O estudo que mapeia a percepção do país sobre povos indígenas
Mariana Vick
13 de abril de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h30)Com base em mais de 350 entrevistas, pesquisa analisa como diferentes grupos da sociedade brasileira enxergam as populações originárias e como essa visão mudou na última década
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Líder indígena Sonia Guajajara é pintada no rosto por Alessandra Munduruku em protesto em Brasília
A pesquisa “Narrativas ancestrais, presente do futuro” , publicada nesta quarta-feira (13) pela Amoreira Comunicação, em comemoração do chamado Abril Indígena, mapeia e analisa as percepções dos brasileiros sobre essas populações na última década.
Com base em mais de 350 entrevistas feitas em 2021 com diferentes grupos da sociedade — de lideranças indígenas a eleitores conservadores — e análises de redes sociais, o estudo mostra que a questão indígena ganhou alcance no debate público com a valorização do discurso ambiental e a emergência de lideranças, pensadores e artistas.
Mas também mostra que as percepções sobre esses povos são muito distintas, e falta conhecimento sobre o tema para uma parcela da população – aqueles que não se engajam na causa ainda relatam incompreensão e mesmo rancor diante da luta por direitos indígenas.
Neste texto, o Nexo mostra como os brasileiros se posicionam em relação a assuntos ligados à questão indígena, com base nos dados da pesquisa, e como os entrevistados veem a evolução do tema ao longo da última década.
A pesquisa perguntou a indígenas e a outros entrevistados engajados ou interessados no tema — ativistas, antropólogos, artistas e lideranças da sociedade civil — quais eles consideram as principais percepções e narrativas sobre os povos indígenas no país na década de 2011 a 2020.
Guardiões da Terra da etnia Munduruku, na Amazônia
A principal narrativa divulgada pelos povos indígenas no debate público foi a dos direitos, especialmente do direito à terra, segundo os entrevistados. Para eles, esse argumento ganhou mais visibilidade na última década com o aumento da organização dos povos indígenas e as “ameaças claras que se impuseram” às terras indígenas nos últimos anos.
“A demarcação e a proteção dos territórios são as narrativas fundamentais. Ter o território é ter onde viver, mas é também ter as condições de sobrevivência da própria língua, das culturas, dos rituais, é toda uma estrutura saudável de existência”
Outra percepção que se destacou foi a dos povos indígenas como “protetores do meio ambiente”, “guardiões das florestas” e essenciais no combate à mudança climática. O debate sobre a questão climática ganhou força no cenário global no fim da década de 2010 e foi adotado pelo movimento indígena e por parte da sociedade civil brasileira.
Crianças da etnia Macuxi brincam em rio na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima
Parte dos indígenas entrevistados têm reservas em relação a expressões como “ guardiões das florestas ”, segundo Cristiane Fontes, da Amoreira Comunicação, em evento realizado em parceria com o Nexo no dia 24 de março. Para eles, a proteção ambiental deveria ser responsabilidade de todos, não só dos povos indígenas. Outros afirmam que essa narrativa não leva em conta a presença de indígenas nas cidades.
36%
da população indígena no Brasil vive em cidades, segundo o censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística); no total, são 324,8 mil pessoas
Apesar disso, a visão dos indígenas como protetores do ambiente tem potencial de se fortalecer no debate público, especialmente no exterior, segundo o estudo. Ativistas têm aproveitado a preocupação com a mudança climática para também conseguir apoio contra ataques aos direitos indígenas e o aumento da vulnerabilidade de seus territórios no Brasil.
“Mais gente hoje entende que as florestas em áreas protegidas e nas terras indígenas são fundamentais para evitar ou adiar o colapso climático. Com isso, o direito à terra deixa de ser só parte daquilo que está previsto na Constituição, mas passa a fazer parte da lógica associada ao equilíbrio climático”
Com menos frequência, os entrevistados citaram o aumento da percepção na última década sobre os modos de vida indígenas. Para eles, esse tipo de discussão aprofunda de forma positiva a narrativa dos indígenas como “guardiões das florestas” e apresenta a “exuberância da diversidade indígena”.
“Há um esgotamento das narrativas ocidentais. As narrativas indígenas, nesse sentido, são como um sopro de vida, outra forma de se perceber no mundo, de se relacionar com a natureza. Isso ganhou enorme projeção nos últimos anos”
O orgulho identitário, a valorização do que é ser indígena e os discursos anticoloniais são considerados discussões emergentes, que devem ganhar mais visibilidade nos próximos anos. Esse tipo de narrativa questiona e atualiza os debates sobre a identidade brasileira e tem gerado interesse da indústria cultural, segundo o estudo.
