Qual a importância do ensino de artes para as crianças
Beatriz Ortiz e Laís Arcanjo
22 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h19)Ferramenta relevante para o desenvolvimento infantil, disciplina só foi incorporada como obrigatória na educação básica em 1996. Ainda hoje, enfrenta desafios em sua implementação
Criança segura pincel durante atividade de pintura
Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.
O ensino de artes é um recurso importante para a inserção das crianças na sociedade. Para especialistas da área, trata-se de uma disciplina que aprimora os relacionamentos e permite aos alunos transgredir barreiras dentro dos limites do imaginário.
A visão sobre esse campo de aprendizagem, porém, nem sempre foi essa. Séculos se passaram até que artes visuais, dança, música e teatro fossem reconhecidos como essenciais para a formação de alunos da educação infantil.
Neste texto, o Nexo apresenta um panorama geral do ensino das artes na educação infantil brasileira, resgatando sua história e trazendo análises sobre seus desafios e sua importância para o desenvolvimento das crianças.
No Brasil, o ensino de artes teve origem no período colonial, mas a sua obrigatoriedade no currículo escolar só foi regulamentada em 1971. Na educação básica, apenas em 1996.
No início do século 19, D. João 6º trouxe para o Brasil a Missão Artística Francesa, que criou a Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, em 1816, ministrando aulas à aristocracia. A concepção de um ensino de artes voltado à elite perdurou até o início do século 20, com a chegada da urbanização.
Nesse período, foram criados os Liceus de Artes e Ofícios e o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), com disciplinas como desenho, trabalhos manuais e canto orfeônico.
Predominava, no contexto educacional, a tendência tradicionalista, baseada na transmissão de padrões das culturas dominantes e a visão utilitarista da arte. O ensino de artes se justificava pela sua aplicação prática no mercado de trabalho.
A concepção em torno do ensino de artes começou a mudar durante o Modernismo (1922-1960), com a Semana de Arte Moderna (1922) e o surgimento das escolinhas de arte (1948), que ofereciam cursos livres do tema com orientação filosófica e metodológica americana, pensando a arte em si mesma.
Prevalecia a tendência da Escola Nova, na qual o ensino se voltava para o desenvolvimento da criança, centrado no respeito às suas necessidades e aspirações e valorizando suas formas de expressão e de compreensão do mundo.
Ainda assim, a obrigatoriedade do ensino de artes no currículo escolar para estudantes dos ensinos fundamental e médio só foi regulamentada a partir da LDB (Lei de Diretrizes e Bases) nº 5.692, de 1971 , que instituiu as aulas de educação artística. No entanto, não se tratava de uma disciplina, mas de uma atividade educativa, carecendo de estruturação pedagógica.
Durante a ditadura militar (1964-1985), por exemplo, o ensino de artes se resumiu a temas e desenhos para comemorações cívicas ou religiosas e decorações de festinhas. Apesar das conquistas posteriores, essa é uma tendência que pode ser vista em escolas brasileiras até hoje.
A partir da Constituição Federal de 1988 , diversos documentos foram elaborados para nortear o ensino de Artes no Brasil. Entre eles, estão os PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais) , promulgados em 1997, que ressaltam a importância da arte, dando valor à disciplina na estrutura curricular, com conteúdos e objetivos próprios. Os documentos seguem em vigor até hoje.
“Dos PCN’s para cá, aconteceu uma crescente. Esses documentos foram entrando no espaço escolar, no começo muito timidamente. As escolas nem sabiam como lidar [com eles] e foram tateando. De lá para cá, eu tenho visto que as escolas estão crescendo, evoluindo e enxergando a importância que deve ser dada à arte e às outras disciplinas”
1816
Criação da Academia Imperial de Belas Artes, com aulas de artes à aristocracia.
Década de 1920
Oferta de disciplinas artísticas, como Desenho, Trabalhos Manuais e Canto Orfeônico, na educação profissionalizante.
1922
Semana de Arte Moderna, manifestação artístico-cultural que marcou o início do Modernismo no Brasil.
