Além do preço: como a inflação vem escondida nos produtos
Marcelo Roubicek
28 de abril de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h29)Embalagens menores e serviços de pior qualidade são comuns em tempos de avanço generalizado de preços. O ‘Nexo’ mostra os impactos dessas práticas e o que fazer para fugir delas
Consumidores avaliam preços em supermercado no Rio
O Brasil vive no primeiro semestre de 2022 um momento de inflação alta e persistente . Com 12% acumulados em um ano no período que vai até o meio de abril, o avanço inflacionário corrói a renda dos brasileiros em um contexto de crise social e economia com dificuldade de engrenar .
O aumento de preços se espalha como fenômeno mundial , por fatores que vão desde a guerra na Ucrânia até as disrupções nas cadeias globais de produção. Mas não necessariamente essa inflação se manifesta na forma de etiquetas com preços mais altos.
A inflação também pode aparecer em embalagens menores ou serviços de pior qualidade. Neste texto, o Nexo explica esse fenômeno e como o avanço de preços pode acontecer de forma velada.
A inflação é geralmente um fenômeno complexo, que pode ser impulsionado por diferentes fatores. Ela pode se espalhar pela economia em diferentes intensidades, atingindo perfis variados de produtos e consumidores.
O aumento de preços também pode ter diferentes motivos por trás dele a depender da época, e pode ter remédios diferentes. Os governos podem ter diversos graus de responsabilidade sobre o fenômeno, a depender do momento.
O vídeo abaixo explica o que é a inflação e como ela impacta a população.
A inflação é o fenômeno de aumento generalizado de preços. Mas essa alta não necessariamente significa que as placas de preços nas lojas e mercados mostrarão valores mais altos.
Assim como muda o comportamento de consumidores na ida ao supermercado , a inflação também altera as estratégias de vendas das empresas, que encaram aumento de custos de produção e logística.
O aumento de preços ao consumidor pode vir embutido em embalagens menores, sem que haja mudança no preço final do produto. Na prática, o produto ficou mais caro, porque o cliente está pagando o mesmo valor, mas levando menos.
No contexto de escalada de inflação vivido pelo Brasil a partir do final de 2020, são muitos os registros de produtos que tiveram embalagem reduzida. Há casos de rolos de papel higiênico mais curtos , barras de chocolates mais leves e embalagens menores de biscoitos e salgadinhos .
Esse fenômeno é chamado por alguns economistas de “reduflação” – uma tradução do termo em inglês “ shrinkflation ”, que junta as palavras “encolhimento” e “inflação”. Outros o chamam de “ inflação velada ” (ou “shadow inflation”, em inglês).
Trata-se de uma medida adotada por empresas para repassar aumentos de custos sem levar os clientes a desembolsarem mais dinheiro ao final da compra (algo que, na verdade, está acontecendo de forma velada, pois pelo mesmo preço o consumidor leva menos de um produto). A estratégia busca não “assustar” consumidores com preços nominais mais altos.
A diminuição de embalagens “é uma prática muito recorrente em períodos de inflação alta, justamente porque as empresas querem preservar suas imagens”, disse ao Nexo a economista Ione Amorim, coordenadora de serviços financeiros do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
A lei brasileira contém normas que buscam regular esse fenômeno da redução de embalagens. Em 2002 – outro ano de inflação alta no Brasil – o Ministério da Justiça publicou uma portaria determinando que as empresas deveriam informar “de forma clara, precisa e ostensiva” mudanças nas quantidades ofertadas. Esse comunicado deveria permanecer no rótulo por três meses a partir da mudança.
Em setembro de 2021, o governo publicou outra portaria revogando o texto de 2002 e colocando novas regras para as mudanças de embalagens. A norma começou a vigorar em março de 2022.
Além de determinar que a informação das alterações deve ser mantida no produto por seis meses – período mais longo, portanto, que o previsto pela portaria anterior –, a nova regra também dá mais detalhes sobre como a mensagem deve ser impressa. Entre as exigências, estão a de colocar o comunicado em caixa alta, em negrito e em cor contrastante com o fundo do rótulo.
Apesar da previsão legal sobre mudanças em embalagens, Amorim afirmou ao Nexo que as empresas ainda assim tentam frequentemente driblar as regras. Um dos artifícios é o lançamento de um “novo produto” que na realidade é apenas uma versão reduzida de um bem já ofertado pela firma. “Se o consumidor não ficar muito atento, ele vai comprar um produto menor achando que está pagando menos. Mas a diferença de preço não é da mesma proporção”, disse Amorim.
A inflação velada não se manifesta apenas em quantidades menores. Ela pode acontecer na forma de serviços ou produtos de pior qualidade.
Um exemplo hipotético é o de uma lanchonete que mantém os mesmos preços, mas serve seus lanches em um pão mais barato – e sem reduzir o valor cobrado dos clientes. O consumidor paga um mesmo valor, mas o lanche é de pior qualidade.
