Militares e centrão: um consórcio sob suspeita na Saúde
Isabela Cruz
05 de julho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h13)Ministério uniu dois setores-chave na sustentação de Bolsonaro durante a maior crise sanitária do século. Denúncias de propina agora se somam às acusações de má gestão
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Funcionários limpam fachada do prédio do Ministério da Saúde
Depois que a Organização Mundial de Saúde decretou estado de pandemia por causa da covid-19, em março de 2020, o governo do presidente Jair Bolsonaro deu início à ocupação do Ministério da Saúde por militares. Dois ministros médicos caíram até que o comando da pasta passasse às mãos do general Eduardo Pazuello, em maio daquele ano. Outros 21 cargos-chave foram parar nas mãos de fardados, tanto da ativa quanto da reserva.
Assim, os militares passaram a compartilhar a presença em postos importantes do ministério com indicados do centrão, grupo de parlamentares que dá sustentação ao governo em troca de espaço na máquina pública. Em julho de 2021, Pazuello já não está mais no cargo, mas o consórcio que reuniu militares e centrão está sob suspeita, diante de acusações de má gestão e revelações que apontam para possíveis irregularidades na compra de vacinas contra a covid, incluindo possíveis pedidos de propina.
Neste texto, o Nexo relembra o papel do centrão e dos militares na sustentação do governo Bolsonaro e mostra quem é quem, entre militares e centrão, nas suspeitas que envolvem integrantes e ex-integrantes do Ministério da Saúde e mobilizam a CPI da Covid no Senado.
Os militares têm papel central na história política do Brasil, da Proclamação da República a outros golpes que mudaram governos e regimes. Num dos momentos agudos mais recentes, tomaram o poder à força em 1964, destituindo o então presidente João Goulart e impondo uma ditadura que duraria 21 anos no Brasil.
Os agentes de estado, assim como os generais que comandaram o Brasil no período, nunca responderam legalmente aos crimes políticos cometidos na ditadura, entre os quais assassinatos e torturas. Diferentemente do que ocorreu em vizinhos da América do Sul, onde militares foram condenados e presos, a Lei da Anistia garantiu imunidade aos fardados brasileiros.
No período da redemocratização, os militares se recolheram aos quartéis. No governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foi criado um Ministério da Defesa, a ser ocupado por um civil, para coordenar as Forças Armadas. No governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), generais brasileiros comandaram uma missão de paz importante das Nações Unidas no Haiti.
A relação com os governos petistas, porém, se abalou com a aprovação da criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2010, e sua posterior instalação no governo Dilma Rousseff (2011-2016). Mesmo sem poder de punição, a comissão investigou e divulgou os crimes do regime militar, algo que desagradou aos generais.
Diante das denúncias de corrupção da Lava Jato, da recessão econômica, do crescente antipetismo e da desarticulação no Congresso, Dilma sofreu impeachment em 2016. O vice Michel Temer assumiu alinhado aos militares, colocando pela primeira vez um general da reserva no comando do Ministério da Defesa, Joaquim Silva e Luna.
Temer também promoveu uma intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro, nomeando como interventor o então general da ativa Walter Braga Netto. O poder militar sobre a segurança do estado selou um período de crescente participação militar no combate à violência urbana, que vinha já de governos anteriores com as Operações GLO (Garantia da Lei e da Ordem).
Em 2018, sob anuência do alto comando do Exército, o então chefe da tropa, general da ativa Eduardo Villas Bôas, pressionou publicamente o Supremo Tribunal Federal para que Lula, que liderava as pesquisas eleitorais, fosse para a cadeia.
Com a eleição de Bolsonaro naquele mesmo ano, os militares, que apoiaram o ex-capitão do Exército, alcançaram uma ampla participação em cargos federais, do primeiro escalão a postos inferiores, num total de mais de 6.000 vagas de caráter civil.
O centrão é um bloco informal de parlamentares conhecido por unir diversos partidos a fim de ter maior poder de barganha frente ao governo federal e assim garantir mais acesso ao orçamento público, via emendas, além de cargos na máquina federal. Em troca, o bloco costuma prometer apoio em projetos de interesses do governo e votos necessários para impedir avanços de impeachment.
