Como as cidades tentam se adaptar à mudança climática
Mariana Vick
21 de março de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h26)Chuvas como as que vêm atingindo Petrópolis são esperadas no contexto do aquecimento global. Falta de ação do poder público potencializa os danos causados por esse tipo de evento
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Bombeiros trabalham após fortes chuvas em Petrópolis (RJ)
Os moradores de Petrópolis voltaram a ser afetados por fortes chuvas no domingo (20), pouco mais de um mês depois de a cidade ter registrado um temporal de grandes proporções que deixou 233 mortos . Cinco pessoas morreram e centenas estão desalojadas com as chuvas mais recentes, e áreas atingidas pelo desastre de fevereiro estão sob novos riscos.
Chuvas mais fortes e frequentes como as da cidade da região serrana do Rio de Janeiro são esperadas em parte do país no contexto da mudança climática. Apesar disso, políticas de adaptação para esse cenário ainda são raras nas cidades brasileiras, e a falta de ação do poder público potencializa os danos causados por esses eventos.
O Nexo explica o que é adaptação para o clima e qual o estado das políticas sobre esse tema nas cidades brasileiras. Mostra também por que os municípios do país são vulneráveis à crise do clima.
Medidas de adaptação à mudança do clima são aquelas necessárias para ajudar um país ou uma região a evitar ou se preparar para os efeitos da mudança climática, com o objetivo de diminuir sua vulnerabilidade a eventos como grandes secas, inundações ou ondas de calor.
Essas medidas podem assumir diversas formas — arquitetônicas, urbanísticas, econômicas, entre outras. Cidades litorâneas que fazem investimentos de infraestrutura para se adaptar a uma realidade na qual o nível do mar deve ser mais alto, por exemplo, estão investindo em adaptação.
Ações de adaptação podem também prevenir enchentes, deslizamentos, perdas econômicas por causa de eventos como secas — que, em 2020, afetaram o abastecimento de hidrelétricas e a conta de luz no Brasil, por exemplo — e mesmo mortes que ocorrem em desastres.
Moradora do Morro da Oficina, Viviane de Souza, 42, carrega seu cachorro a um abrigo
Nos debates sobre mudança do clima, a ideia de adaptação costuma acompanhar a de mitigação — conceito que se refere às medidas que tentam reduzir as emissões de gases de efeito estufa que causam a mudança climática. Mitigação e adaptação se complementam .
Em fevereiro de 2022, relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU) afirmou que os impactos humanitários da mudança climática já estão em curso e que os países não estão fazendo o suficiente para se adaptar ao novo contexto. Para cientistas, a preparação para a mudança climática exige mudanças no modo como os países fazem construções, cultivam alimentos e geram energia.
3,6 bilhões
de pessoas vivem em contextos que são altamente vulneráveis à mudança climática, segundo relatório do IPCC
CAUSAS
A mudança climática começa com atividades que emitem grande quantidade de gases que agravam o efeito estufa, fenômeno responsável por tornar o planeta mais quente. Entre os gases emitidos estão o CO2 (dióxido de carbono), o metano e o óxido nitroso. A maior parte das emissões é causada por atividades dos setores de energia, transporte e alimentos.
EFEITOS
A emissão de gases como o CO2 agrava o efeito estufa e, como consequência, causa o fenômeno que tem sido chamado de aquecimento global. A principal consequência desse aquecimento é o aumento das temperaturas. Entre outros efeitos, há também a elevação do nível dos mares e o aumento de eventos climáticos extremos. A expressão mudança climática é um sinônimo abrangente de aquecimento global.
1,09ºC
é quanto a temperatura média do planeta aumentou até 2020, em média, em relação ao período pré-industrial, antes do século 19
PREVISÕES
As projeções do clima mostram que o aquecimento global pode chegar a 6ºC até o fim do século 21 se o ritmo de emissões de gases do efeito estufa não diminuir. Para reduzir esse ritmo, são necessárias transformações em setores como o de energia e transportes. Em um futuro 2ºC, 3ºC ou 6ºC mais quente, a mudança do clima deve afetar (em grau maior ou menor) a economia, a saúde pública e o meio ambiente.
