Expresso

Como o racismo se conecta à mudança climática

Mariana Vick

04 de novembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h31)

Movimento negro brasileiro vai pela primeira vez à COP, conferência do clima da ONU, para debater danos desproporcionais do aquecimento global sobre populações não brancas

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FOTO: ALICE MCCOOL/REUTERS – 24.MAI.2019

Mulher negra e jovem segura cartaz que diz, em inglês: "emergência climática agora". Ela encara séria a câmara. Há outros jovens e crianças ao redor dela.

Flavia Nakabuye, ativista pelo clima em Kampala, Uganda

Em meio às negociações da COP26 , que duram até 12 de novembro em Glasgow, na Escócia, ativistas do movimento negro brasileiro debatem pela primeira vez na conferência do clima da ONU, nesta sexta-feira (5), ações de combate ao mesmo tempo do racismo e da mudança climática .

Organizado pela Coalizão Negra por Direitos, o debate deve tratar de temas como o racismo ambiental, que torna os efeitos da crise climática desproporcionalmente mais graves para as populações negras, e o papel do movimento nas decisões sobre o clima.

O Nexo explica o que é racismo ambiental, como a mudança climática aprofunda desigualdades raciais e quais são as propostas do movimento negro na COP26. Mostra também as críticas sobre a falta de diversidade no evento em Glasgow.

O que é racismo ambiental

Cunhado por Benjamin Chavis, reverendo americano e assistente de Martin Luther King Jr. no movimento por direitos civis nos EUA, o racismo ambiental é o mecanismo pelo qual os piores efeitos da degradação ambiental acabam destinados às populações negras ou indígenas.

A expressão surgiu em meio a pesquisas e ao ativismo sobre outro fenômeno, a injustiça ambiental, segundo a qual, em sociedades desiguais, há desequilíbrio no acesso aos recursos ambientais e na carga dos danos do desenvolvimento para grupos marginalizados.

FOTO: MIKE HUTCHINGS/REUTERS

Mulher pega água para lavar após a passagem do Ciclone Idai, em Buzi, próximo a Beira, em Moçambique

Mulher pega água após a passagem do Ciclone Idai, em Buzi, próximo a Beira

Em 1978, em um dos casos que deram impulso ao movimento americano por justiça ambiental, por exemplo, moradores do bairro de Love Canal, em Nova York, descobriram que suas casas haviam sido construídas junto a um aterro com dejetos industriais e bélicos.

Em outros países, como o Brasil, áreas de população majoritariamente negra, como as comunidades nas cidades, são mais sujeitas a efeitos da poluição hídrica, do despejo de lixo e dos eventos climáticos extremos, como inundações, que nesses locais podem causar deslizamentos.

Douglas Belchior, historiador e cofundador da Uneafro Brasil, um dos representantes da Coalizão Negra por Direitos na COP26, afirmou ao Nexo que o debate sobre racismo ambiental é fundamental, embora sem ampla adesão entre ambientalistas no Brasil.

FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS-19.5.20

Cachorro deitado em primeiro plano, vista de barracos de madeira e duas pessoas sentadas em um degrau, uma com máscara facial e outra sem

Moradores da favela de Educandos, em Manaus, durante a pandemia de coronavírus

Para ele, “a organização da sociedade moderna está assentada sobre o racismo. Em um Estado racial de supremacia branca, de racismo anti-negro ou anti-povos indígenas, tudo que decorre da ação do Estado é racista. E a relação com o ambiente também”.

Na conferência da ONU, o movimento deve levar o tema para interlocutores e pedir por justiça ambiental para as populações negras no contexto da mudança do clima. Com justiça ambiental, segundo defensores do termo, pode-se chegar também à justiça social.

“O debate climático sempre foi ocupado, majoritariamente, pelos brancos — o que acreditamos ser um erro, uma vez que sabemos quem é mais impactado pela emergência climática: as populações vulnerabilizadas pelas políticas sociais e econômicas que provocam desigualdades”

Douglas Belchior

historiador e cofundador da Uneafro Brasil, em entrevista ao Nexo

O debate sobre clima e desigualdade

Apesar de a mudança climática atingir a todos, a ligação entre o fenômeno e as desigualdades não é nova . Além de populações negras, mulheres, moradores de países pobres e pessoas de baixa renda em países ricos sentem de forma desproporcional os efeitos da crise.

Em relatório lançado em agosto de 2021, a organização Anistia Internacional definiu que a crise climática não é só uma crise ambiental, mas de direitos humanos , cujas consequências são injustas entre diferentes países, populações e gerações.

FOTO: RAHEL PATRASSO/REUTERS – 10.02.2020

Carro boia ao fundo em inundação e no primeiro plano à esquerda homem se protege colocando cesto de carrinho de compras sobre a cabeça

Homem se protege da chuva em meio a uma via inundada em São Paulo

Entre os direitos prejudicados pelos efeitos da mudança do clima, estão o direito à vida (pessoas podem morrer por conta de eventos climáticos extremos, como ondas de calor), à saúde, à água, à alimentação, à moradia, à autodeterminação e ao trabalho, segundo o texto.

Os principais exemplos do quadro de desigualdade estão em algumas das populações mais afetadas por eventos extremos , como a de Moçambique , que em 2019 viveu sua pior crise humanitária após um ciclone, ou de Madagascar , vítima da primeira fome ligada ao aquecimento global.