A questão que difere o centrão de qualquer outro grupo político é que ele não tem preferência ideológica, tampouco identificação programática. Independentemente da linha de quem esteja no poder, seus integrantes tendem a compor com o presidente. Por isso, o centrão é comumente identificado com o fisiologismo.
Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 e 1988, já havia um centrão, naquela oportunidade defendendo uma agenda mais conservadora na elaboração da lei máxima do país. Houve depois outras versões do centrão.
Num de seus momentos de maior força, o grupo se reuniu em torno do então deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) a partir de 2015 para comandar uma rebelião na base de apoio da então presidente Dilma Rousseff e aprovar seu impeachment no ano seguinte, com apoio da oposição.
Apesar do nome centrão, o bloco é de partidos e parlamentares mais alinhados à direita do espectro político. Atualmente, é integrado por PP (ou Progressistas), PL, Republicanos, Solidariedade, Avante, PTB e PSD. Juntos, essas legendas somam 182 deputados em exercício , entre um total de 513 na Câmara.
O grupo, porém, não se limita a parlamentares apenas desses partidos. Há integrantes do DEM e do MDB, por exemplo, que atuam conjuntamente ao centrão. Ao todo, trata-se de uma força que gira em torno de 200 deputados. Um número capaz, por exemplo, de barrar o avanço de qualquer pedido de impeachment contra o presidente.
A pessoa responsável pelo pontapé inicial de qualquer julgamento de crime de responsabilidade presidencial, aliás, é um dos principais líderes do centrão, o deputado federal Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara eleito em fevereiro de 2021 com o apoio de Bolsonaro.
Bolsonaro, que foi eleito em 2018 atacando o centrão e defendendo o que chamava de uma “nova política”, fechou acordos com o grupo em 2020, passando a ceder a ele cada vez mais espaço na máquina pública, assim como benesses na distribuição de verbas públicas.
Para além dos inquéritos e ações por improbidade administrativa aos quais o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello responde por má gestão da crise sanitária, há duas frentes que são foco atualmente da CPI da Covid no Senado.
A primeira é o caso Covaxin, que envolve suspeitas de irregularidades na tentativa de compra do imunizante indiano. O deputado Luis Cláudio Miranda (DEM-DF) e seu irmão Luis Ricardo Miranda, servidor da Saúde, dizem ter havido pressão dentro do ministério para que o negócio fosse fechado.
Eles ainda dizem ter alertado Bolsonaro sobre irregularidades, que passam pelo alto preço cobrado por dose e pela intermediação do negócio, feita pela empresa brasileira Precisa Medicamentos. O presidente já virou alvo de um inquérito no Supremo sob suspeita de que tenha prevaricado, ou seja, não tenha agido após os alertas.
A Precisa Medicamentos, do empresário Francisco Maximiano, já foi alvo de suspeitas de irregularidades em negócios com o governo quando Ricardo Barros, deputado federal pelo PP do Paraná e atual líder do governo na Câmara, foi ministro da Saúde durante o governo Michel Temer. Após as suspeitas se tornarem públicas, o governo Bolsonaro suspendeu a compra da Covaxin.
A segunda frente envolve declarações feitas ao jornal Folha de S.Paulo pelo o PM que faz bico como vendedor de vacinas Luiz Paulo Dominguetti. Apresentando-se como representante da empresa Davati Medical Supply, que teria uma grande oferta de vacinas para o governo, ele disse ter ouvido em fevereiro de 2021 um pedido de propina do então chefe do departamento de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias.
O pedido, segundo o policial, era de US$ 1 dólar de propina por dose do imunizante de Oxford/Astrazeneca, num total de 400 milhões de doses ofertadas. O negócio pouco crível, da oferta aos valores envolvidos, não foi fechado. O laboratório algo-sueco, que já tinha um acordo com o governo brasileiro, alertou que não vende vacinas por intermediários.
Nas duas frentes que agora são alvos da CPI da Covid no senado, aparecem tanto militares quanto integrantes do centrão. Veja abaixo quem são eles.
