O Telegram no centro das preocupações nas eleições de 2022
Cesar Gaglioni
21 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 23h23)Aplicativo russo com pouca moderação de conteúdo está na mira do Tribunal Superior Eleitoral, que avalia até mesmo bloquear seu uso no Brasil
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Logotipo do aplicativo de mensagens Telegram, lançado em 2013
Se em 2018 o WhatsApp foi visto como o grande polo de divulgação de desinformação eleitoral, em 2022 o protagonista da vez é o Telegram, aplicativo russo concorrente que tem como um de seus principais valores uma baixíssima interferência sobre o conteúdo de seus usuários.
O medo é tamanho que na quarta-feira (19) foi divulgado que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estuda bloquear o uso do aplicativo no país no ano em que ocorrem as eleições presidenciais. A medida é controversa e preocupa especialistas e pesquisadores da área do direito digital.
Neste texto, o Nexo relembra a trajetória do Telegram e explica por que ele desperta tantos temores.
No ar desde 2013, o Telegram foi fundado pelos irmãos russos Nikolai e Pavel Durov. Em 2006, eles haviam lançado no mercado a rede social VK, mas ficaram cada vez mais descontentes com um projeto que, segundo eles, tinha sido “ sequestrado por aliados do presidente Vladimir Putin”.
Decididos a não dar espaço para o controle ou interferência de governistas, os irmãos Durov desenharam o Telegram de forma que o aplicativo fosse uma plataforma de mensagens com pouca moderação e com garantia de privacidade dos usuários.
Por isso, o Telegram não fornece endereços de seus escritórios nem apresenta ao público geral informações sobre as disposições legais da empresa – que, apesar de não ser estruturada como uma organização sem fins lucrativos, na prática funciona como tal, já que não há nenhuma forma de monetização do app, seja com mensalidades, seja com propagandas.
Com essas premissas, o crescimento do Telegram foi exponencial em todo o mundo.
15%
era o percentual de smartphones no Brasil que tinham o Telegram instalado em 2018, segundo pesquisa Mobile Time/Opinion Box
53%
era o percentual de smartphones no Brasil que tinham o Telegram instalado em outubro de 2021
As premissas que fundaram o Telegram remontam aos primórdios da internet e da computação pessoal.
O programador britânico Tim Berners-Lee, criador da internet, poderia ter transformado sua principal criação em um negócio bilionário, ou até mesmo trilionário. Mas ele, por convicção ideológica, decidiu que o melhor caminho seria compartilhar livremente e gratuitamente os códigos base para a internet.
De acordo com ele mesmo, a monetização e a patente da linguagem que permitia a comunicação de sites fariam com que concorrentes de mercado surgissem com suas próprias linguagens, e logo haveria um cenário em que os códigos não se comunicariam entre si, matando o próprio propósito da invenção.
O espírito inventivo de Berners-Lee nas décadas de 1980 e 1990 era o mesmo de toda a indústria tecnológica, fundada na esteira da contracultura da década de 1960, dos hippies que lutavam por “paz e amor”, das viagens de LSD, do festival de Woodstock e da chegada do ser humano à Lua.
Os pioneiros da tecnologia eram nerds entusiastas, que queriam encontrar formas de facilitar e melhorar a vida das pessoas. Se isso gerasse algum dinheiro, ele seria consequência, e não a causa motivadora inicial. “A cibercultura é indissociável da contracultura ”, escreveu o pesquisador de mídia Fred Turner em 2008 no livro “From Counterculture to Cyberculture”, publicado pela Universidade de Chicago.
O Telegram tenta manter esse espírito rebelde e contracultural dentro de seu aplicativo. Por um lado, gera segurança em boa parte dos usuários, que sabem que seus dados não estão sendo coletados e vendidos para outras empresas. Por outro, cria uma espécie de “terra sem lei” na qual grupos extremistas e/ou criminosos podem se reunir livremente.
Em 2015, houve nos EUA uma preocupação crescente pelo uso do Telegram por extremistas ligados ao Estado Islâmico. Em uma rara entrevista, o CEO Pavel Durov disse que acredita “que a privacidade e o direito à privacidade são mais importantes que nosso medo por coisas ruins, como o terrorismo”.
Apesar de contar com termos de uso que proíbem mensagens que incitem a violência ou que sejam criminosas, o Telegram agiu em raras ocasiões. Uma delas foi em janeiro de 2021, na esteira da invasão ao Congresso americano, em que dezenas de neonazistas tiveram suas contas excluídas do aplicativo.
A única frente de combate em que o Telegram é mais incisivo é na distribuição de pornografia infantil . A plataforma conta com um botão de denúncia específico para esse tipo de conteúdo e oferece atualizações diárias de expulsões de usuários que distribuem essas mensagens.
Por essas questões, João Pedro Favaretto Salvador, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, vê o Telegram como uma plataforma mais perigosa do que o WhatsApp na divulgação de desinformação e notícias falsas.