Parte dos entrevistados manifestou preocupação com o que chamam de “contranarrativas” do governo de Jair Bolsonaro e de seus aliados. “Com a brutalidade e a violência das posições da extrema direita, veio não só a ideia de que índio tem terra demais, como uma depreciação das populações indígenas explicitamente formulada pelo presidente da República”, disse um deles.
Outra parte dos entrevistados, composta por grupos que o estudo não considera engajados com a questão indígena — como políticos, empresários, jornalistas regionais e pessoas da população geral identificadas como conservadoras — não vê a questão indígena da mesma forma.
A pesquisa afirma que há grande desconhecimento desse público sobre a realidade e a diversidade dos povos indígenas. Poucos conhecem, por exemplo, os principais ativistas ou pensadores indígenas do país. A concepção sobre esses povos é formada a partir de fragmentos de informação, como títulos de reportagens ou postagens nas redes sociais.
Indígenas yanomami, em Roraima
Os principais sentimentos desse grupo são de distanciamento, incompreensão e às vezes rancor dos povos indígenas, principalmente entre representantes da população geral, segundo o estudo. Os direitos indígenas são vistos em contraposição aos do restante da população, o que alimenta a percepção de que, se um ganha, o outro perde.
“Por que só é direito deles — e quando ele invade o direito do outro? […] Eu acho assim, o direito tem que ser universal, o direito tem que ser pra todos. Muitas vezes, eles falam a respeito de grilagem, mas você sabia que a mídia não mostra, que tem muita terra que índio vendeu?”
Com uma visão de mundo que vê sua própria cultura como única referência, esse grupo também tende a esperar dos indígenas que “evoluam” e integrem a sociedade brasileira. “Qual o problema de inserir socialmente, qual o benefício de proteger o indígena [em sua terra]?”, perguntou um economista.
“Muitos tendem a relacionar os modos de vida dos povos indígenas com pobreza, necessidade de auxílios governamentais e carência”, disse Cristiane Fontes em evento com o Nexo . “Se por um lado, existe um público engajado que enxerga as cosmologias indígenas como o que temos de mais rico, que podem nos oferecer respostas para a crise climática, por outro lado esses segmentos da população enxergam [os modos de vida indígena] como falta.”
“Esse tipo de visão é resultado de desconhecimento”, completou Fontes em entrevista ao Nexo . “A Amazônia, por exemplo, é uma floresta que vem sendo manejada pelos povos indígenas. Toda a diversidade que vemos nela é resultado dos modos de vida, da relação que esses povos têm com o ambiente.”
Criança Guarani Kaiowá em frente a estrada próxima de terra indígena, em Dourados (MS)
Nem sempre quem defende que os indígenas devem se integrar à sociedade brasileira usa o argumento da pobreza. Parte dos entrevistados se diz preocupado com o fato de que as terras indígenas estão sob intenso ataque e pensam que seria melhor se eles deixassem esses locais.
Também chamada de assimilação, a ideia de “integração” ou “civilização” dos indígenas é antiga na história do Brasil. Em diversos momentos, ela pautou políticas públicas. Com a Constituição de 1988, porém, a ideia foi descartada e deu lugar ao entendimento de que os povos indígenas têm direito a manter seus costumes — o que também contribui para a diversidade cultural do país.
Parte dos entrevistados, mesmo os de perfil conservador, têm simpatia pelos povos indígenas. Segundo a pesquisa, essas pessoas tendem a apresentar uma visão mais curiosa e compreensiva da cultura desses povos. O texto afirma que, em geral, quanto mais informados os entrevistados são, mais interessados ficam pelo tema.
“Suas reivindicações são totalmente válidas, porque todo mundo precisa de uma moradia, uma educação, segurança, todo mundo precisa de comida no prato todos os dias. Esses povos não são diferentes de nós”
Formadores de opinião — como jornalistas, políticos e empresários — e a parcela do grupo mais simpática com a causa indígena reconhece o impacto ambiental positivo das terras indígenas. Nem sempre, porém, esse reconhecimento foi manifestado espontaneamente nas entrevistas.
Empresários e economistas, que nas conversas demonstraram preocupação com a questão ambiental, afirmaram que debates sobre temas como bioeconomia e economia da floresta podem aproximar parte do público não engajado das demandas indígenas.