GENERAL EDUARDO PAZUELLO
O general da ativa foi ministro da Saúde de maio de 2020 a março de 2021, período em que os episódios suspeitos teriam ocorrido. Dominguetti disse ter ouvido na reunião de fevereiro de 2021 com Roberto Dias que, “para trabalhar dentro do ministério, tem que compor com o grupo”. Pazuello já afirmou que, enquanto ministro, foi pressionado por uma “liderança política” para atender a demandas orçamentárias, sem esclarecer a quem se referia. O general também disse que “todos querem um pixulé no fim do ano”. Pixulé costuma ser usado como sinônimo de propina.
CORONEL ÉLCIO FRANCO
Dominguetti afirmou que também procurou Élcio Franco, então secretário-executivo do Ministério da Saúde, mas as tratativas para a venda de vacinas não avançaram. No caso Covaxin, Pazuello alegou à Procuradoria-Geral da República que teria repassado as suspeitas para o coronel Écio Franco apurar . Não foram apresentadas evidências de que a apuração tenha acontecido.
TENENTE-CORONEL MARCELO BLANCO
Segundo Dominguetti, o tenente-coronel Marcelo Blanco estava presente no jantar em que a propina teria sido pedida por Roberto Dias. O militar foi exonerado do cargo de assessor no departamento de logística do Ministério da Saúde em janeiro de 2021. Após a denúncia de Dominguetti vir a público, ele perdeu outras funções que exercia no ministério.
CORONEL ALEXANDRE MARTINELLI
Dominguetti também disse que uma terceira pessoa, da qual ele não se recorda bem, estava presente no jantar. Ao ver uma foto do coronel Alexandre Martinelli, o PM que faz bico como venderor de vacinas disse acreditar ser ele, que já fez parte do Ministério da Saúde. Martinelli nega que tenha participado da reunião.
TENENTE-CORONEL MARCELO PIRES
Diretor responsável pela coordenação do Plano Nacional de Operacionalização das Vacinas, ligado a Élcio Franco, o coronel Marcelo Pires aparece como uma das pessoas que teriam feito pressão para que o negócio da Covaxin, intermediado pela Precisa Medicamentos, fosse fechado.
TENENTE-CORONEL ALEX MARINHO
Coordenador-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, o tenente-coronel também é apontado como alguém que tenha pressionado pela compra da Covaxin.
RICARDO BARROS
Seu nome aparece várias vezes no caso Covaxin. Primeiro, os irmãos Miranda afirmam que Bolsonaro, ao ser alertado sobre os problemas do contrato, teria dito serem “mais um rolo” de Ricardo Barros. Segundo, a revista Crusoé diz que Barros estava na reunião em que o deputado Luis Claudio Miranda recebeu uma oferta de propina para que não atrapalhasse a compra da Covaxin. Terceiro, Barros é autor de uma emenda a uma medida provisória que facilitava a aquisição do imunizante. Quarto, ele foi apontado como responsável pela nomeação de uma servidora que, segundo depoimento dos Miranda, deu aval ao prosseguimento da compra mesmo com divergências em relação ao contrato. Quinto, ele é apontado como padrinho político de Roberto Dias, que teria pedido propina a Dominguetti. Barros nega o apadrinhamento e também ter participado de ilegalidades.
ROBERTO DIAS
Ele teria pedido, num jantar no dia 24 de fevereiro de 2021, propina de US$ 1 por cada uma das centenas de milhões de doses de vacina que seriam fornecidas pela Davati, segundo afirmou à Folha e à CPI Dominguetti. Dias era o então diretor de Logística do Ministério da Saúde e é apontado como apadrinhado de Ricardo Barros. Dias perdeu o cargo no ministério após a denúncia vir a público. Ele nega que tenha pedido propina e se diz alvo de uma armação.
ARNALDO DE MEDEIROS
Secretário de Vigilância em Saúde do ministério, Arnando de Medeiros fez a primeira reunião com integrantes da Precisa Medicamentos para a compra da Covaxin, em novembro de 2020. Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, ele teria sido indicado ao cargo pelo deputado Wellington Roberto (PL-PB), integrante do centrão.
ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto afirmava que a ditadura militar durou 12 anos, em vez de 21 anos, como ocorreu. A informação foi corrigida às 9h56 do dia 5 de julho de 2021.
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