1948
Criação do Movimento Escolinha de Arte, com oferta de cursos livres de arte.
1971
Promulgação da LDB nº 5.692/1971 , que define a obrigatoriedade das aulas de educação artística para 1º e 2º grau, equivalentes aos ensinos fundamental e médio.
1996
Promulgação da LDB nº 9.394/1996 , que define a obrigatoriedade do ensino de arte na educação básica, e da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) , que norteia a formulação dos currículos de sistemas e redes escolares.
1997
Promulgação dos PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais) para o ensino fundamental 1 e para o ensino fundamental 2 , que instauram a abordagem triangular de Ana Mae Barbosa como metodologia de ensino de artes.
1998
Promulgação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil , com documentos referentes aos eixos de trabalho para a construção das diferentes linguagens pelas crianças, envolvendo movimento, música, artes visuais e linguagem oral e escrita.
2008
Sanção da Lei nº 11.769/2008 , que estabelece a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas de educação básica.
2010
Promulgação das Dcnei’s (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil) , garantindo experiências que promovam relacionamento e interação das crianças com diversas manifestações de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura.
2016
Sanção da Lei nº 13.278/2016 , que inclui artes visuais, dança, música e teatro nos currículos dos diversos níveis da educação básica.
Mesmo inserido há décadas nos currículos escolares, o ensino das artes ainda é visto, em algumas escolas, como ferramenta de diversão. “Em muitas propostas, as práticas de artes são entendidas apenas como meros passatempos, em que atividades de desenhar, colar, pintar e modelar com argila ou massinha são destituídas de significados”, registra oReferencial Curricular Nacional para a Educação Infantil.
“Outra prática corrente considera que o trabalho deve ter uma conotação decorativa, servindo para ilustrar temas de datas comemorativas, enfeitar as paredes com motivos para os pais, etc. Nessa situação é comum que os adultos façam grande parte do trabalho, uma vez que não consideram que a criança tem competência para elaborar um produto adequado”
A crença de que a disciplina é uma ocasião para brincar pode ser explicada pela falta de preparação dos professores, derivada, principalmente, das diferenças entre a formação e a área de atuação. A pesquisadora do ensino de artes na educação básica Virgínia Vieira Marcondes afirma que esse dilema é visto tanto nos cursos de pedagogia quanto nos cursos de licenciatura em arte.
No primeiro caso, ela diz, a graduação é “generalista”. Como o aluno é formado para ser um professor “multifacetado, que ministra todas as disciplinas”, ele não recebe formação específica para o ensino de cada área e “na hora em que chega na sala de aula, ele se vê desamparado”. Já no segundo caso, o professor se torna um “especialista em uma das quatro linguagens” e tem dificuldades em “trabalhar com outras linguagens”.
Conforme um censo sobre formação dos professores, elaborado pelo MEC (Ministério da Educação) e analisado pelo Movimento Todos pela Educação, em 2013 havia 535.964 docentes lecionando arte no país. Deles, apenas 6% eram formados na área : 3,6% tinham alguma formação considerada interdisciplinar; 2% eram formados em artes visuais; 0,3% eram formados em música; 0,1% eram formados em teatro ou dança.
A coordenadora de projetos do Instituto Arte na Escola, Inaê Coutinho, reflete sobre a situação: “O professor [de artes] é em geral pedagogo, ele não tem formação em artes. Fica muito difícil para ele perceber tudo isso, por conta principalmente das condições de trabalho. São poucas as escolas de educação infantil que têm professores de música, de artes visuais, de teatro e de dança. Em geral, isso acontece em poucas escolas particulares”.
No estudo “ O ensino de arte e sua finalidade ”, realizado pelas pesquisadoras Andrieli Tochetto e Lidiane Felisberto em 2015, os professores que lecionam artes declararam que sentiam dificuldades ao dar aulas, mesmo com auxílio dos materiais necessários, pois por vezes a disciplina era vista pela gestão como um modo simples de recreação, um momento de descontração, assim como os minutos do recreio.
