Expresso

Qual a relação entre a ômicron e a desigualdade vacinal

Estêvão Bertoni

29 de novembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h33)

Mutação do vírus que potencialmente tem maior capacidade de transmissão foi identificada na África, onde apenas 7% da população recebeu as duas doses

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FOTO: TIKSA NEGERI/REUTERS – 13.MAR.2021

Mulher de máscara cirúrgica levanta a manga da blusa e olha para profissional de saúde com luvas de borracha que aplica vacina em seu braço esquerdo

Mulher recebe vacina da AstraZeneca enviada pelo consórcio Covax, da OMS, em hospital na Etiópia

O aparecimento da ômicron , nova cepa potencialmente mais contagiosa do novo coronavírus, escancarou o problema da desigualdade global na distribuição das vacinas contra a covid-19. Desde o início das campanhas de imunização, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, autoridades de saúde já vinham alertando para a necessidade de um cenário de equidade de acesso às doses para o controle da pandemia.

A ômicron, que apresenta mais de 30 mutações na proteína usada pelo vírus para entrar nas células humanas, foi descoberta na quarta-feira (24) e considerada uma variante preocupante pela OMS (Organização Mundial da Saúde) dois dias depois. União Europeia e países como Estados Unidos e Brasil suspenderam voos do sul da África, onde ela foi identificada. Na segunda-feira (29), o diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom, disse que a cepa irá se espalhar pelo mundo representando um risco “muito alto” de surtos e com “consequências graves” para alguns países, principalmente os com baixa cobertura vacinal.

Neste texto, o Nexo mostra por que o surgimento de uma variante mais transmissível já era considerada provável por pesquisadores, como a desigualdade na distribuição vem impactando a vacinação na África e quais as barreiras na região que dificultam o controle da doença.

A vacinação desigual

Dados da OMS mostram que, até o final de novembro, os países pobres só haviam conseguido vacinar 3% de suas populações com duas doses. Enquanto isso, 60% dos habitantes das nações com alta renda tinham completado o esquema vacinal.

“Todos os dias, para cada vacina aplicada como primeira dose nos países mais pobres, seis são administradas como terceira dose ou dose de reforço nas partes mais ricas do mundo”, escreveu na sexta-feira (26) o ex-primeiro-ministro do Reino Unido Gordon Brown, que é embaixador para o Financiamento Global da Saúde da OMS, em artigo publicado no jornal britânico The Guardian.

“A desigualdade vacinal é a principal razão pela qual a OMS prevê 200 milhões de novos casos, além dos 260 milhões até agora. E, depois de 5 milhões de mortes por covid-19, outras 5 milhões são consideradas possíveis no próximo ano”

Gordon Brown

ex-primeiro ministro britânico, na sexta-feira (26)

Em seu artigo, Brown lembra que o problema não se deve à falta de vacinas produzidas no mundo. Até o final de 2021, os laboratórios devem ter alcançado a marca de 12 bilhões de doses, o que seria suficiente para vacinar quase toda a população mundial. O entrave está no fato de que os países do G20 monopolizaram 89% dessas vacinas, e 71% das próximas entregas estão previstas para os mesmos países.

53%

da população mundial havia recebido ao menos uma dose da vacina contra a covid-19 até o final de novembro, segundo o site Our World in Data

7

é o número de doses disponíveis para cada 100 habitantes nos países pobres, enquanto a mesma taxa chega a 147 nos países ricos, de acordo com o Our World in Data

Os países ricos prometeram fazer doações, mas pouco entregaram até novembro. Em junho, por exemplo, os Estados Unidos anunciaram que doariam 500 milhões de doses a 92 países de baixa e média renda. Apenas um quarto das vacinas prometidas foram entregues até o final do mês. Já a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá só haviam entregue, no mesmo prazo, 19%, 11% e 5% do prometido, respectivamente.

O consórcio Covax Facility, coordenado pela OMS, também fracassou em seus objetivos, garantindo apenas dois terços das 2 bilhões de vacinas esperadas pelos países pobres. Na segunda-feira (29), em resposta ao surgimento da ômicron, a China anunciou que enviará 1 bilhão de doses para a África, mas sem anunciar prazos.

‘Vergonha para a humanidade’

Quando os países ricos, como os Estados Unidos, começaram a discutir a aplicação de doses de reforço, ainda em agosto de 2021, a OMS chamou a estratégia de imoral devido à escassez de doses nos países pobres, que estavam ficando para trás.

Diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom chamou de “ vergonha para toda a humanidade ” a desigualdade na distribuição das vacinas e disse que o vírus precisa ser atacado de maneira conjunta por todos — com o risco de a pandemia se prolongar por anos quando poderia ser controlada em questão de meses.

Na época, o chefe do Programa de Emergências da organização, Mike Ryan, referiu-se ao assunto como uma questão ética, dizendo que a estratégia deixaria milhões de pessoas em todo mundo sem proteção contra a covid-19.

“Nós estamos planejando distribuir coletes salva-vidas extras às pessoas que já estão de coletes salva-vidas, enquanto estamos deixando outras pessoas afundarem”

Mike Ryan

chefe do Programa de Emergências da OMS, em agosto de 2021

O surgimento da ômicron

Desde a identificação das primeiras variantes, no final de 2020, epidemiologistas já apontavam para o risco do surgimento de novas mutações que poderiam ameaçar inclusive os países com a vacinação em estágio mais avançado, devido à capacidade dessas cepas de escapar da proteção adquirida por meio dos imunizantes.

