As ‘escolhas de Sofia’ dos médicos nas UTIs lotadas pela covid
Estêvão Bertoni
30 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h03)Com explosão de casos na pandemia e filas para atendimento no país todo, estados têm determinado protocolos para definir quem recebe vaga em tratamento intensivo
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Profissionais de saúde cuidam de paciente em hospital em Bauru, no interior de São Paulo
Os médicos que atuam na linha de frente do combate à covid-19 estão tendo que fazer “escolhas de Sofia” em meio à falta de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para atender os doentes durante a fase mais aguda da pandemia. Em todo o Brasil, a fila de espera por atendimento adequado ultrapassou 6.300 pacientes no final de março, segundo o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde.
O termo “escolha de Sofia” tem origem no best-seller homônimo lançado em 1979 pelo escritor americano William Styron, que virou filme em 1982, e rendeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz no ano seguinte. Na história, uma polonesa é forçada a escolher qual de seus dois filhos vai morrer num campo de concentração para que o outro seja salvo — se nenhum fosse escolhido, os dois morreriam. A expressão passou a designar escolhas difíceis que implicam enorme sacrifício pessoal.
Desde o início da pandemia no Brasil, conselhos de medicina e associações médicas elaboraram protocolos para orientar profissionais em situações do tipo — eles trazem orientação sobre como escolher o paciente que deverá receber terapia intensiva, já que a decisão final cabe aos médicos.
Com o agravamento da situação no país, com quase todos os estados em estado crítico de ocupação de UTIs, acima dos 80%, no final de março, escolhas do tipo têm se tornado cada vez mais frequentes, e levado em conta não só a destinação de leitos mas também o uso de insumos e medicamentos que estão em falta. Na terça-feira (30), o país bateu mais um recorde de mortes por covid-19 registradas em 24 horas.
3.780
mortes por covid-19 foram registradas em 30 de março de 2021, segundo o Ministério da Saúde. O número foi de 3.668 no levantamento do consórcio de veículos de imprensa, com base nos dados dos estados
Os protocolos elaborados por entidades médicas são geralmente baseados em esquemas de pontuação que dependem da gravidade do quadro do paciente. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, por exemplo, indica desde maio de 2020 que os médicos sigam critérios internacionais com base no Sofa (Sequential Organ Failure Assessment, ou avaliação sequencial de falência de órgãos).
Esse método foi desenvolvido em 1994 pela Sociedade Europeia de Terapia Intensiva e consiste numa contagem que vai de 0 a 4 pontos de acordo com o grau de disfunção de seis sistemas orgânicos: cardiovascular, respiratório, hepático, hematológico, neurológico e renal.
A soma dos pontos determina o grau de comprometimento dos órgãos do paciente. Estudos mostraram que altos valores no Sofa resultaram em altas taxas de mortalidade em grupos diferentes de pacientes. O risco de morte também é maior quando há um aumento nesse índice nas primeiras 96 horas de internação numa UTI.
No caso dos pacientes com a covid-19, uma pontuação mais alta significa que as chances do paciente de conseguir uma vaga de UTI são menores. Em caso de empate, o protocolo que foi analisado pelo estado do Rio defendia que pacientes que já estão ligados a um respirador têm preferência. Nas demais situações, os mais jovens, com mais tempo de vida pela frente, acabam ficando com a vaga.
“Se tenho um paciente com câncer avançado de pulmão, que mesmo com respirador a opção de tratamento para ele é a mínima possível, ele pode ficar monitorado em uma enfermaria, com toda a sedação, todo o conforto, para não ter sofrimento. Mas o leito de CTI [Centro de Terapia Intensiva] será ocupado por outro”
Vários estados já oficializaram protocolos do tipo. Um dos mais recentes foi Santa Catarina. Em março de 2021, devido à superlotação dos hospitais, a Secretaria de Saúde do estado criou um protocolo de triagem para definir quais pacientes serão transferidos para as UTIs e quais receberão um tratamento paliativo.
O estado irá seguir o protocolo da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) e da Abramede (Associação Brasileira de Medicina de Emergência). O documento, intitulado “Protocolo de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por covid-19”, também se baseia no método Sofa e considera cinco níveis de prioridade , que seguem critérios de gravidade do caso (levando em conta a presença de comorbidades), maior grau de sobrevida e capacidade do paciente (que vai de “completamente ativo” a “completamente incapaz de realizar auto-cuidados básicos”).
De acordo com o protocolo, ao receber um paciente infectado pelo novo coronavírus, o médico deve “manter medidas de estabilização clínica” num prazo de 90 minutos e revisar regularmente os critérios, “incluindo a atualização das pontuações, já que elas podem variar com a evolução do quadro”. O protocolo ressalta que os profissionais que fazem a triagem desses pacientes devem ter suporte, “na medida do possível”, de equipes de saúde mental.
