além de sediarem “parte significativa dos laboratórios de desenvolvimento e produção de vacinas”, se destacam pela definição adequada de metas e a sequência de fases e prazos de suas campanhas.
“Nas nações de renda média, observa-se o superdimensionamento de grupos prioritários para vacinação, implicando em ordem de grandeza de população elegível muito superior e incompatível com a capacidade efetiva de vacinação e com os prazos anunciados”
Mesmo países que fecharam contrato com vários produtores e adquiriram doses suficientes para os grupos prioritários, como o México, estão com dificuldades em receber as doses devido à atrasos nas remessas.
No Brasil, segundo o estudo, há ainda pouca transparência sobre os contratos de intenção de compra anunciados pelo governo federal, o que torna “ainda mais obscura uma previsão realista da oferta de vacinas no Brasil ao longo do ano de 2021”.
Inicialmente, 49,6 milhões de pessoas no Brasil constavam dos grupos prioritários no primeiro plano divulgado pelo Ministério da Saúde, em dezembro. Desde então, a pasta decidiu ampliar esse número. Em março, eram 77,2 milhões de pessoas divididas em 29 grupos prioritários, que incluíam também militares, professores e caminhoneiros, entre outros.
“As promessas de bons lugares na fila de vacinação para atender pressões políticas e corporativas terminam por afastar o programa de vacinação dos critérios epidemiológicos e acrescentam demandas a uma oferta notoriamente escassa de vacinas”, escreveram os pesquisadores.
9,2%
da população prioritária total, de 77 milhões de pessoas divididas em 29 grupos, recebeu a primeira dose até o início de março; apenas 2,8% receberam as duas doses
Para conter a pandemia, a única estratégia possível é a vacinação em massa da população, para além dos grupos prioritários. Muitos especialistas consideram ser necessária a imunização de quase a totalidade da população que pode ser vacinada (crianças e pessoas com algumas doenças, por exemplo, não podem ser vacinadas) para que se alcance a imunidade coletiva, estágio a partir do qual o vírus para de circular por encontrar barreiras na sua transmissão.
Segundo a nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, a cobertura completa da população-alvo atingiria cerca de 159,8 milhões de brasileiros com 18 anos ou mais. Para vacinar esse contingente, seriam necessárias cerca de 320 milhões de doses de vacinas. O país tem mais de 210 milhões de habitantes.
O problema é que o Brasil sequer tem conseguido garantir a vacinação de pequenos grupos incluídos entre os prioritários, como os profissionais de saúde. Apenas metade deles havia recebido a primeira dose até o início de março, segundo o estudo. A única exceção de cobertura completa com a primeira dose ocorreu entre os idosos com 60 anos ou mais que vivem em instituições de longa permanência.
Não há explicação razoável, segundo os autores, para justificar a baixa cobertura entre os idosos acima dos 80 anos, indígenas e profissionais de saúde, que deveriam ser priorizados.
Um dos problemas para a falta de definição é que os municípios, responsáveis pela aplicação das doses, ficaram liberados para organizar a vacinação de acordo com a realidade local. E a programação continua sem meta definida. “A definição de populações-alvo elegíveis para receber as vacinas e a meta de cobertura são essenciais em qualquer programa nacional de imunização”, diz a nota técnica.
Quando analisadas as regiões do país, as coberturas são maiores justamente nos locais que concentram o menor volume de idosos acima de 80 anos, como Norte e Centro-Oeste. No Nordeste, onde estão 25% da população nessa faixa etária, apenas metade das pessoas recebeu pelo menos uma dose.
Para acelerar a vacinação contra a covid-19 no Brasil, os pesquisadores sugerem a criação de um comitê técnico nacional para revisar o plano operacional de imunização que vem sendo executado. Esse comitê seria integrado por membros do Congresso, do Judiciário, do Ministério da Saúde, do SUS (Sistema Único de Saúde), da comunidade científica e da sociedade civil.
Uma de suas ações seria estabelecer metas e parâmetros claros de vacinação para cada grupo prioritário, com uma cobertura vacinal mínima de 90% em cada um deles. Cada etapa precisaria atingir 70% de cobertura para que a próxima fase da campanha pudesse ser iniciada.
A nota técnica também pede mais transparência nos dados do Ministério da Saúde, inclusive em relação às vacinas produzidas por Butantan e Fiocruz, e sugere a promoção de uma campanha de comunicação de massa para combater a desinformação e incentivar a aceitação das vacinas.
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