Em entrevista ao Nexo , em janeiro de 2021, ao explicar o aparecimento da variante gama, em Manaus, associada à onda que atingiria fortemente o Brasil entre março e abril, o doutor em medicina tropical Joaquín Carvajal, que é pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Amazônia, ressaltou que, a cada transmissão de uma pessoa a outra, o vírus sofre mutações.

“Nesse processo evolutivo, são selecionados os que conseguem se adaptar mais e que se espalham melhor entre a população. As mutações do novo coronavírus ainda acontecem de forma mais lenta do que outros vírus, mas esse processo depende das pessoas. Se elas continuam saindo ou não aderindo às medidas de contenção, essa taxa de mutação acelera”, afirmou.

Com a desigualdade global na distribuição de doses, a África tornou-se o continente com a vacinação mais atrasada. Até o final de novembro, apenas o Marrocos e a Tunísia haviam conseguido aplicar ao menos uma dose em mais da metade da população.

7%

da população da África havia completado o esquema vacinal até o final de novembro, segundo dados do Our World in Data

A República Democrática do Congo, por exemplo, ainda está longe de alcançar 1% de vacinados com uma dose. Na África do Sul, onde a ômicron foi descoberta, só 24% da população está com o esquema vacinal completo. Em Botsuana, onde a variante também foi detectada, esse número é de 20%.

Por causa disso, o novo coronavírus ainda tem circulado livremente no continente. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no sábado (27), o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, destacou que a “única maneira” de vencer a covid-19 é “atuarmos coletivamente”.

“Não adianta vacinar 70% da população em alguns países da Europa, América do Norte e menos de 10% da população da África. Isso faz com que o vírus siga circulando nos locais com baixa vacinação, facilitando o surgimento de variantes. E essas variantes rapidamente podem (e vão) se espalhar mesmo nos países com altas taxas de vacinação”

Pedro Hallal

epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, no sábado (27)

Segundo ele, “ou o mundo prioriza a equidade vacinal, ou a covid-19 continuará a ser essa montanha-russa com altos e baixos por muitos anos”.

Os obstáculos à vacinação

Com o objetivo de controlar a transmissão do novo coronavírus e caminhar para o fim da pandemia de covid-19 no mundo, a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a ONU (Organização das Nações Unidas) lançaram em outubro um plano para acelerar a vacinação de maneira igualitária em todos os países. O custo seria de US$ 8 bilhões e o plano teria como objetivo vacinar 40% da população de cada país até o final de 2021, e 70% até junho de 2022. Mas a meta está cada vez mais distante.

As dificuldades para a ampliação da cobertura vacinal na África envolve outras questões além da desigualdade na distribuição das doses. O responsável pelo programa de vacinação de Uganda, Alfred Driwale, lembrou à revista inglesa The Economist, no sábado (27), que a média de idade da população dos países africanos é muito baixa. Como a doença mata mais os idosos, é difícil convencer os jovens da importância de se proteger por meio de campanhas públicas de saúde. Em Uganda, por exemplo, metade da população é formada por crianças.

Outros fatores também são vistos como obstáculos:

  • A pandemia de covid-19 interrompeu a vacinação de outras doenças , como sarampo e tétano, e os países africanos precisam dividir a estratégia de combate ao coronavírus com outras campanhas de imunização.
  • A vacinação contra a covid-19 tem exigido um uso maior de seringas e agulhas , em alguns casos até 25% acima do usual, o que afeta os estoques dos países.
  • A covid-19 tem sido menos letal na África devido à baixa incidência de comorbidades como diabetes e obesidade e à alta taxa de imunidade natural adquirida pela própria infecção (no Mali, 60% tinham anticorpos já em janeiro de 2021), o que dificulta o convencimento das pessoas sobre a gravidade da doença.

A hesitação e a validade das doses

Em outubro, os países africanos passaram a ter mais acesso às vacinas contra a covid-19, quando cerca de 50 milhões de doses foram enviadas ao continente. Mas em alguns países, mesmo com a disponibilidade dos imunizantes, as campanhas emperraram.

Um dos problemas tem sido a hesitação vacinal, que atinge também países europeus e os Estados Unidos. Um levantamento feito em 15 países africanos pelo Afrobarometer, um centro de pesquisa de opinião pública divulgado pela The Economist, no sábado (27), mostrou que 39% dos entrevistados disseram acreditar que orações e rezas são muito mais eficientes que a vacinação para prevenir a covid-19.

Na África do Sul, por exemplo, a dificuldade em aplicar as doses devido à recusa da população em se vacinar fez o país pedir às farmacêuticas Johnson & Johnson e Pfizer que suspendessem o envio dos imunizantes por já ter muitas doses em estoque que poderiam ser desperdiçadas.

Há também a baixa confiança nos governos locais e a circulação de notícias falsas pelo WhatsApp — ou mesmo por meio das rádios locais — que atribuem às vacinas a capacidade de tornar pessoas estéreis, por exemplo.

Países também reclamam que têm recebido as doações de doses perto do vencimento. Cerca de 90 milhões de doses já foram enviadas ao continente, mas muitas delas precisam ser aplicadas em até duas semanas, o que é considerado inviável. Organizações africanas de saúde pública dizem que isso torna “extremamente difícil” planejar campanhas de vacinação.

O Malawi, por exemplo, precisou destruir cerca de 20 mil doses da vacina da AstraZeneca que haviam vencido. Já a República Democrática do Congo, embora tenha recebido 1,7 milhão de vacinas, também reconheceu que não conseguiria aplicá-las no prazo, e devolveu as doses ao Covax Facility, que as remanejou para países como Gana e Madagascar.

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