Ministério paralelo da Saúde: qual o problema de sua existência
Estêvão Bertoni
07 de junho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h10)Senadores dizem haver evidências de que políticas de combate à pandemia do governo foram tomadas após aconselhamento informal. Advogada analisa possíveis violações legais
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Presidente Jair Bolsonaro e deputado Osmar Terra durante encontro com médicos
A CPI da Covid no Senado, que investiga as ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, tenta juntar provas de que o presidente Jair Bolsonaro tomou decisões na saúde baseadas em aconselhamentos extraoficiais ao ministério que cuida da área. Depoimentos de ex-integrantes do governo, como o do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, e vídeos antigos de reuniões do presidente com médicos alinhados ao governo reforçam a tese de que havia um “gabinete paralelo” que o auxiliava sobre o tema.
O Brasil é um dos líderes em casos e mortes por covid-19 no mundo. A insistência de Bolsonaro em negar a gravidade da doença, atacar políticas de distanciamento social e o uso de máscaras adotadas por governadores e prefeitos, além de apostar na livre circulação do vírus e em medicamentos ineficazes, como a cloroquina, negligenciando a compra de vacinas, é apontada por especialistas como o principal fator que fez do país um mau exemplo de gerenciamento da crise sanitária.
As ações encampadas pelo presidente são defendidas por médicos e pesquisadores (como Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto), que dariam escopo científico às suas decisões. O grupo foi formado ainda com a ajuda do ex-ministro e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), do empresário Carlos Wizard e do ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub. A seguir, o Nexo mostra quais as implicações para Bolsonaro da existência de um Ministério da Saúde paralelo.
O presidente nunca escondeu os encontros que teve com nomes apontados como integrantes do gabinete paralelo. Um levantamento de maio feito pela GloboNews a partir da agenda oficial de Bolsonaro mostra que ele esteve ao menos 17 vezes com Osmar Terra desde o início da pandemia.
Terra é alvo de críticas por ter previsto equivocadamente o fim da pandemia diversas vezes em suas redes sociais e por defender a tese da imunidade de rebanho, estágio a partir do qual a transmissão do vírus estaria controlada devido a existência de uma quantidade significativa de pessoas infectadas. Essa ideia implica um alto número de mortos.
Para Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em administração pública pela FGV (Fundação Getulio Vargas), a rigor, não há nada de ilegal quando o presidente da República pede um conselho informal para qualquer pessoa. Não haveria problema, portanto, nos quatro encontros que ele teve com a médica Nise Yamaguchi no Planalto, segundo as informações obtidas pela CPI.
O problema, segundo ela, está no fato de as políticas de governo se orientarem por esse aconselhamento informal.
“Como se trata de um tema de extrema relevância, como o da saúde, o presidente teria que executar políticas ou pelo menos coordenar políticas públicas no caso específico da pandemia, obviamente, com autoridades médicas e sanitárias oficiais, de renome nacional ou internacional”
Muitas das políticas adotadas pelo governo são bandeiras dos integrantes do gabinete paralelo. Bolsonaro esteve reunido com médicos que defendem o uso da cloroquina e de sua derivada hidroxicloroquina para tratar infectados pelo novo coronavírus. O remédio é usado há mais de 70 anos em doentes com malária, doença causada por um protozoário (e não um vírus, como a covid-19).
O medicamento não é indicado pela Organização Mundial de Saúde e pelas principais entidades médicas do Brasil e do mundo porque os estudos nunca demonstraram seus benefícios. Mesmo assim, Bolsonaro continua propagando o chamado tratamento precoce, que inclui ainda a azitromicina (antibiótico) e a ivermectina (antiparasitário).
O presidente determinou o aumento da produção da cloroquina pelos laboratórios das Forças Armadas e pressionou o Ministério da Saúde a emitir uma orientação para que médicos usassem a substância. Os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich foram contra o uso do tratamento como política de saúde e deixaram o cargo por isso.
Bolsonaro também defendeu publicamente a tese da imunidade de rebanho e se opôs às medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos. Ele chegou a contestar, sem sucesso, as restrições no Supremo Tribunal Federal, que garante desde 2020 a autonomia dos governos locais para desenhar suas políticas de combate ao vírus.
O presidente também incentivou aglomerações — ao participar de eventos públicos com apoiadores, desrespeitando os decretos locais — e não usa máscara em reuniões.
O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que a comissão já conseguiu juntar evidências suficientes, com apenas um mês de trabalho, para pedir ao Ministério Público a responsabilização de agentes públicos por crime sanitário e contra a vida.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no começo de junho, ele afirmou que Bolsonaro seguiu as orientações do gabinete paralelo. Por acreditar que o país conseguiria vencer a pandemia por meio da imunidade de rebanho, agiu para deixar o vírus circular livremente, atrasando a compra de vacinas. A defesa da cloroquina seria um meio de dizer à população que havia um tratamento disponível e que, por isso, não seria necessário fechar as atividades comerciais.
“Ele [Bolsonaro] se reunia muito mais com o gabinete paralelo do que com o ministro da Saúde, comportamento atípico em relação a qualquer líder mundial. Nem em uma republiqueta, que não tem absolutamente nada, o líder fica sem máscara, fica falando esse tipo de coisa. Vocês lembram que o Pazuello disse que se reunia com o presidente uma vez por semana, quiçá de 15 em 15 dias? Não se reunia com o ministro, mas se reunia naquele gabinete paralelo diariamente”
Para a advogada Vera Chemim, a CPI precisa, primeiro, provar que Bolsonaro agiu com base nas recomendações informais. Caso isso aconteça, o presidente poderia ter violado a “natureza do cargo”, segundo ela. “Ele estaria violando direitos ou garantias individuais previstas no artigo 5º da Constituição, no caso o direito à vida”, disse. Já o artigo 6º prevê a saúde como um direito social dos brasileiros.
Outra possível violação, na avaliação da advogada, ocorreria à lei 13.979/2020 , que disciplina as medidas que combatem o coronavírus e determina que algumas medidas sanitárias devem ser fundamentadas e se basear em recomendações técnicas.
Por atentar contra o livre exercício dos direitos individuais, Bolsonaro poderia ser enquadrado em crime de responsabilidade (que gera a abertura de um processo de impeachment), segundo a advogada. Neste caso, a denúncia pode ser apresentada por qualquer cidadão,mas precisa ser encaminhada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP_AL).
“Fora do ponto de vista político administrativo, ele [Bolsonaro] também poderia ser enquadrado no Código Penal, que seria um crime comum. Seria crime contra a saúde pública recomendar um medicamento que não está baseado em recomendação sanitária nacional ou internacional”
Já no caso do crime comum, para o presidente ser processado, a denúncia precisa ser oferecida pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi escolhido por Bolsonaro e tem tido atuação alinhada a ele. Aras já disse que a responsabilidade por apurar “eventuais ilícitos” de agentes da cúpula da Presidência seria de competência do Congresso. A acusação por crimes comuns também teria que ser aprovada por dois terços da Câmara para que o presidente fosse julgado pelo Supremo.
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