Eventos climáticos extremos como secas e inundações têm impactos específicos sobre cidades, que costumam ser vulneráveis por concentrarem grandes grupos populacionais e dependerem de infraestruturas (energia, transporte, saneamento etc.) sensíveis a alterações climáticas.
Ônibus do transporte público em Petrópolis foram levados pela enxurrada
Segundo o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, grupo de pesquisa ligado à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), além de concentrarem a maior parte da população, no Brasil as cidades médias e grandes são vulneráveis à mudança do clima por causa de seu processo de urbanização.
As cidades brasileiras cresceram de forma acelerada e desordenada, com ocupações de áreas de risco, avanço sobre fundos de vales e rios e uma série de modificações no ambiente natural. A expansão urbana produziu bairros com alta densidade e poucas áreas verdes.
Além disso, as edificações não obedecem a critérios técnicos e muitas vezes podem correr perigo. Somadas, essas características favorecem problemas como enchentes, deslizamentos e erosão e podem causar prejuízos para a infraestrutura urbana.
85,7%
da população brasileira vivia em cidades em 2015, segundo a ONU
Ao mesmo tempo que sofrem os impactos da mudança do clima, as cidades estão entre os principais agentes do aquecimento global, pois emitem grande parte dos gases que causam o efeito estufa (por meio de setores como a indústria, a construção civil e os transportes). Esse cenário é responsável por problemas climáticos específicos, como as ilhas de calor e a poluição do ar.
O principal texto que trata de adaptação para a mudança climática no país é o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, criado pelo governo federal em 2016 para propor medidas de redução dos riscos associados à mudança climática em todo o país.
O plano não trata apenas da adaptação à mudança do clima nas cidades — o texto inclui outros setores, como a agricultura —, mas no capítulo sobre a questão urbana define que, a partir do texto nacional, os municípios devem criar os próprios planos para se preparar para os riscos locais.
Mulher carrega retrato em área onde houve deslizamento no Morro da Oficina, em Petrópolis
Apesar da determinação do plano, essa não é a realidade da maioria das cidades brasileiras, segundo Henrique Frota, diretor-executivo do Instituto Pólis. “Existe um plano, mas ele não foi implementado na escala nacional, nem nos municípios”, disse ao Nexo . Entre os motivos para a falta de adesão ao plano, estão medidas que reduziram o papel do Estado nos últimos anos e a omissão do atual governo na agenda ambiental, segundo ele.
Estudo de universidades brasileiras com a Universidade de Michigan, nos EUA, sobre o estado de São Paulo mostra que mais da metade dos 645 municípios paulistas têm pouca capacidade de adaptação à mudança climática. Não há bases de dados sobre o restante do Brasil.
Os pesquisadores criaram, para chegar à conclusão sobre São Paulo, um índice de adaptação urbana que avalia a presença (ou ausência) nos municípios de políticas públicas e apoio a intervenções urbanas ligadas à adaptação climática nas áreas de habitação, mobilidade, agricultura e resposta aos impactos climáticos.
Busca em escombros em Petrópolis
O plano nacional de adaptação à mudança climática não é o único texto que trata da mudança do clima. Segundo Frota, planos diretores e leis municipais de ocupação do solo também deveriam incorporar ações contra a mudança climática. Em 2012, um ano depois das chuvas que deixaram 911 mortos na região serrana do Rio, o Estatuto das Cidades passou a obrigar a criação de plano diretor para municípios suscetíveis a riscos climáticos.
Na prática, porém, os planos diretores em geral também tratam pouco da questão climática, segundo Frota. “Essas questões estão no debate público há anos, houve resposta legislativa, mas as cidades não executam os planos, por falta de capacitação ou de recursos”, disse.
Frota criticou o governo federal por não oferecer recursos para que as cidades implementem novas políticas e criticou as prefeituras, que segundo ele “mal executam os próprios orçamentos” para a Defesa Civil. O país tem uma política para desastres que atribui ao órgão a tarefa de prevenir esses eventos, mas hoje ele cumpre seu papel apenas após os desastres, segundo ele.
