Expresso

Como Osmar Terra está ligado à tese da imunidade de rebanho

Fernanda Boldrin

22 de junho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h11)

Deputado tenta negar à CPI da Covid que tenha defendido a contaminação ampla da população. Mas fatos e sua própria fala na comissão apontam o contrário

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FOTO: PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO – 22.JUN.2021

O deputado Osmar Terra (MDB-RS) em depoimento à CPI da Covid no Senado

O deputado Osmar Terra (MDB-RS) em depoimento à CPI da Covid no Senado

Em depoimento à CPI da Covid na terça-feira (22), Osmar Terra (MDB-RS) negou que tenha defendido a imunidade de rebanho na pandemia no Brasil. Os fatos, porém, desmentem o deputado. E as próprias declarações dadas na comissão mostram que essa era uma agenda comum entre ele e o presidente Jair Bolsonaro.

Ex-ministro da Cidadania de Bolsonaro, Terra é um dos principais conselheiros do presidente no enfrentamento da covid-19. Uma das frentes da CPI apura se o governo agiu deliberadamente no alastramento do contágio a fim de que a população adquirisse anticorpos e, com isso, fosse possível abrir caminho mais rápido para a retomada da economia.

Neste texto, o Nexo explica por que a imunidade de rebanho é mortal, mostra o que Terra disse sobre o tema durante seu depoimento aos senadores e apontam as suspeitas que pesam contra o deputado.

A morte como revés da imunidade de rebanho

Também chamada de imunidade coletiva, a imunidade de rebanho consiste na ideia de que, a partir de um ponto em que há uma quantidade suficiente de pessoas imunes ao vírus, sua cadeia de transmissão é bloqueada e ele para de se disseminar. Isso poderia acontecer tanto pela imunização via vacina quanto pela imunidade adquirida pelo contágio. Quem sobrevive, fica mais resistente à doença.

O problema é que quando muitas pessoas se contaminam, os sistemas de saúde colapsam e o número de mortes é muito alto. Das pessoas que pegam o novo coronavírus, 80% se recuperam sem necessidade de tratamento hospitalar. Já 15% desenvolvem quadros graves e precisam receber oxigênio. Cerca de 5% ficam severamente doentes e precisam de tratamento intensivo, muitas delas morrem. Por isso que cientistas criticam o que veem como uma aposta do governo na imunidade de rebanho pela infecção.

“Atingir a imunidade de rebanho sem intervenção, ou seja, sem as vacinas, é deixar as pessoas à sua própria sorte genética. Ou seja, quem é resistente, tudo bem. Quem não é, morre. É isso que queremos? Não”

Jean Pierre Peron

Professor do departamento de imunologia da USP

Há também casos de reinfecção pelo coronavírus, e médicos e cientistas destacam ainda que um dos riscos de se apostar na imunidade de rebanho por meio da infecção é que isso abre brecha para o surgimento de novas variantes. “A alta circulação do vírus favorece o aparecimento de variantes que escapam da imunidade, tanto vacinal quanto natural”, disse ao Nexo Frederico Fernandes, médico pneumologista e presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia.

Professora associada do Departamento de Virologia do Instituto de Microbiologia da UFRJ, Luciana Costa diz que essa estratégia traz ainda o risco de “desestruturar todo o sistema de saúde”. “Você vai acumular um número muito grande de casos num curto espaço de tempo, e um grande número de pessoas que vai precisar acessar o sistema de saúde e que vai permanecer hospitalizado por muito tempo. Então isso é a fórmula para você acumular um número muito grande de mortes.”

As tentativas de negar os fatos

Em depoimento à CPI da Covid na terça-feira (22), Terra disse que não defendeu a imunidade de rebanho como uma estratégia, o que é mentira . Conforme um levantamento da agência de checagem Aos Fatos, o deputado fez ao menos 135 publicações no Twitter sobre esse tópico desde o início da pandemia, chegando a argumentar que as vacinas não seriam necessárias.

Os senadores que compõem o grupo majoritário da comissão não ficaram convencidos pela versão de Terra. Os parlamentares passaram vídeos em que o deputado defendeu essa tese para que o país chegasse ao fim da pandemia. “Não é a vacina que vai acabar com a pandemia. Quem vai acabar com a pandemia é a imunidade de rebanho”, disse ele num desses vídeos.

Durante a sessão, Terra seguiu dizendo que a imunidade de rebanho não foi adotada como uma “estratégia”, mas sim como uma “constatação”. “Há uma falha aqui em considerar a imunidade de rebanho uma estratégia. Nunca foi uma estratégia. É uma constatação de como termina uma pandemia. Isso está em todos os livros”, disse.

A declaração, porém, é contestada por cientistas. “Não existe exemplo de imunidade coletiva espontânea para varíola ou sarampo”, exemplificou ao Nexo Paulo Lotufo, epidemiologista e professor da USP.

Luciana Costa disse que “o fim das epidemias e das pandemias que existiram aconteceu graças a outras características, que podem incluir também o número de pessoas expostas que não estariam mais suscetíveis, mas incluem outros fatores”. Ela faz referência a fatores sociais e de saúde pública para limitar o espalhamento dos patógenos, por exemplo. “É uma falácia dizer que o final das epidemias é devido unicamente à imunidade de rebanho”, afirmou ao Nexo .