Outro aspecto da relação entre desigualdade e clima está nas emissões de carbono de cada país ou grupo social. De 1990 a 2015, os 10% mais ricos foram responsáveis por mais da metade das emissões globais, enquanto os 50% mais pobres, por 7%, segundo a Anistia Internacional.

Os países mais poluentes

Gráfico mostra emissões de CO2 nos dez países mais poluidores em 2018. China está na frente, com 12,3 bilhões de toneladas. Em seguida estão EUA (6 bilhões), União Europeia (3,5 bilhões), Índia, Rússia, Japão, Brasil (1 bilhão), Indonésia, Irã e Canadá.

Além de evidenciar as desigualdades, a mudança climática as aprofunda. Países pobres que vivem desastres naturais têm mais dificuldade para se recuperar que os ricos, por exemplo. Com frequência, faz-se um paralelo entre as desigualdades da mudança climática e as da crise da covid-19 .

FOTO: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Uma mulher caminha por uma rua. Ao lado, há um córrego sujo, um esgoto a céu aberto, também poluído com lixo.

Esgoto a céu aberto

Enfrentar essas disparidades está entre as principais demandas de ativistas na COP26. Entre os temas centrais do evento, está a definição do financiamento climático , que pode transferir dinheiro de países ricos para ações contra a mudança do clima nas regiões mais pobres.

O que o movimento propõe na COP26

Além do racismo ambiental, os principais temas que a Coalizão Negra por Direitos deve defender na COP26 são o desmatamento zero nas florestas brasileiras e a titulação de terras quilombolas, consideradas essenciais para o combate à mudança do clima.

O país tem hoje mais de 3.000 comunidades quilombolas, compostas por descendentes de escravizados que fugiram da exploração no período da escravidão, segundo a Fundação Cultural Palmares. Cerca de 13% das terras onde vivem estão regularizadas.

189

territórios quilombolas foram regularizados, dos quais 52 estão apenas parcialmente titulados

1.486

territórios estão com processo de titulação em aberto no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)

Junto com as terras indígenas , esses territórios contribuem para a preservação de florestas , segundo estudos. Com ênfase no extrativismo e na agricultura de subsistência, o modo como os quilombolas usam os recursos naturais não exige o desmatamento de áreas verdes.

Consideradas um direito pela Constituição Federal, as terras quilombolas são certificadas pela Fundação Cultural Palmares e regularizadas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Estados e municípios também podem fazê-lo.

FOTO: CARLOS PENTEADO/REPRODUÇÃO/CPI-SP

Quilombolas de Oriximiná transportam castanhas, sua maior fonte de renda, pelo rio Trombetas

Quilombolas de Oriximiná transportam castanhas, sua maior fonte de renda, pelo rio Trombetas

A Coalizão Negra por Direitos defende que as terras com processo de titulação em aberto sejam regularizadas nesta década, como propõe a Agenda 2030 . Com a titulação, é possível garantir proteção ambiental e a segurança das comunidades, segundo eles.

Para Belchior, a defesa das terras quilombolas também está ligada à criação de outro modo de vida para enfrentar a crise climática, baseado no que “vem dos quilombos, das aldeias e povos originários e das cidades no papel das matrizes africanas”.

“Os quilombos eram um lugar de produzir vida, inclusive a partir da terra, ter autonomia sobre o que queremos comer e como viver”, acrescentou o historiador ao Nexo . Segundo ele, o combate à mudança do clima também deve incluir o combate ao colonialismo.

A falta de diversidade na COP26

Apesar do aumento da preocupação com a mudança climática e sua relação com as desigualdades, a COP26 deve ser a mais branca e privilegiada de todas as edições, segundo ativistas que falaram no fim de outubro com o jornal britânico The Guardian.

Representantes da sociedade civil afirmam que colegas de países do Sul global desistiram de ir à Escócia por conta de problemas para adquirir vistos, credenciamento no evento e hospedagem em Glasgow e pelafalta de acesso a vacinas contra a covid-19, exigidas no Reino Unido.

Em 2021, as restrições no Reino Unido mudaram repetidas vezes para viajantes do exterior, segundo o The Guardian. Até outubro, a chamada “lista vermelha” do governo britânico incluía uma série de países que estão entre os mais atingidos pela mudança do clima.

FOTO: RUSSELL CHEYNE/REUTERS – 28.10.2021

Pessoa de máscara segura cartaz laranja. Atrás dela, há uma chama de fogo feita de papel. Ela segura um sinalizador.

Ativista protesta contra a mudança climática às vésperas da COP-26, em Glasgow, Escócia

Criticando a logística da COP26, uma ativista afirmou ao The Guardian que o evento “será esmagadoramente branco e rico este ano”. “Dada a participação muito menor do Sul [global], a COP26 não conseguirá nos aproximar da justiça climática”, disse outra.

Segundo um porta-voz do evento, o governo do Reino Unido estava “trabalhando incansavelmente” com o governo escocês e a ONU para “garantir uma cúpula inclusiva, acessível e segura”, ao mesmo tempo que buscava mitigar o contágio pela covid-19 durante a conferência.

Este conteúdo é parte da Cobertura Especial sobre a COP26, que tem o apoio da FES Brasil, fundação política alemã para a promoção da democracia inclusiva, da economia sustentável e da justiça social.

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