Homens carregam corpo de pessoa morta em deslizamento em Petrópolis.
Em 2021, a prefeitura do Rio de Janeiro gastou apenas 28% do orçamento previsto para prevenção de enchentes, segundo o jornal Extra. No estado de São Paulo, entre 2011 e 2021, o governo também gastou valores sempre abaixo dos aprovados para a área, segundo a GloboNews.
Apesar de a preocupação com a mudança climática ter crescido nos últimos anos, o tema da adaptação é menos discutido que outros, como o da transição energética ou da economia verde . Dados da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) sobre o financiamento de países ricos para ações contra a mudança do clima mostra que eles destinam para adaptação cerca de um terço do que investem em ações de mitigação.
Críticas a essa disparidade apareceram em 2021, na COP26 (Conferência das Partes), principal evento da ONU sobre mudança do clima. Os países prometeram em resposta dobrar o financiamento voltado para a adaptação em países em desenvolvimento até 2025.
Carro afundou em Petrópolis, no Rio, após chuvas
Para Beatriz Pagy, cofundadora e diretora-executiva da organização Clima de Eleição, há uma negligência com o tema da adaptação, que também se repete no Brasil. “Quando falamos de adaptação, falamos de pessoas, especialmente grupos marginalizados e vulnerabilizados. Muitas pessoas, essas pessoas são tidas como esquecíveis pelos tomadores de decisão”, disse ao Nexo .
Frota também atribui a ausência de ações para a adaptação climática a fatores econômicos. “Existe uma economia que ganha em cima da crise ambiental, que propõe ‘soluções verdes’, mas não vão a fundo no problema”, disse. Por outro lado, as medidas de adaptação “exigem rever estruturas muito arraigadas na sociedade”.
“Para falar de adaptação no Brasil, a gente teria que rever a estrutura fundiária. A terra se concentra entre grupos reduzidos. A população, porque não consegue ter acesso à terra, acaba sendo empurrada sem querer para regiões das cidades com maior vulnerabilidade ambiental”
No Brasil, Frota também diz que o debate sobre a mudança climática ainda é pouco associado à questão urbana. “Quando falamos desse tema, o grande desafio citado é sempre o desmatamento na Amazônia. E realmente é um grande desafio. Mas nos lembramos das cidades apenas quando os desastres acontecem — quando poderíamos pensar em políticas para não termos uma crise mais aguda”, afirmou.
Para Pagy, o debate sobre a crise climática no Brasil também está centralizado no governo federal. “Falta uma governança climática robusta que integre as cidades”, disse. “O discurso de que a crise climática é uma pauta que irá nos afetar apenas daqui muitos anos também nos fez desconectar os efeitos que já vivemos hoje da crise.”
Questionado sobre as cidades brasileiras que têm criado políticas públicas de adaptação climática, Frota citou Santos, no litoral de São Paulo. Em 2016, o município criou um plano municipal para o tema e implementou geobags, sacos de areia submersos no mar que têm diminuído o impacto de ressacas.
Segundo ele, cidades costeiras têm se atentado mais para o tema por enfrentar adversidades como o aumento do nível do mar. Recife, considerada uma das cidades mais ameaçadas do mundo pela mudança climática segundo a ONU, começou em 2021 a criar seu plano de adaptação, por exemplo.
Niterói (RJ), citada entre os exemplos de Beatriz Pagy, reconheceu em 2021 o estado de emergência climática e criou uma secretaria voltada para o tema. A Câmara de Vereadores da cidade também instituiu uma Frente Parlamentar do Clima que tem buscado criar novas políticas.
Resgate de vítimas da chuva em Petrópolis
Capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba também começaram a elaborar planos de ação climática locais, que pretendem rever não só como as cidades podem se adaptar a desastres, mas definir novas políticas em áreas como mobilidade e gestão de resíduos, para emitir menos gases de efeito estufa.
“Para que as cidades melhorem sua resposta à crise climática, elas precisam começar a se enxergar como agentes parte do processo de ação e tomar providências que respondam às necessidades da população”, disse Pagy ao Nexo . “É preciso, para isso, reconhecer que a crise climática é uma crise de direitos humanos.”
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