Expresso

Como a precariedade hospitalar impulsiona as mortes por covid

Estêvão Bertoni

16 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h01)

De cada três internados que morreram com a doença desde o início da pandemia, um não conseguiu atendimento em UTIs, segundo levantamento da Fiocruz

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FOTO: DIEGO VARA/REUTERS – 11.MAR.2021

Imagem mostra no primeiro plano um paciente deitado numa maca, com uma máscara de oxigênio no rosto; ao fundo, homem sentado em cadeira apoia a cabeça na mão e tampa o rosto, aparentando cansaço

Paciente é atendido no setor de emergência do hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre

Durante um ano de pandemia, um terço das mortes de pacientes hospitalizados com covid-19 no Brasil ocorreu fora das UTIs (Unidades de Terapia Intensiva), segundo levantamento realizado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Ao todo, foram 72 mil pessoas internadas que não conseguiram tratamento adequado na terapia intensiva e não resistiram à doença, o que revela um cenário de colapso no sistema de saúde.

Epicentro da pandemia do novo coronavírus no mundo, o Brasil vive em março de 2021 a pior onda da doença desde seu início, com recordes diários de mortes.

2.841

foi o recorde de mortes por covid em 24 horas no Brasil, alcançado na terça-feira (16), segundo o Ministério da Saúde; o número foi de 2.798 no levantamento do consórcio de veículos de imprensa

Na terça-feira (16), dia com maior número de mortes registradas em 24 horas desde o início da crise, o país acumulava mais de 282 mil óbitos e superava 11,5 milhões de casos de infecção. O temor dos pesquisadores é que o agravamento da situação faça aumentar o número de mortes de pessoas que sequer são hospitalizadas.

A situação dos hospitais brasileiros em março tem sido dramática. Das 27 capitais brasileiras, 25 atingiram no começo do mês o nível crítico de ocupação de leitos de UTI, com taxas acima de 80%. Quinze delas tinham um nível de ocupação acima de 90%, segundo um boletim da Fiocruz.

O levantamento da Fiocruz que analisa dados desde o início da pandemia mostra, no entanto, que mesmo antes desse cenário muitas das mortes poderiam ter sido evitadas caso a rede hospitalar tivesse suportado a demanda e conseguido oferecer leitos especializados para todos os casos graves. Os óbitos podem ter ocorrido tanto por falta de vagas em UTIs devido à sobrecarga dos hospitais quanto pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde em regiões mais remotas.

O número de internados que morreram sem chegar à UTI pode ser ainda maior porque não havia informação sobre 10% das mortes por covid-19 nos dados do Sivep-Gripe (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe) usados na análise da Fiocruz.

O levantamento foi feito pelo pesquisador Diego Xavier, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da fundação, e divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo no domingo (14).

“Se a gente não tomar essas medidas [de restrição de circulação], vai ter um volume muito grande de pessoas que vai morrer sem entrar num hospital, vai morrer dentro de uma ambulância ou dentro de casa sem ter o mínimo de dignidade. É essa situação que a gente está chegando”

Diego Xavier

pesquisador da Fiocruz, em entrevista ao Nexo, na quinta-feira (11)

O colapso da saúde

Outro estudo feito pelo epidemiologista Rafael Moreira, que é pesquisador da Fiocruz de Pernambuco e professor da Faculdade de Medicina da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), mostra que houve dificuldade de internação de pacientes que apresentaram todos os sintomas de covid-19, como febre, tosse, dificuldade de respirar, além de perda de olfato e paladar.

Com base nos dados da Pnad-Covid (Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o pesquisador aponta que 6% dos pacientes com os sintomas graves da infecção sequer conseguiram ser internados em hospitais. O número foi calculado com base numa amostra com mais de 340 mil pessoas que responderam à pesquisa em 2020.

“Essa questão chama a atenção para o colapso da saúde que foi negado [durante a pandemia], numa falsa narrativa. O que a gente está vendo é o contrário. É o colapso generalizado e pessoas morrendo em casa ou na fila à espera de um leito de UTI”, disse o pesquisador ao Nexo .

Segundo ele, a ausência de uma política de testagem em massa contribuiu para a falta de identificação dos doentes, inclusive os que desenvolvem casos graves e que precisam de UTI. Uma pesquisa que analisou as 250 mil primeiras internações no Brasil com covid-19 mostrou que a taxa de mortalidade entre quem chega aos leitos de terapia intensiva é alta, de cerca de 60%, e um dos motivos para isso é que o paciente já dá entrada nos hospitais com um quadro avançado e de difícil reversão.