“Há características de escolha de design no Telegram que dificultam o acesso das autoridades às mensagens e grupos. E como o Telegram não coopera com nenhum Estado, isso fica ainda mais difícil”, disse ao Nexo .
Em 16 de dezembro de 2021, o atual presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, enviou um ofício a Pavel Durov, pedindo uma reunião para discutir formas de combate às chamadas fake news.
Entretanto, passados mais de um mês, o tribunal eleitoral não obteve respostas ao pedido de reunião. Em comunicado distribuído à imprensa na quarta-feira (19), a corte disse que deverá discutir na volta do recesso judiciário, em fevereiro, providências a serem tomadas sobre o caso e destacou que não deve haver exceções em relação a plataformas que atuam no país.
“O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, entende que nenhum ator relevante no processo eleitoral de 2022 pode operar no Brasil sem representação jurídica adequada, responsável pelo cumprimento da legislação nacional e das decisões judiciais. Na volta do recesso, o presidente irá discutir internamente com os ministros as providências possíveis”, diz a nota.
“O TSE já celebrou parcerias com quase todas as principais plataformas tecnológicas e não é desejável que haja exceções. O ministro Barroso e seus sucessores, ministros Luiz Edson Fachin e Alexandre de Moraes, estão empenhados em promover eleições livres, limpas e seguras, e este deve ser um compromisso de todos os que participam do processo democrático brasileiro”, acrescentou.
O presidente Jair Bolsonaro – que tem 1 milhão de inscritos no Telegram – e aliados dele passaram a usar mais a plataforma após serem alvo de bloqueios e interrupções de uso em outros aplicativos.
O professor de direito eleitoral e digital na Universidade Mackenzie Diogo Rais disse à agência Reuters que o Telegram tem lei, mas não tem juiz. Para ele, o aplicativo em si, que tem crescido muito no país, não é o problema, mas como ele não responde a Estados e instituições, eventual ilicitude que ocorra por lá é uma forma de não colaborar com a Justiça.
“Esse conjunto de coisas coloca em risco toda uma estratégia da Justiça Eleitoral de construir colaboração com todas as plataformas ”, afirmou.
Um inquérito civil público instaurado pelo Ministério Público Federal em 8 de novembro pede que empresas como WhatsApp, Telegram, Facebook, Twitter, TikTok e YouTube esclareçam as medidas que tomam contra práticas organizadas de desinformação. Na segunda-feira (17), o Twitter liberou para o Brasil um recurso, ainda experimental, que permite denunciar mensagens com esse tipo de conteúdo. A proximidade do pleito presidencial foi uma das justificativas da plataforma para a escolha do país.
A possibilidade de bloqueio do Telegram por parte da Justiça Eleitoral levantou debates em especialistas da área do direito digital.
João Pedro Favaretto Salvador, da FGV, acredita que há dois aspectos que devem ser considerados: o de política pública de combate à desinformação e o jurídico.
“A frustração do TSE com o Telegram é compreensível. O bloqueio é uma solução drástica, mas compreensível”, afirmou ao Nexo . “O maior problema a meu ver é que, para reduzir a desinformação, o bloqueio acaba punindo usuários que estão usando o Telegram de forma legítima.”
“Do ponto de vista jurídico, temos de ver se esse bloqueio sequer é possível. Existem entraves legais, o problema é muito novo. Há um debate intenso para saber se essa decisão do TSE é possível juridicamente”, disse.
Debate legislativo
Um caminho para o TSE bloquear o Telegram seria por meio de mudanças legislativas. O projeto de lei 2.630/2020, conhecido como “PL das fake news”, prevê que plataformas devem ter algum tipo de representação no Brasil. Ele aguarda análise no plenário da Câmara.
Inquéritos
Um bloqueio ao aplicativo poderia ser determinado no âmbito de inquéritos que estão em andamento, como a investigação sobre atos antidemocráticos no Supremo Tribunal Federal e a que apura a divulgação de notícias falsas sobre a urna eletrônica, no TSE.
Julgamento no Supremo
Desde 2020, o Supremo discute se decisões judiciais podem ou não impedir o uso de certos aplicativos. O processo está parado, mas dois ministros já se manifestaram contra esse entendimento.
O Telegram já foi bloqueado parcialmente ou completamente em 11 países, como Azerbaijão, Rússia, Indonésia, Irã e Belarus.
Para Francisco Brito Cruz, diretor do centro de pesquisas InternetLab, apesar de o Telegram dificultar o diálogo com as autoridades brasileiras, bloqueios de aplicativos são medidas graves. “Eles não têm consequências só políticas. São consequências econômicas e sociais. Mesmo que esteja sendo discutido no âmbito da política, não dá para ignorar, por exemplo, que pequenos negócios vão ser impactados”, disse ao jornal O Globo.
Cruz sugere como uma solução intermediária abrir um processo judicial e tentar intimar o escritório da empresa formalmente, em vez de apenas enviar um ofício. “Deixar a cordialidade de lado e tentar estabelecer um outro tipo de diálogo num outro nível, em um nível formal, oficial e judicial”, declarou à Folha de S.Paulo.
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