Outro exemplo é o de um restaurante que demitiu funcionários para cortar custos. Com menos pessoas trabalhando na cozinha, a comida pode demorar mais para sair e ser preparada com menor rigor. Se houver um número menor de garçons, a refeição pode chegar fria na mesa. A limpeza do local pode também ser menos frequente. Assumindo que os preços nos cardápios não mudaram, os clientes estão pagando o mesmo valor por um produto e serviço de pior qualidade.
Em reportagem de outubro de 2021, o jornal americano The New York Times levantou dados que mostram que clientes de restaurantes nos EUA estavam reclamando mais da limpeza de restaurantes e erros em pedidos.
Nessa mesma reportagem, o jornal cita também o exemplo de hotéis que reduziram a frequência da limpeza dos quartos nos EUA, por causa da diminuição no quadro de funcionários. Os preços das diárias, no entanto, tendem a permanecer os mesmos.
Segundo Amorim, não há normas no Brasil que regulamentam casos de redução de qualidade ou quantidade de serviços oferecidos por empresas. “A prestação de serviços é algo que não é palpável, então isso dificulta. Precisaria existir um descritivo desse serviço, para que efetivamente seja possível afirmar que houve uma redução [de quantidade ou qualidade]. Aí sim seria possível aplicar uma lei na mesma linha do que já existe para os produtos embalados”, afirmou a economista do Idec ao Nexo .
A inflação velada representa também um desafio para as instituições que produzem índices de preços ao redor do planeta. No Brasil, o IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, principal régua da inflação do Brasil – é produzido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
No processo para gerar o IPCA, o IBGE observa mensalmente a variação de preços de centenas de produtos que compõem a cesta de consumo dos brasileiros. Os produtos que entram na conta do índice de inflação são escolhidos pelo IBGE com base na POF ( Pesquisa de Orçamentos Familiares ) – feita pelo próprio IBGE –, que revela onde os brasileiros estão gastando seu dinheiro . A variação do IPCA define a inflação para consumidores com renda entre 1 e 40 salários mínimos.
Mulher faz compras em supermercado em São Paulo
O Nexo entrou em contato com o instituto para entender o procedimento em caso de mudanças nas quantidades ofertadas dos produtos. Segundo o IBGE, “quando é identificada uma mudança no tamanho da embalagem, o produto é imediatamente excluído do painel do subitem e, a seguir, cadastra-se um novo produto com a descrição adequada, ou seja, com o novo peso ou volume ofertado no mercado. Espera-se, então, a formação do par de preços para que o novo produto passe a integrar o painel do subitem em questão”.
Em termos menos técnicos: o produto é considerado um novo bem, já que teve a quantidade alterada. A partir de então, se inicia um novo processo de acompanhamento de preços. Ele volta a entrar para a conta do índice a partir do segundo mês de observação, quando é possível fazer uma comparação entre quantidades iguais do mesmo produto.
O caso da queda de qualidade é mais difícil. Ao Nexo , o IBGE afirmou que “atualmente, não é feito ajustamento de qualidade para capturar a inflação subjacente à piora (ou melhora) de um serviço ofertado, dado o grau de dificuldade e o custo adicional para se obter variáveis que permitam o desenvolvimento de modelos mais complexos para captar esses fenômenos”. Além disso, o instituto afirmou que “trata-se de um problema enfrentado por diversos institutos de estatística ao redor do mundo, que dependem da disponibilidade de fontes de dados para dar um tratamento adequado a essas situações”.
De acordo com Amorim, a lei brasileira em torno de mudanças de quantidades ofertadas é uma “norma robusta, mas às vezes ela passa despercebida”. O consumidor, na visão da economista do Idec, continua vulnerável, já que é difícil que as alterações e alertas nos rótulos sejam percebidos.
Por isso, Amorim disse que a atenção às quantidades e preços é a principal forma de escapar da inflação velada. E o mesmo vale para os serviços: “se você contrata um serviço por uma hora, a sessão tem que ser de uma hora, não de 50 minutos”.
Além disso, ela afirmou que “quando você vê o selo de que a embalagem foi reduzida, há um indício forte de que há um aumento mascarado”.
A economista também defendeu que os supermercados poderiam ajudar os consumidores mostrando nas placas de preços os valores cobrados por unidade de medida – ou seja, por metro, por gramas ou por litros, entre outros. Isso daria melhores condições para escolher o produto que vai entrar no carrinho.
Além disso, Amorim recomendou que o consumidor reclame em caso de mudança de embalagem que não foi informada devidamente pela empresa. Essa reclamação pode ser feita em Procons ou no consumidor.gov.br , plataforma do governo federal.
A economista do Idec afirmou que é importante que o consumidor “seja um agente de fiscalização do processo, porque as empresas vão tomar medidas para tentar ocultar esse repasse de preços”. “A pressão vinda do consumidor é que irá contribuir para inibir esse tipo de prática”, disse ao Nexo .
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