Pacientes internados com covid-19 geralmente apresentam baixo nível de oxigenação no sangue e precisam de oxigênio hospitalar para respirar. A falta do insumo levou doentes no Amazonas à morte, em janeiro. Um levantamento da Frente Nacional de Prefeitos em março estimava que 76 municípios de 15 estados corriam risco de ficar sem oxigênio.
Como os fabricantes estão no limite da produção e a construção de usinas para a fabricação do insumo leva tempo, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou na segunda-feira (29) que a pasta está elaborando um protocolo que visa economizar o uso do oxigênio nos hospitais.
“Todos sabemos que muitas pessoas chegam aos hospitais e às vezes a primeira providência é colocar o oxigênio nasal em quem não precisa. Vamos tentar economizar, fazer uma campanha entre os profissionais de saúde para o uso racional do oxigênio”
A ideia foi criticada por alguns especialistas. Ao jornal O Globo, a pneumologista Patricia Canto Ribeiro, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), a criação de um protocolo precisaria ser debatida com a classe médica.
Segundo ela, fornecer oxigênio a pacientes com falta de ar que chegam aos hospitais é a “primeira providência que se toma”. “Isso porque o uso precoce do oxigênio reduz o risco do paciente ser intubado e o tempo de internação dele. Mas é claro que ninguém bota oxigênio em pacientes que estão bem”, afirmou. Para ela, a medida pode ser preocupante por possivelmente delimitar a única opção que o paciente pode ter para se recuperar.
A pressão sobre o sistema de saúde também gerou falta de medicamentos essenciais para intubar pacientes nas UTIs. Segundo o Ministério da Saúde, todas as unidades federativas estavam na terça-feira (30) com “estoque crítico” de medicamentos.
Em audiência pública na terça-feira (30), o secretário de Atenção Especializada à Saúde do ministério, coronel Luiz Otávio Franco Duarte, afirmou que o governo federal irá receber produtos importados por meio da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde). A pasta também negocia com outros países, como a Espanha, e com multinacionais.
Sem os medicamentos do chamado “kit intubação” (sedativos, analgésicos e bloqueadores musculares), pessoas em estado grave não podem ser salvas , segundo os médicos. “É impossível intubar um paciente e mantê-lo vivo em ventilação mecânica sem essas medicações”, afirmou ao Nexo , em março, o médico intensivista Fabiano Nagel, que é chefe da Unidade de Gestão do Paciente Crítico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Em fevereiro, um hospital de Parintins, no interior do Amazonas, registrou falta de sedativos. Pacientes foram amarrados com gazes nas macas para evitar a autoextubação, que é quando o próprio paciente remove os tubos. Na época, a Amib (Associação Brasileira de Medicina Intensiva) divulgou nota dizendo que a intubação sem sedação era “desumana”. Segundo Nagel, não sedar um paciente durante a intubação faz com que o procedimento ventile mal e pode levá-lo à morte.
Devido à falta dos medicamentos, hospitais de pequeno e médio porte do interior do país decidiram fechar leitos porque não têm como atender os pacientes, segundo a Federação Brasileira de Hospitais, que representa o setor privado.
O agravamento da pandemia também tem tido impacto na saúde mental dos médicos. Uma pesquisa da Associação Médica Brasileira, de janeiro de 2021, com a participação de 3.882 profissionais de todas as regiões do país, mostrou que 64% sentem ansiedade , 62%, estresse, e 58%, sensação de sobrecarga.
Em entrevista ao Nexo , em dezembro de 2020, a pesquisadora Maria Helena Machado, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), alertou para o fato de que a piora da pandemia poderia agravar ainda mais a saúde dos profissionais.
“Esses profissionais se sentem esgotados, com medo e estressados e tendem a se afastar do trabalho — ou porque estão contaminados ou porque percebem que a situação está num nível insustentável. Isso é gravíssimo”, disse a pesquisadora.
Segundo ela, o problema é que os profissionais afastados não podem facilmente ser substituídos por uma outra força de trabalho da mesma categoria, porque são altamente especializados na urgência das UTIs. “São os intensivistas, os infectologistas, os clínicos, a equipe de enfermagem. E isso não se forma no mesmo dia”, afirmou.
O médico Sérgio Roberto de Lucca, que atua na área de saúde do trabalhador do departamento de saúde coletiva da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), disse também ao Nexo em março que perder pacientes por falta de recursos e colegas de trabalho pode gerar “ transtorno de estresse pós-traumático ”. Já o medo de contaminar um familiar acarreta “transtornos de ansiedade e depressão”, segundo ele.
Para amenizar o sofrimento desses profissionais, de acordo com o médico, seriam necessários recursos humanos e de estrutura e equipamentos. Do ponto de vista individual, ele defende suporte psicológico, “ainda que virtual”, e a solidariedade dos colegas.
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