Costa disse ainda que, “mesmo que tenha se conseguido controlar uma situação endêmica ou epidêmica devido à infecção por um determinado patógeno, isso não acarretou que esse patógeno deixasse de circular na população, então sempre com potencial de gerar novas epidemias e pandemias. A gente só consegue de fato eliminar o risco quando a gente atinge um número de imunizados por vacinação”.

Os sinais que apareceram no depoimento

Apesar negar que tenha defendido a estratégia de contaminação geral, Terra acabou por reforçar a ideia. Ao repetir a tese negacionista de que o isolamento social não funciona. As medidas de restrição, ao contrário, foram responsáveis por quedas abruptas de contaminação onde foram adotadas na pandemia. Abrir mão do isolamento significa, na prática, o estímulo ao contágio.

Terra também mostrou gráficos de casos de covid-19 em Manaus e no Reino Unido. “Isso aqui é Amazonas. Tem um pico, reduz, fica zero seis meses. Isso significa que de alguma forma tem uma imunidade aqui na população. O comércio reabre, tal. Olhem o Reino Unido, mesma coisa”, disse ele, em referência ao primeiro pico da doença.

Contudo, nem os casos nem o número de óbitos no Amazonas chegaram a ficar zerados em nenhum período. O estado viveu dois colapsos no sistema de saúde e as pessoas morreram por falta de oxigênio nos hospitais, sufocadas. “Quanto a Inglaterra e Manaus essa interpretação [de imunidade de rebanho] é um equívoco”, disse ao Nexo Frederico Fernandes. “Nenhum local atingiu imunidade pelo vírus. A redução do contágio se deve a restrição de circulação, seja por lei ou por medo.”

Terra atribuiu o segundo pico da doença em Manaus à variante que surgiu na cidade, chamada de gama . O deputado foi confrontado pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), que também é médico.O senhor falou que depois das variantes é que se perdeu o controle. Não é verdade. O controle se perdeu por aquilo que vimos aqui. O senhor falando em imunidade de rebanho por contaminação”, disse Alencar.

Como a comissão mira o Planalto

Os senadores do grupo majoritário questionaram as declarações de Terra em diversos momentos. Declarações de vários dos parlamentares dão conta de que tanto o deputado quanto o governo agiram com base nessa tese, e buscam evidências disso.

“É importante dizer que no Brasil foi defendida sim uma teoria da imunidade naturalmente adquirida, coletiva, que se chamou de imunidade de rebanho. Coisa que jamais se alcançaria, porque, com 200 milhões de brasileiros, este caminho levaria a outras cepas, e mais cepas, e que nós precisávamos ter era vacina há mais tempo”, disse o senador Rogério Carvalho (PT-SE).

O que está na mira dos senadores é o aconselhamento de Bolsonaro com base nessa tese, a partir de uma estrutura paralela, que agia de forma alheia ao Ministério da Saúde. Terra negou à CPI a existência desse gabinete paralelo. Mas os senadores rebateram.

“Eu tenho certeza de que o presidente Bolsonaro não acordou um dia e falou ‘olha, imunização de rebanho é bom, tratamento precoce é bom’. Quem convenceu o presidente a isso?”, questionou o presidente da comissão.

Especialistas apontam que o problema não é o presidente pedir conselhos informais a determinadas figuras, mas sim orientar a política pública de saúde com base no assessoramento paralelo – e inclusive pouco transparente – que reforçou teses negacionistas .

Depois de dizer falsamente que a gestão da pandemia ficou a cargo de governos locais – uma tese repetida por Bolsonaro e já desmentida pelo Supremo Tribunal Federal -, Osmar Terra disse que “não tem poder sobre o presidente”. “Se eu tivesse esse poder, eu era o presidente e ele era deputado”, afirmou. “Isso não significa que tem gabinete paralelo, que tem estruturas paralelas.”

Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, rebateu mostrando vídeos com falas tanto de Bolsonaro quanto de Terra. “O senhor acha que a defesa veemente da imunidade de rebanho influenciou o presidente a defendê-la, inclusive com os mesmos números que o senhor citava?”, questionou. Os senadores também apontaram que Terra e Bolsonaro se reuniram ao menos 20 vezes em agendas oficiais.

Os senadores acusam Terra de ser “autor intelectual” de ações e omissões adotadas pelo governo na pandemia. “O presidente da república, quanto ignorou tentativas de vender vacina, estava baseado nessas previsões”, disse o senador Humberto Costa (PT-PE). “No mínimo, vossa excelência é autor intelectual de boa parte dos problemas que estamos vivendo hoje no Brasil”, disse ele a Osmar Terra.

Se concluírem que o deputado Osmar Terra agiu para incentivar o contágio da população com base na tese de imunidade de rebanho, os senadores podem pedir que ele seja responsabilizado no relatório final. Segundo especialistas, se ficar comprovado que Bolsonaro agiu com base em recomendações informais ou aderindo à tese de imunidade de rebanho, isso também pode ensejar responsabilização do presidente por crime comum ou de responsabilidade .

A CPIs não processam ou julgam , elas apenas investigam fatos determinados. Ao final dos trabalhos, os parlamentares podem aprovar um relatório com sugestões de indiciamento, por exemplo, e então encaminhá-lo à autoridade competente – em geral o Ministério Público. As informações coletadas também podem dar embasamento a pedido de processo de impeachment do presidente da República, no caso de haver indícios de crimes de responsabilidade.

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