“Seria importante que a gente tivesse testagem em massa, mas como não temos, o trabalho do agente comunitário de saúde seria muito útil no diagnóstico de pessoas com sintomas da covid. Eu defendo a atenção primária de saúde para ela realmente alcançar as pessoas que não tem acesso aos testes diagnósticos”, afirmou Moreira.

A política de expansão de leitos

Com resistências às medidas restritivas por parte dos gestores públicos, por causa do custo político do isolamento social, e sem conseguir oferecer uma campanha de vacinação em massa da população, o país tem respondido à pandemia com a abertura de leitos.

Durante o período de enfrentamento à doença, o Brasil ampliou o número de leitos em 25.186 unidades , segundo um levantamento divulgado pela TV CNN Brasil, em março, com base nos registros do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil. O aumento nas vagas foi de 61% em quase um ano.

66.497

era o número de leitos de UTI registrados em janeiro de 2021, no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil

41.311

leitos estavam registrados em fevereiro de 2020

A expansão, porém, não se mostrou capaz de absorver a demanda de atendimento por causa do novo coronavírus. “Houve um aumento generalizado e a abertura de hospitais de campanha, mas mesmo assim, com toda essa oferta, ainda estamos com uma taxa de ocupação superior a 90%. Existe um limite para a abertura de leitos, para a oferta de profissionais de saúde com a capacidade de atuação num ambiente de tratamento intensivo. Só essa medida não é suficiente”, disse ao Nexo o pesquisador Rafael Moreira, da Fiocruz de Pernambuco.

Alguns estados como São Paulo já anunciaram novos leitos devido ao recrudescimento da pandemia no início de 2021. A medida é considerada bem-vinda por especialistas, mas não suficiente. Para desafogar os hospitais, é preciso reduzir o número de infecções com medidas restritivas de circulação de pessoas, como o lockdown. Esse tipo de ação começa a surtir efeito cerca de duas semanas depois.

“Não adianta abrir mais leitos. Estamos perdendo a corrida para a covid. A única maneira de tentar alcançar é reduzir drasticamente o número de casos e ampliar o mais rápido possível a vacinação”, afirmou Walter Cintra, médico e professor de administração hospitalar e sistemas de saúde da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, no começo de março.

As dificuldades para abrir UTIs

Mesmo com o anúncio de mais vagas de alta complexidade nos hospitais, muitos estados e municípios têm tido dificuldade para cumprir a promessa por falta de profissionais que atuam em UTI e são especializados para isso.

A Secretaria de Estado da Saúde de Minas divulgou uma nota dizendo que a contratação de profissionais tem sido um desafio nos hospitais da Fhemig (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais).

“Com o plano de ampliação de até 66 leitos de UTI, a Fhemig tem feito sucessivos chamamentos emergenciais para contratação desses profissionais e, mesmo oferecendo uma remuneração compatível com o mercado, poucos candidatos preenchem os requisitos necessários”, afirmou a pasta.

Segundo a secretaria, para cada dez leitos disponíveis, são necessários nove médicos, que precisam ser especialistas em terapia intensiva ou infectologia e ter experiência nesse tipo de trabalho.

No Hospital Júlia Kubitschek, em Belo Horizonte, por exemplo, dez leitos de terapia intensiva não podiam ser ocupados por falta de médicos, mesmo com estrutura montada.

O problema tem aparecido em todo o país. Em Caxias do Sul (RS), o Hospital Virvi Ramos tentava no começo de março abrir quatro novos leitos de UTI, mas esbarrava na escassez de equipes. A diretora executiva, Cleciane Doncatto Simsen, afirmou ao jornal Zero Hora que faltavam técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos.

A dificuldade de abertura de novos leitos atinge também os hospitais privados de São Paulo. Ao menos 15 deles pediram à prefeitura da cidade na terça-feira (16) o empréstimo de 30 leitos de UTI do SUS (Sistema Único de Saúde) para tratar de pacientes com covid-19. O secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, disse que pedidos do tipo devem aumentar nos próximos dias.

ESTAVA ERRADO: A versão original deste texto informava que, de cada três internados com covid-19, um morreu fora das UTIs. Na verdade, de cada três mortes de pacientes internados com a doença, uma ocorreu fora das unidades de terapia intensiva. A informação foi corrigida às 12 h do dia 17 de março de 2021.

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