Expresso

Por que quem mente na CPI da Covid não vai preso

Isabela Cruz

21 de maio de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h09)

Lei permite iniciativa por parte de integrantes de comissão. Ameaças até surgiram nos primeiros depoimentos, mas senadores decidiram adotar uma estratégia diferente

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FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 19.MAI.2021

Pazuello e Calheiros em pé, entre aparatos de acrílico que separam os assentos das bancadas

Eduardo Pazuello, general da ativa e ex-ministro da Saúde, e o senador Renan Calheiros (MDB-AL), durante sessão da CPI da Covid

Em três semanas de depoimentos, a CPI da Covid no Senado confrontou testemunhas ligadas ao presidente Jair Bolsonaro a partir de fatos públicos e documentados. Boa parte das respostas veio com distorções e mentiras, segundo avaliação de integrantes da comissão e levantamentos feitos por agências de checagem.

Em CPIs, assim como ocorre perante um juiz, testemunhas assinam termo pelo qual se comprometem a dizer a verdade e, se mentirem, pode ficar caracterizado o crime de falso testemunho — punível com reclusão de dois a quatro anos, mais multa. Pela lei, a prisão pode ser decretada ali mesmo, em flagrante.

Por que então, mesmo diante de mentiras patentes, os integrantes da CPI, especialmente o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), a quem cabe por tradição a iniciativa, não dão voz de prisão às testemunhas? E qual a consequência dessa inação para o andamento das investigações?

Uma estratégia política para conter ânimos

Aziz já disse que “não é carcereiro de ninguém” quando o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL) defendeu a prisão de Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação da Presidência. O presidente da comissão disse que não teria “essa mesma parcimônia em relação aos outros depoentes”.

A partir de então surgiu a discussão se a prisão seria de fato o caminho mais adequado. Afinal, seria um ato apenas simbólico, uma vez que se trata de um crime afiançável. A testemunha presa seria constrangida a sair do Congresso sob a escolta da guarda do Senado, mas não ficaria muito tempo na delegacia.

A mentira na CPI da Covid, então, deixou de ser acompanhada de ameaças de prisão em flagrante. Depois do primeiro dia de depoimento do general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, por exemplo, Renan elencou na quinta-feira (20) 15 mentiras do militar ditas na comissão.

“Seu depoimento não se sustenta, e qualquer pessoa que tenha acompanhado suas declarações ao longo da pandemia e ouviu o que disse ontem a esta comissão chega à mesma conclusão: o depoente estava, sem nenhum pudor, mentindo para proteger outros culpados”, afirmou o relator.

Mentiras na CPI

A INCOMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO

Em meados de abril, o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten deu uma entrevista à revista Veja que foi publicada com o título “Houve incompetência e ineficiência”. Perguntado sobre a declaração, Wajngarten negou que estivesse culpando o Ministério da Saúde sob Pazuello e disse que “a manchete serve para vender a tiragem, a manchete serve para trazer audiência”. Ainda durante a sessão, a revista publicou o áudio da entrevista , em que Wajngarten nega que o fracasso das negociações do Ministério da Saúde com a farmacêutica Pfizer tenha ocorrido por negligência e afirma que o problema foi “incompetência”.

A RELAÇÃO COM A CHINA

Ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que já se referiu ao coronavírus como “comunavirus”, negou que tenha causado problemas com a China . “Eu não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito, em nenhum momento, como antichinesa”, disse Araújo. À frente do Itamaraty, entre falas e textos críticos à geopolítica chinesa, ele chegou a trocar farpas com o embaixador chinês no Brasil nas redes sociais, em defesa do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente. O deputado havia atacado o governo chinês no Twitter, acusando Pequim de espionagem pela rede 5G.

A EXTENSÃO DA CRISE EM MANAUS

Pazuello, que era o ministro da Saúde no momento do colapso dos hospitais do Amazonas no início de 2021, disse que só soube dos riscos da falta de oxigênio em Manaus no dia 10 de janeiro, com pouco tempo para agir. Também afirmou que a escassez do produto ocorreu apenas “por dois a três dias”. Documentos produzidos pelo próprio governo apontam que a pasta foi avisada, na verdade, em 8 de janeiro . O senador Eduardo Braga (MDB-AM), que foi governador do Amazonas, se irritou com a declaração do general. “Não faltou oxigênio no Amazonas apenas três dias, pelo amor de Deus. Ministro Pazuello, pelo amor de Deus. Faltou oxigênio na cidade de Manaus por mais de 20 dias . É só ver o número de mortos.”

A opção da CPI por agir depois

Se a prisão de uma testemunha numa CPI não ocorrer em flagrante, qualquer cidadão pode encaminhar ao Ministério Público uma comunicação do possível crime. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso de Wajngarten. A comissão encaminhou uma notícia-crime contra o ex-secretário. Caberá aos procuradores decidir se vão à Justiça pedir a responsabilização criminal do depoente ou não.

Pelo Código Penal, o crime de falso testemunho deixa de ser punível se a testemunha, por vontade própria, se retrata, antes de a sentença do processo em que o depoimento foi prestado ser proferida. No caso de CPIs, entende-se que o final do processo corresponde ao fechamento do relatório final da comissão. São 90 dias de CPI até a apresentação do relatório.

Outra possibilidade de prisão em CPI acontece por desacato, crime cometido contra funcionário público, punível com detenção de seis meses a dois anos ou multa. Isso aconteceu, por exemplo, em 2004 com Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo, na CPI do Banestado. Pitta trocou acusações com o presidente da comissão, o então senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), sugerindo que o político agredia a esposa. Depois de detido, Pitta prestou depoimento à Polícia Federal e foi solto.