Parte dos entrevistados criticou a falta de contato e diálogo com o movimento indígena e lideranças progressistas. Para eles, o debate público está “muito ligado e circunscrito a pautas identitárias” e não a “pautas mais universais, que mobilizam a sociedade brasileira como um todo”.
“Dependendo de onde você lê, você vai ver um extremista para um lado e um extremista para outro. Se houvesse um espaço mais imparcial nesse debate com especialistas que discutem o tema, eu conseguiria inclusive ter mais informação e mais opinião sobre isso”
Enquanto a primeira etapa da pesquisa— as entrevistas com o público engajado — foi conduzida por integrantes da Amoreira Comunicação, esta segunda foi realizada em parceria com o Instituto Ipsos, especialista em pesquisa de mercado e opinião pública. Mais de 100 pessoas foram entrevistadas em profundidade entre junho e outubro de 2021.
A pesquisa escolheu mapear as percepções sobre os povos indígenas na última década intencionalmente. Os principais motivos para a escolha são o aumento nesse período das evidências sobre o papel das terras indígenas no combate à mudança climática, o fortalecimento do movimento indígena no Brasil e ataques recentes a seus direitos.
A publicação destaca entre esses ataques a construção da usina de Belo Monte no governo de Dilma Rousseff e a política anti-indígena de Jair Bolsonaro, que incentiva setores predatórios como o garimpo e paralisou a demarcação de terras.
Indígenas Kayapó bloqueiam BR 163, no Pará, em protesto contra falta de medidas governamentais para proteção das comunidades contra a covid-19
O quadro atual preocupa grande parte dos entrevistados interessados no tema. “A gente está em luta”, disse uma comunicadora indígena. “Nossos direitos são cada vez mais negados, nossas lideranças estão cada dia mais intimidadas, nossos territórios estão sendo invadidos por garimpeiros, por grileiros. Há uma enorme pressão por parte do governo em determinar quem é e quem não é indígena.”
O período, por conta disso, foi também marcado por protestos do movimento indígena, que ganharam mais visibilidade. Entre os eventos lembrados pelos entrevistados, estão a campanha contra Belo Monte no início da década de 2010 e mobilizações como o Acampamento Terra Livre, que ocorre desde 2004 em Brasília.
“Há estratégia de pegar espaços, em princípio adversos, e ampliar justamente ali a luta. Numa reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, presidida por Eduardo Cunha, os movimentos indígena e quilombola ocuparam a sessão. Ele mandou chamar a polícia, não saíram. Aí ele mandou desligar o ar-condicionado, não saíram. São esses exemplos cotidianos de muita força e resistência que fazem avançar, ou não recuar”
Parte dos entrevistados engajados no tema citou a emergência de novas lideranças indígenas nesse período. Entre elas, está Sônia Guajajara, coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e candidata à vice-presidência da República pelo PSOL na chapa de Guilherme Boulos em 2018.
O cacique Raoni Metuktire, o pensador Ailton Krenak (autor de “Ideias para adiar o fim do mundo”) e o líder indígena e xamã Davi Kopenawa (autor de “A queda do céu”) também foram citados como referências políticas e intelectuais, nos últimos dois casos.
Segundo a pesquisa, a emergência desses nomes faz parte de um processo maior de ocupação de espaços com vozes dos próprios indígenas — não só na política, mas nas universidades, na arte e nas redes sociais. “O protagonismo dos indígenas é um ganho que não se perderá com o tempo”, disse o assessor de uma ONG do país para a pesquisa.
Cacique Raoni e Sônia Guajajara em encontro em área próxima a São José do Xingu, no Mato Grosso
“A gente não costuma se concentrar em pessoas específicas, porque o movimento indígena é muito coletivo, e isso reflete em como a gente se organiza internamente”, ressaltou um comunicador indígena. “Não é a figura deles [Raoni ou Sônia Guajajara] em si, mas por representarem nossa luta coletiva.”
Parte da visibilidade dessas pessoas e eventos se deve também à cobertura da imprensa, que no governo de Jair Bolsonaro aumentou e melhorou, na opinião da maior parte dos entrevistados. O grupo também citou o trabalho de veículos independentes de mais destaque nas redes sociais, como a Mídia Índia .