“Eu, como professora de arte, gostaria de um dia ver esse ensino sendo mais valorizado, pela sociedade em geral, e não mais visto somente como uma recreação. Quando praticado da maneira correta desde a educação infantil, esse ensino pode gerar pessoas com mais voz, com senso crítico, cidadãos participativos e ativos em sociedade”
Artes visuais, dança, música e teatro. Essas são as quatro linguagens da arte enquanto disciplina escolar, de acordo com os PCN’s. Apesar do documento nortear apenas o ensino fundamental 1 e 2, a Lei 13.278/2016 instituiu a inclusão dos mesmos segmentos na educação básica.
Abaixo, o Nexo lista como cada linguagem ajuda a desenvolver habilidades e competências, com base no artigo “O ensino de arte e a sua finalidade: educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental” , de Andrieli Tochetto e Lidiane Gomes.
Artes Visuais
Incentiva a criatividade das crianças, desenvolvendo sua imaginação, conhecimento e sensibilidade, tanto por meio da exposição a artistas conceituados quanto com atividades de desenhos e pinturas em sala de aula.
Dança
Ajuda a criança a se situar no espaço, o que permite que elaperceba as suas limitações e possibilidades. Desenvolve o aspecto motor, concentração e espontaneidade ao “unificar o pensar, o sentir e o movimento do corpo”.
Música
Ativa a criatividade e proporciona momentos de interação e sensibilização emocional. Torna mais aguçada na criança a capacidade de entender e reagir a mudanças na percepção, comunicação e atenção.
Teatro
Promove na criança análise e compreensão de si e dos outros. A interpretação de personagens contribui para a expressão e percepção de sentimento e valores.
As linguagens artísticas estimulam a educação integral, que garante o desenvolvimento do sujeito em todas as dimensões. Para Virgínia Vieira Marcondes, a importância das artes está, justamente, no olhar para o ser humano em sua integralidade. “No ensino de artes na educação infantil, olha-se para a criança em formação na sua multiplicidade humana, levando em consideração os aspectos emocionais, cognitivos, físicos, orgânicos, afetivos e culturais”, disse ao Nexo .
“A criança é um ser integral. É a arte que vai possibilitar desenvolver a experiência estética, a sensibilidade, o senso crítico e a memória; despertar sensações, questões emocionais, cognitivas, físicas, toda essa gama de possibilidades de perceber e de enxergar o mundo”, complementa Marcondes. “Ela possibilita, para essa faixa etária [da educação infantil], um desenvolvimento fundamental. Quando a criança chegar ao 1º ano do ensino fundamental, ela vai ter a memória mais bem-formada, com memória auditiva, ritmo, coordenação motora, e muito mais.”
“A formação do cidadão depende de uma formação integral, e não tem nada mais integral que uma formação na primeira infância. As artes acabam combinando muitas qualidades e desenvolvendo muitas habilidades que favorecem esse olhar crítico, esse fazer perguntas, esse olhar para a investigação”
De acordo com a arte-educadora Andrieli Tochetto, na educação infantil, o ensino de artes se faz de maneira imaginativa, envolvente e estimuladora, buscando instigar a criatividade e a capacidade de criar e inventar das crianças. Nota-se, ao longo das aulas, avanços significativos, como interação social, comunicação, expressão, controle e demonstração de pensamentos e emoções.
Um dos avanços é o desenvolvimento da sensibilidade. Segundo a professora do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia Luciana Arslan, em entrevista ao Nexo , “a sensibilidade faz com que você perceba mais o outro, seja sensível aos demais e às situações que vive, conscientize-se e lide com as diferenças”.
Além disso, para Arslan, a arte tem uma vocação mais “transgressora”, sendo uma “disciplina por excelência para gerar transformações”. Marcondes concorda: “É a arte que possibilita que a gente possa transgredir sem agredir, deixando o recado com contundência e sem violência. É a forma pacífica e lícita que temos para transgredir as linhas que a gente precisa e ultrapassar as barreiras que são invisíveis”. Por isso, complementa Arslan, “é sempre importante questionar a tradição do ensino de arte”.
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