O caso de Pazuello

Antes de ir à CPI, Pazuello recorreu ao Supremo Tribunal Federal , para pedir que lhe fossem garantidos, num habeas corpus, determinados direitos ao prestar depoimento.

O caso caiu com o ministro Ricardo Lewandowski. O ministro entendeu que, apesar de ter sido convocado na condição de testemunha, o ex-ministro da Saúde devia ter algumas garantias próprias de investigado, uma vez que suas respostas poderiam afetar sua defesa no inquérito criminal já em curso, sobre o mesmo assunto, aberto em janeiro a pedido da Procuradoria-Geral da República.

A decisão de Lewandowski não liberou Pazuello de comparecer à CPI, como ele tinha pedido, e destacou que lhe era “ vedado faltar com a verdade ” relativamente a todos os questionamentos que não fossem capazes de incriminá-lo. Por outro lado, a decisão garantiu os seguintes direitos a Pazuello:

  • Ficar em silêncio , diante de perguntas que pudessem, “por qualquer forma, incriminá-lo”.
  • Ser assistido por advogado durante todo o depoimento.
  • Ser inquirido “com dignidade, urbanidade e respeito ”.
  • Não poder “sofrer quaisquer constrangimentos físicos ou morais, em especial ameaças de prisão ou de processo , caso esteja atuando no exercício regular dos direitos acima explicitados ”.

Para os senadores, a decisão garantiu a Pazuello um salvo-conduto para mentir sobre qualquer assunto e não ser preso. “[Ele] estava com o habeas corpus debaixo dos braços, que permitia que ele falasse o que quisesse e que nada poderia acontecer com ele ”, disse Aziz em entrevista ao canal no YouTube Rede TVT, neste sábado (22).

Segundo Aziz, na quarta-feira (16) a CPI irá votar uma nova convocação de Pazuello. O senador disse esperar que, dessa vez, o general não conte com as mesmas garantias. “Espero que a gente consiga trabalhar sem a ingerência do Supremo”, disse Aziz.

As discussões na CPI da Covid

O senador Marcos Rogério (DEM-RO) classificou Renan como “justiceiro” após o relator tentar prender Wajngarten. Ele disse em entrevista à CNN, no dia 12 de maio, que via naquele momento um “circo armado” contra as testemunhas convocadas.

Para a cientista política Carolina de Paula, diretora do Data-Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos), da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a estratégia do presidente da CPI é parte legítima de um esforço para entregar um relatório final dentro dos 90 dias inicialmente estabelecidos para os trabalhos.

“CPIs no Brasil costumam ser designadas por parte da imprensa e no imaginário público como instrumentos de espetacularização ou de inutilidade, e essa ideia pode ser explorada por Bolsonaro para enfraquecer a comissão”, disse Carolina de Paula ao Nexo . “Se a CPI começasse a decretar prisões, o tumulto que isso geraria poderia comprometer a produtividade das investigaçoes”, continuou.

O cientista político Manoel Leonardo dos Santos, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), afirmou ao Nexo que “muito mais efetivo do que prender alguém, dar um espetáculo, é quebrar o sigilo bancário ou telemático de alguns investigados ou depoentes”. “Essa é uma fonte de prova muito importante. Não chama tanto a atenção da opinião pública, mas muitas vezes vem daí a fundamentação de um eventual inquérito policial”, continuou.

A checagem dos fatos na CPI

Após o primeiro dia de depoimento de Pazuello, Renan afirmou na quinta-feira (20) que apresentou um requerimento à CPI para que a comissão contrate agências especializadas em checagem de fatos para ajudá-la a identificar o que é verdadeiro e o que é falso entre as declarações dos depoentes.

Esse tipo de trabalho já tem sido feito pelas agências desde o início da CPI, mas, se tornando institucionalizado dentro da comissão, “poderia servir para intimidar os falsos testemunhos, que temos visto com frequência”, segundo Carolina de Paula.

Em diferentes redes sociais, grupos não profissionais também têm se organizado para apontar mentiras de testemunhas e municiar os senadores , em tempo real, de contraprovas e perguntas.

Os parlamentares não escondem que estão fazendo uso do que recebem da internet. Renan, por exemplo, abriu no Instagram uma caixa de sugestões de perguntas para serem feitas para Pazuello durante a oitiva.

Para Manoel dos Santos, “vale a pena apostar na inovação” da contratação de agências de fact-checking. Ele destaca, porém, que as checagens feitas “não devem servir para fundamentar prisões, mas podem enriquecer e orientar o relatório final”.

Cristina Tardáguila, ex-diretora adjunta da IFCN (Rede Internacional de Checagem de Fatos, na tradução do inglês), na Flórida (EUA), afirmou em texto publicado no portal UOL que “numa eventual parceria, o próprio senador [Renan] também seria alvo de avaliação por parte dos checadores”. “O fact-checking profissional segue uma metodologia pré-determinada e pública. Tem obsessão por apartidarismo e repele dois pesos e duas medidas”, escreveu.

Checagens da Agência Lupa mostraram as inverdades e omissões, por exemplo, das declarações dos senadores Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luis Carlos Heinze (PP-RS), membros governistas da CPI, ao citarem estudos científicos inconclusivos e dados equivocados nas primeiras seis sessões da CPI . Eles defendiam o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes de forma precoce para o tratamento para a covid-19, como foi propagandeado pelo governo Bolsonaro.

ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto deixava de tratar do habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal a Pazuello. A informação foi acrescentada no dia 23 de maio de 2021, às 21h55.

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