Fora da política, os entrevistados mais informados sobre a pauta indígena citaram como marco da última década o destaque à arte indígena — artes plásticas, cinema, literatura —, que na sua opinião desafia narrativas hegemônicas. O grupo citou exemplos como “Ideias para o fim do mundo”, livro de Ailton Krenak que virou best-seller, e obras indígenas exibidas em museus como o Masp e a Pinacoteca de São Paulo.
“Acho que essas figuras estão possibilitando — eu tô falando do Davi [Kopenawa], do Ailton [Krenak], das mulheres na sua pegada na política, os artistas indígenas, eles estão permitindo um novo tipo de aliança com o mundo não indígena, uma aliança crítica, muito poderosa e que fala muito sobre a nossa situação de crise e incapacidade de lidar com a catástrofe iminente”
“Para citar uma aspa de uma das entrevistadas, o mais interessante nesses artistas é ver como eles se apropriaram das nossas linguagens para desconstruí-las”, disse Fontes ao Nexo . Ela citou obras e manifestações recentes que têm trazido a perspectiva indígena sobre eventos como a Semana de Arte Moderna de 1922 e a Independência do Brasil.
Parte da pesquisa analisa o debate sobre os povos indígenas nas redes sociais. Realizada pela DAPP-FGV (Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas), a terceira e última etapa do levantamento mostra que os principais atores desse tipo de conversa nas redes são perfis indígenas, com presença coadjuvante de usuários engajados no debate ambiental, como jornalistas e organizações da sociedade civil.
Indígena da etnia Kayapó faz vigilância da Terra Indígena Menkragnoti (PA) contra invasores
Os perfis que mais se destacam são mulheres indígenas e ativistas, como Sônia Guajajara, Joênia Wapichana — primeira deputada federal indígena do Brasil —, Célia Xakriabá — ativista e apresentadora do podcast “Papo de parente” — e Alice Pataxó — também ativista e comunicadora.
Organizações indigenistas e ambientalistas como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o ISA (Instituto Socioambiental) também influenciam o debate nas redes, especialmente no Facebook, onde seu engajamento supera o de perfis individuais.
Segundo o levantamento, a imprensa contribuiu para o aumento da repercussão dessas pautas para públicos que não necessariamente acompanham o movimento indígena. Celebridades, especialmente no Instagram, também expandiram o alcance do tema, na maioria das vezes em campanhas sobre o meio ambiente.
Menino indígena segura bandeira do Brasil em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília
Em todas as redes, por outro lado, cresceram, a partir de 2018, posts ligados à agenda antiambiental e anti-indígena. A pesquisa atribui esse movimento à ascensão do grupo político e social ligado a Jair Bolsonaro. Atores bolsonaristas são hoje a principal fonte de “contranarrativas” sobre a questão indígena.
O levantamento foi feito a partir de dados do Facebook, Instagram, YouTube e Twitter entre 2011 e 2021 (no Twitter, apenas de 2019 e 2021). No total, os pesquisadores analisaram mais de 9,3 milhões de postagens. Das redes observadas, apenas o YouTube não registrou grande alcance do debate sobre os povos indígenas, segundo o estudo.
Com base em sugestões de parte dos entrevistados, a pesquisa faz recomendações para combater o desconhecimento que ainda existe sobre os povos indígenas e aproximá-los do restante da sociedade, especialmente do público considerado não engajado.
Para as pessoas que participaram do estudo, o respeito e a valorização dos povos indígenas no Brasil só será possível após “longos e massivos investimentos em educação, mudanças radicais no sistema político e reparação do Estado brasileiro”, segundo o texto.
Indígena em protesto por demarcação de terras em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília
“Considero também importante promover projetos que permitam o encontro entre públicos engajados e não engajados, nos quais quem não conhece [a temática] se sinta bem-vindo, contemplado”, disse Cristiane Fontes ao Nexo . “Muitas vezes não pensamos nesse público e usamos uma linguagem difícil de ser compreendida.”
Ampliar a participação de indígenas nos espaços políticos também está entre as propostas citadas. Fontes afirmou que, nas eleições de 2022, um dos objetivos do movimento indígena é formar uma bancada indígena no Congresso. “Seria uma iniciativa inédita se acontecesse”, disse.
“Mas considerando que os indígenas são hoje 0,4% da população, acho que, além de tentar formar uma bancada indígena, precisaríamos do compromisso de candidatos não indígenas com essa pauta”, ponderou. “É preciso ampliar a iniciativa para compor alianças importantes.”
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